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26 de Maio de 2024
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    Um descumprimento à ordem judicial

    Publicado por Rogério Tadeu Romano
    há 4 anos

    UM DESCUMPRIMENTO À ORDEM JUDICIAL

    Rogério Tadeu Romano

    I - O FATO

    O Estadão decidiu pedir no dia 30 de abril do corrente ano, à Justiça Federal de São Paulo uma apuração de descumprimento de ordem judicial, após a Advocacia-Geral da União (AGU) não encaminhar os “laudos de todos os exames” do novo coronavírus feitos pelo presidente Jair Bolsonaro.

    A assessoria de comunicação da AGU informou à reportagem que encaminhou à Justiça Federal de São Paulo um relatório médico de 18 de março no qual atesta que o presidente Jair Bolsonaro se encontra “assintomático” e teve resultado negativo para os testes do novo coronavírus realizados no mês passado – mas não enviou a cópia dos exames. Esse relatório já havia sido divulgado pelo site de notícias UOL.

    No dia 27 de abril, o Estadão garantiu o direito de obter os testes de covid-19 feitos por Bolsonaro. Por decisão da juíza Ana Lúcia Petri Betto, foi fixado um prazo de 48 horas para a União fornecer “os laudos de todos os exames” feitos pelo presidente da República para identificar a infecção ou não pelo novo coronavírus. Bolsonaro já disse que o resultado dos exames deu negativo, mas se recusou até hoje divulgar os papéis.

    “A falta de transparência é absoluta. Estamos requerendo que a União seja intimada formalmente sobre isso. A decisão da Justiça mandou juntar resultado de exame. Ao que se sabe não há nenhum resultado de exame juntado, portanto, a decisão foi descumprida”, disse o advogado do Estadão Afranio Affonso Ferreira Neto.

    Ferreira Neto aponta que o descumprimento de decisão judicial configura prática de crime de desobediência.

    II – O CRIME DE DESOBEDIÊNCIA

    Prevê o artigo 329 do Código Penal: ¨Desobedecer a ordem legal de funcionário público” seis meses, e multa, sendo crime de menor potencial ofensivo, sujeito a disciplina da Lei 9.099/95 e aos seus institutos, como a transação penal, a suspensão condicional do processo, por exemplo.

    O crime de desobediência exige para a sua configuração a existência de pessoa determinada, contra quem foi expedida a ordem contra a autoridade. Com isso se diz que a ordem deve emanar de funcionário público, que somente poderá ser o empregado público, no sentido estrito do direito administrativo, como relevou Nelson Hungria (obra citada), pois somente este é o agente do Poder Público, em cujo nome atua, expedindo ordem de cumprimento obrigatório.

    Essa ordem deverá ser, de forma indispensável, transmitida diretamente ao destinatário, pois não haverá crime se este não tiver o induvidoso e inequívoco conhecimento da mesma (RT 427/424; 427/426; 531/327). Somente em casos excepcionais será admitida a notificação por edital (comprovando a acusação de que o agente teve perfeito e completo conhecimento de todos os seus termos).

    Pratica o crime quem desobedece a ordem legal emanada de autoridade competente. O particular, geralmente, e o funcionário público podem ser sujeitos ativos do crime de desobediência (RT 418/249). É necessário, no entanto, que não esteja no exercício da função (RT 738/574).

    A ordem deve conter cominação expressa não sendo bastante a mera solicitação, como explicita Heleno Cláudio Fragoso (Jurisprudência Criminal, nº 196).

    É exemplar a lição de Soler (Derecho Penal argentino, título V, pág. 112), lembrada por Paulo José da Costa Jr.(obra citada, pág. 507), para quem não se deve atribuir uma grande capacidade de expansão à norma que preceitua o crime de desobediência, em sua exegese..

    O crime se consuma quando há o desatendimento à ordem legal expedida. Se se tratar de omissão, o momento consumativo se apresenta quando decorrer o prazo para o cumprimento da obrigação, não sendo possível a tentativa.

    Voltemos a lição de Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal, volume II, 5ª edição, pág. 459), para quem é mister que a ordem seja legal, isto é, fundada em lei e emanada da autoridade competente, agindo nos limites de suas atribuições, com observância das formalidades legais. Mas estabelecida a legalidade, será indiferente a justiça ou a injustiça da ordem, assegura Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 459). Mas se impõe que o destinatário da ordem tenha o dever jurídico de obedecer (RTJ 103/139).

    Entende-se que o dolo é o genérico consistente na vontade de desobedecer à ordem legal do funcionário público. Deve o agente ter ciência da determinação e consciência da antijuridicidade de sua conduta.

    III – O CRIME DE PREVARICAÇÃO

    Para outros, o não cumprimento da ordem judicial, por servidor público, configura, em tese, crime de prevaricação, mas não cabe ao juiz cível determinar a prisão. Se a ordem não é cumprida, só resta ao juiz remeter ao Ministério Público cópias das peças que demonstrem indícios do eventual ilícito.

    Prevaricar é a infidelidade ao dever de oficio. É o descumprimento de obrigações atinentes à função exercida.

    Na forma do artigo 319 do Código Penal, de 3 (três) maneiras o agente poderá realizar o delito. Duas delas de natureza omissiva (retardando ou omitindo o oficio). Outra, de feição comissiva, praticando ato contrário a disposição expressa de lei.

    O fato pode ser objeto, por certo, além de responsabilidade no âmbito penal.

    O elemento subjetivo é o dolo especifico. O dolo específico consiste na finalidade de o funcionário satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

    Se ha interesse pecuniário o crime é de corrupção passiva.

    Na forma comissiva pode ocorrer tentativa.

    O crime é de menor potencial ofensivo.

    Destaco aqui que a jurisprudência no sentido de que não se pode reconhecer o crime de prevaricação na conduta de quem omite os próprios deveres por indolência ou simples desleixo, se inexistente a intenção de satisfazer interesse ou sentimento pessoal (JUTACRIM 71/320) e ainda outro entendimento no sentido de que ninguém tem a obrigação, mesmo o policial, de comunicar à autoridade competente fato típico a que tenha dado causa, porque nosso ordenamento jurídico garante ao imputado o silêncio e até mesmo a negativa de autoria (RT 526/395).

    IV – O DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL: CONSEQUÊNCIAS

    A doutrina e a jurisprudência discutem se há ou não crime no caso de uma autoridade descumprir uma decisão ou despacho de natureza mandamental. Para uns, o crime é de desobediência (art. 330 do Cód.Penal).Para outros, é de prevaricação (art. 319 do Cód.Penal) ou não há crime algum.

    Para o eminente Ministro do STJ, Adhemar Ferreira Maciel, no caso de descumprimento de decisão judicial, o juiz "deverá simplesmente mandar prender seu destinatário, que se acha em flagrante delito...O fato é que o Juiz, sem qualquer açodamento, cum prudentia officci, não pode deixar que seu mando caia no vazio...o juiz não pode cruzar os braços e falar que já cumpriu sua parte, isto é, já reconheceu o direito do impetrante (in Descumprimento de Ordem Judicial, Revista AJUFE, agosto de 1990.

    É imprescindível que o agente esteja no exercício da função. (TACrSP,Ap. n. 253.959, Julgados 7l/290 e RT 563/348; TJSP,Ap. n. l4l.607, RT 544/347).É necessário que se trate de ato de ofício que competia ao agente praticar (TAPR,Ap. n. 324, RT 486/357).Ato de ofício é todo ato que corresponde à competência e atribuição do funcionário (TACrSP,RC n. l46.653, RT 507/399.

    V – O DIREITO À INTIMIDADE E A PESSOA PÚBLICA

    Pergunta-se se o presidente da República tem o dever de mostrar seus exames.

    O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto considerou"juridicamente correta"a decisão da Justiça Federal de São Paulo, que garantiu ao jornal O Estado de S. Paulo o direito de obter os testes de covid-19 feitos pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Na avaliação do ex-ministro, o Brasil tem o direito de saber da saúde do presidente.

    " O país tem o direito de saber da saúde do seu presidente, até porque se trata de doença transmissível e, ao que se sabe, o presidente não se submeteu a nenhum isolamento físico ", afirmou Ayres Britto.

    "No momento em que vivemos planetariamente, a matéria não se inscreve no âmbito da intimidade, e nem mesmo da vida privada do presidente. O próprio presidente antecipou o interesse coletivo no resultado do exame a que se submeteu ao tornar pública a realização desse mesmo exame", completou.

    Ora, o direito à intimidade é direito personalíssimo que tem por fundamento a defesa da privacidade humana, além de ter a característica básica da não exposição de elementos ou informações da esfera íntima ou reservada de seu titular.

    Em nosso ordenamento, o artigo , X, da Constituição Federal, e o artigo 21, do Código Civil2, fundamentam a proteção da esfera privada de uma pessoa, referindo-se tanto à vida privada, quando à intimidade da pessoa humana. O direito à privacidade, e mais especificamente, o direito à intimidade, alude à proteção da esfera privada ou íntima de uma pessoa, sendo esta abrigada contra ingerências externas, alheias e não requisitadas, e tutelada na medida em que não se permite, sem autorização do titular da informação ou dado, a sua divulgação no meio social.

    A decisão historiada foi dito que"no atual momento de pandemia que assola não só Brasil, mas o mundo inteiro, os fundamentos da República não podem ser negligenciados, em especial quanto aos deveres de informação e transparência".

    As três concepções sobre o direito à privacidade seriam: (i) o direito de ser deixado só, (ii) o direito de ter controle sobre a circulação dos dados pessoais, e (iii) o direito à liberdade das escolhas pessoais de caráter existencial, soma-se um novo entendimento, o de que a pessoa titular de determinado dado relacionado a sua condição existencial tem o direito de não conhecê-lo. Essa seria a esfera de proteção mais estrita da privacidade, porquanto protege o direito de uma pessoa de não saber como consequência da tutela ampliada de dados sensíveis“destinados para dentro”. Assim, “a privacidade deve ser considerada também como o “direito de manter o controle sobre suas próprias informações e de determinar a maneira de construir sua própria esfera particular”.

    Não se pode, porém, confundir o direito à intimidade, com o direito à vida privada. Neste sentido, Manoel Gonçalves Ferreira (Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2. ed. São Paulo:Saraiva, 1997, p.35) ressalta apresentarem os conceitos constitucionais de intimidade e vida privada grande interligação, podendo porém"ser diferenciados por meio da menor amplitude do primeiro que se encontra no âmbito de incidência do segundo.

    A tutela do direito à privacidade das pessoas impede sua exposição a constrangimentos ou interferência de terceiros ou mesmo do Estado, sem prévio consentimento, salvo expressa determinação legal em contrário. Nesse contexto, a vida privada consiste em ser um refúgio impenetrável pela coletividade, merecendo real proteção do Estado.

    Mas, no caso, trata-se de pessoa pública.

    Entende-se por pessoa pública todos aqueles que, de alguma forma, ganharam notoriedade regional, nacional ou internacional, que se pode configurar na pessoa de um político, de atores, de músicos, etc .

    Um dos limites à intimidade das pessoas de notoriedade pública é o justificado interesse público, além daqueles outros decorrentes da própria natureza. Se comprovado o interesse legítimo de informação sobre aquela personalidade, o direito da personalidade pode, por vezes, sucumbir.

    Tornou-se um lugar-comum falar em dois modelos de proteção à intimidade dos políticos, subespécie de “pessoas notórias”, a saber, o (1) anglo-saxão e o (2) francês. No modelo (1), observa-se a total ausência de limites entre a esfera pública e a esfera privada dos políticos. O uso de substâncias entorpecentes, a vida sexual, o adultério, o tipo de roupa (ou a ausência dela) usada em ocasiões íntimas, problemas familiares, doenças e tantos outros aspectos de interesse eminentemente privado são esmiuçados e expostos sem qualquer cerimônia nos meios de comunicação. No modelo (2), tudo isso é demarcado e objeto de proteção, a qual só se amplia ou restringe conforme a presença do interesse público. Dito de outro modo: se há corrupção, chantagem e outros elementos que conectem a vida privada com o dever de informar à população. Quase nunca esse limite é (ou, ao menos era) ultrapassado e, quando aqueles aspectos vinham à luz do sol, tal se dava como algo lateral, um fato coadjuvante da notícia.

    Lembro do caso Profumo Affair, assim denominado em razão de envolver o britânico John Dennis Profumo (1915-2006), descendente de uma família italiana, com um título de barão do Reino da Sardenha, herói da Segunda Guerra Mundial (ele esteve no desembarque na Normandia) e membro do Parlamento pelo Partido Conservador. Em 1960, após ter ocupado outras funções parlamentares e ministeriais, Profumo assumiu o cargo de Secretário de Estado para a Guerra (Ministro da Defesa) do Reino Unido. Registre-se que todos o consideravam um forte candidato a primeiro-ministro.

    Em 1961, em uma festa na casa do 3o Visconde Astor, John Profumo (que era casado) conheceu a modelo e dançarina Christine Keeler, com quem passou a manter relações sexuais por um curto período. O problema é que a senhorita Keeler também se relacionava, em idênticas bases, com Yevgeni Ivanov, adido-naval senior da Embaixada da União Soviética em Londres. Essa relação acabou vindo a público e considerou-se que Profumo havia comprometido a segurança nacional (o que parece evidente, ao menos em potência). A escalada das matérias jornalísticas, que deram ao caso um tom inesperadamente sensacionalista para os padrões da época e para a estatura social do ministro, e o comportamento de Profumo na Câmara dos Comuns, que mentiu a seus pares, ocasionaram sua queda do ministério e a renúncia ao mandato.

    É óbvio que no Profumo Affair havia o componente do interesse público, embora não houvesse prova efetiva de que informações secretas da Defesa britânica para os russos, no entanto, o caso passou a História como o fim da imunidade dos políticos à invasão de privacidade pelos órgãos de comunicação social.

    Aquele caso serve como leading caso. Uma intimidade deveria ser divulgada, pois se tratava de interesse de Estado.

    Ora, em sendo caso de interesse público, torna-se, num momento de pandemia saber quem está com a doença. Será necessário saber o conteúdo dos exames feitos pelo presidente da República em todas as suas circunstâncias.

    Quando ele esteve doente, vitimado por um atentado a sua vida, não foram subtraídas à sociedade o seu estado de saúde.

    Em caso de não cumprimento da ordem judicial, por se tratar de presidente da República, não caberá falar em ordem de prisão. Será o caso de envio das peças à procuradoria-geral da República para que ela adote a medidas que entender cabíveis.

    VI - MULTA

    A juíza Ana Lúcia Petri Betto decidiu nesta quinta-feira, dia 30 de abril, dar mais 48 horas para que o presidente Jair Bolsonaro entregue à Justiça Federal de São Paulo “os laudos de todos os exames” realizados para verificar se foi contaminado ou não pelo novo coronavírus. Para a magistrada, o relatório médico de 18 de março enviado pela Advocacia-Geral da União (AGU) não atende “de forma integral” à determinação judicial da última segunda-feira, dia 27 de abril.

    “Considerando que o documento juntado pela parte ré (relatório médico, datado de 18.03.2020), não atende, de forma integral, à determinação judicial, renove-se a intimação da União, para que, em 48 (quarenta e oito) horas, dê efetivo cumprimento quanto ao decidido, fornecendo os laudos de todos os exames aos quais foi submetido o Exmo. Sr. Presidente da República para a detecção da covid-19, sob pena de fixação de multa de R$5.000,00 por dia de omissão injustificada”, determinou a juíza.

    A multa determinada não é uma pena, mas meio de coerção.

    A astreinte tem por finalidade o constrangimento do devedor para fazer cumprir o estipulado na decisão judicial

    Trata-se de medida de cunho processual civil.

    Certamente a Advocacia Geral da União ajuizará agravo de instrumento no sentido de suspender tal medida.

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