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2 de Maio de 2024

Transporte humanizado de presos

A violação da dignidade humana pelo Estado brasileiro

há 8 anos

Quando a polícia militar prende alguém em flagrante, o transporte para a delegacia se faz dentro do chamado "camburão", "gaiola" ou "xadrez" da viatura, que não passa de um porta-malas com grades instaladas na parte traseira das camionetes. O espaço dessas gaiolas é mínimo e restrito, por conta disso, os presos são obrigados a ficarem encolhidos. Também não são climatizadas e nem oferecem boa ventilação. Um ambiente indigno improvisado para transporte de presos. E se os presos seguem algemados dificulta a respiração e a circulação sanguínea. Há relatos de mortes por ataques cardíacos, falta de ar etc.

A Lei n. 8.653, de 10.05.1993, proíbe em seu art. 1o "o transporte de presos em compartimento de proporções reduzidas, com ventilação deficiente ou ausência de luminosidade". O Estatuto da Criança e do Adolescente também veda expressamente:

"O adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional não poderá ser conduzido ou transportado em compartimento fechado de veículo policial, em condições atentatórias à sua dignidade, ou que impliquem risco à sua integridade física ou mental, sob pena de responsabilidade" (art. 178).

Qual a diferença da "dignidade" ("condições atentatórias") do adolescente para o adulto? Não vemos nenhuma. A dignidade se apresenta pelo simples fato de estarmos na frente de um ser humano, seja ele adulto ou adolescente. O transporte em "compartimento fechado de veículo policial" atenta contra a dignidade de qualquer ser humano, independente da faixa etária, gênero, opção sexual, crença etc. E pode-se dizer mais: implica risco à integridade física e mental de qualquer um destes.

O Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503, de 23/09/97) no seu art. 230, considera infração gravíssima:

“Conduzir o veículo: II – transportando passageiros em compartimento de carga, salvo por motivo de força maior, com permissão da autoridade competente e na forma estabelecida pelo Contran”.

A exceção prevista no CTB depende de expressa permissão e o Contran, através da Resolução nº 508, de 27/11/2014 (dispõe sobre os requisitos de segurança para a circulação, a título precário, de veículo de carga ou misto transportando passageiros no compartimento de cargas), determina que:

“A autoridade com circunscrição sobre a via poderá autorizar, eventualmente e a título precário, a circulação de veículo de carga ou misto transportando passageiros no compartimento de cargas, desde que sejam cumpridos os requisitos estabelecidos nesta Resolução” (art. 1º).

Dentre os requisitos estabelecidos pela referida Resolução temos:

1- bancos, na quantidade suficiente para todos os passageiros, revestidos de espuma, com encosto e cinto de segurança, fixados na estrutura da carroceria;

2- carroceria com cobertura, barra de apoio para as mãos, proteção lateral rígida, com dois metros e dez centímetros de altura livre, de material de boa qualidade e resistência estrutural, que evite o esmagamento e a projeção de pessoas em caso de acidente com o veículo;

3- cabine e carroceria com ventilação, garantida a comunicação entre motorista e passageiros.

E mesmo que obedecidos esses requisitos, as viaturas com "gaiolas" só podem ser utilizadas para transporte de presos após expedição do Certificado de Segurança Veicular - CSV, expedido por Instituição Técnica Licenciada - ITL, e vistoria da autoridade competente para conceder a autorização de trânsito.

Em caso de capotamento de viatura policial que transporta presos na "gaiola", quais as consequências para os eventuais detentos amontoados? Certamente, não terão a mesma segurança de passageiros que usam cinto de segurança.

Existem casos veiculados nos mais diversos meios midiáticos sobre o caráter indigno de transporte de presos no Brasil nas famígeras "gaiolas":

"Porta de camburão não abre e preso quase morre dentro de viatura no Piauí.

A policia militar de Parnaíba-PI prendeu por volta das 10hs deste sábado, dia 02, Edinilson Monteiro de Oliveira, de 25 anos, natural de Buriti dos Lopes. A acusação foi lesão a faca contra Jackson Douglas Alves da Silva. A briga aconteceu no bar Duas Irmãs, localizado na BR 402, próximo ao estádio Mão Santa.

Tudo normal e rotineiro, se não fosse a péssima condição de trabalho da polícia ficar evidente na hora de retirar o acusado da viatura para depor. Na central de flagrante, no momento de fazer a retirada do preso do camburão, a tampa não abriu e os policiais tiveram que procurar um chaveiro para destravar a fechadura, o que não deu certo. O jeito foi arrancar a tela de proteção pelo lado de dentro da viatura"1.

"Preso é flagrado com droga na cela e morre a caminho de delegacia.

Um interno do Presídio de Segurança Máxima “Jair Ferreira de Carvalho” morreu na tarde desta sexta-feira (23) no momento em que era levado para a Depac (Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário) depois de ser flagrado com trouxinhas de cocaína na cela. O preso chegou a ser encaminhado para a Santa Casa, mas não resistiu.

De acordo com o boletim de ocorrência, por volta das 8h30 da manhã, agentes penitenciários da unidade penal realizavam revista na cela 17, do Pavilhão dois, quando localizaram 40 papelotes e três porções de cocaína, que totalizaram mais de 127 gramas da droga.

Ao ser questionado, o interno Herson de Souza, de 32 anos, assumiu que os entorpecentes pertenciam a ele. A escolta da Policia Militar foi acionada para levar o preso até a Depac Centro, mas no caminho para a viatura Souza começou a gritar e se recusou a entrar no camburão. Os militares então algemaram o homem para realizar o transporte.

Durante o trajeto até a delegacia, Herson começou a passar mal e reclamar de falta de ar. Os policiais desviaram o caminho e foram para a Santa Casa, onde o preso chegou já desacordado. Conforme o registro policial, a equipe médica tentou reanimar o interno, mas não teve sucesso"2.

"Comissão da OAB/MT denuncia irregularidades em transporte de presos em Cuiabá.

A presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MT, Betsey Polistchuk de Miranda, expediu um documento ao secretário de Estado de Justiça e Direitos Humanos, Paulo Lessa, para denunciar abusos ocorridos no transporte de reeducandos em Cuiabá. O documento foi protocolizado nesta quarta-feira (17 de outubro).

A advogada recebeu a denúncia de pessoa idônea, ligada ao Sistema Prisional, que estava revoltada com a situação. Conforme narrado, apenas um veículo tem feito o transporte de presos para audiências que se realizam todos os dias em Cuiabá e Várzea Grande, levando presos do Presídio Central, Centro de Ressocialização de Cuiabá, colocando na parte da frente do veículo as detentas do presídio Ana Maria do Couto.

'Segundo narrativa são levados diariamente em um veículo que só cabem seis presos de cada lado, cerca de 20 a 25 presos, cuja ventilação está há muito tempo sem funcionar, fazendo que muitos passem mal a ponto de chegar a desmaiar', relatou. Betsey Miranda observou que o tempo que eles ficam no veículo é demasiado, pois, o transporte sai do Presídio Central e passa por todos os outros recolhendo os reeducandos para depois serem encaminhados aos fóruns de Cuiabá ou de Várzea Grande.

A respeito deste e outros fatos relatados, a presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MT solicitou ao secretário da Sejudh/MT as providências necessárias para o transporte humanizado dos reeducandos e também a presença de uma agente penitenciária feminina junto com as detentas na parte da frente do veículo para evitar possíveis abusos" 3.

Tarso Genro, quando ministro da Justiça (2007/2010), determinou à polícia federal a criação de um modelo de carro para transporte de presos (camburão) sem as gaiolas. Para o ministro, os novos camburões deveriam ter bancos e espaço suficiente para que os presos fossem conduzidos sentados. A idéia básica era evitar que os presos fossem submetidos a sofrimentos desnecessários. Mas nada de efetivo foi feito. A ideia não sofreu desdobramentos na prática.

Há exemplos em outros países de transporte humanizado de presos. Nos Estados Unidos, por exemplo, os policiais utilizam a parte interna do veículo, que é separada, não tendo o preso acesso à parte da frente da viatura (garantindo a integridade dos policiais). É um compartimento fechado e climatizado, sendo os presos conduzidos com algemas e não tendo acesso à maçaneta da porta, que só abre pela parte externa ou por um botão, acionado pelo motorista. As janelas possuem grades de proteção e os vidros ainda são reforçados. Podem ser transportados de dois a três presos sentados.

Também é possível utilizar veículos especialmente projetados para o transporte de presos, que servem de apoio para as demais viaturas policiais. Esses veículos ficam em pontos estratégicos (unidades policiais, comandos regionais etc.) e são acionados quando há necessidade (princpalmente quando a quantidade de presos é grande). Há diversos modelos e tamanhos. Podem ser ônibus, micro-ônibus ou vans. Todos atendem às recomendações internacionais de organismos ligados à causa dos direitos humanos, possuindo espaço suficiente para que os presos sejam conduzidos sentados. O ambiente é climatizado e possui sistema de purificação de ar. Capacidade para mais de 10 presos.

1Jornal Teresina Diário, 04.11.2013, in: http://teresinadiario.com/noticias/mais-noticias/porta-de-camburao-nao-abreepreso-quase-morre-dent....

2 23.10.2015, in: http://www.midiamax.com.br/policia/preso-flagrado-droga-cela-morre-caminho-delegacia-278343.

3 18.10.2012, in: http://www.oabmt.org.br/Noticia/Noticia.aspx?id=3397&titulo=comissao-da-oab-mt-denuncia-irregula....

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