Busca sem resultado
Associações - Ed. 2023

Associações - Ed. 2023

6.1. A Natureza Jurídica do Ato Constitutivo das Associações Sem Fins Econômicos

Entre no Jusbrasil para imprimir o conteúdo do Jusbrasil

Acesse: https://www.jusbrasil.com.br/cadastro

PARTE III - AS ASSOCIAÇÕES SEM FINS ECONÔMICOS EM PERSPECTIVA

Sumário:

O tema das associações sem fins econômicos no Brasil, especialmente sob a lente do direito privado, parece se enquadrar entre aqueles assuntos que são guardados por um silêncio eloquente.

Os livros de direito civil pouco ou nada mencionam a respeito dele; os livros de direito empresarial, quando muito, tratam lateralmente do assunto para propor uma diferenciação em relação às sociedades, e as obras de direito constitucional costumam se limitar a abordar o tema sob a perspectiva da garantia constitucional da liberdade de associação em sentido amplo.

Essa deficiência pode ser bem percebida à luz da postura encontrada na doutrina que, sob o texto do Código Civil de 1916, em geral, adotou duas linhas de orientação: a) a tentativa de exame do assunto a partir dos modelos encontrados em direito comparado, sem qualquer fundamentação no direito positivo brasileiro; 1 b) a negação da distinção, para o direito brasileiro, entre associações e sociedades civis. 2

O fato é que, durante as mais de oito décadas de vigência do Código Civil de 1916, a despeito da inexistência de uma definição conceitual das associações sem fins econômicos segura, a experiência social progressivamente diferenciou-as das então ‘sociedades civis’, em razão das crescentes particularidades sobre a Constituição, o desenvolvimento e a extinção, entre outros fatores usualmente vinculados à função peculiar por elas exercida.

Tome-se, apenas como exemplo, o viés tributário. Ainda que o direito privado não apresentasse as associações sem fins econômicos e as sociedades como entidades estruturalmente diferentes, o regime tributário aplicável a cada uma dessas figuras há muito tempo é diverso, por vários fundamentos e, certamente entre eles, pela particular e diferente função dessas entidades na vida em sociedade (o assunto será tratado no Capítulo VIII).

A despeito desse silêncio da doutrina em direito privado, as associações sem fins econômicos não deixaram de desempenhar um papel relevantíssimo. Como afirmado no Capítulo III, vivencia-se o tempo de promoção das associações. Se em outras fases da recente história ocidental essas organizações foram objeto de repúdio, e subsequente tentativa de um controle estatal quase absoluto, no tempo presente verifica-se uma tendência, nítida nos países de orientação democrática, de uma promoção das associações (fato este indiscutível perante o incremento da atuação das “organizações não governamentais” ao redor do mundo).

Sob a lente do direito positivo, o Código Civil em vigor (Lei 10.406/2002) trouxe ao direito brasileiro, pioneiramente, um complexo de regras unificadoras das associações sem fins econômicos.

Considerando as reflexões até aqui expostas, pode-se concluir que o subtipo das associações sem fins econômicos, tal como previsto no Código Civil , não foi propriamente ‘criado’ pelo legislador. Trata-se de algo ‘apreendido’ mediante inferência de características típicas encontradas na realidade social, que insistia em diferenciar aquilo que a lei mantinha em termos indistintos. 3

Trazer para o texto do Código Civil o tratamento legislativo de uma realidade tão rica na vida em sociedade, inevitavelmente, propiciaria o surgimento de um emaranhado de dúvidas e questionamentos.

Neste capítulo, procura-se enfrentar o assunto num viés predominantemente de direito privado, indagando a alocação do tema na parte geral do Código Civil Brasileiro para identificar com maior precisão o regime jurídico aplicável às associações e sua conformação na tripartição de planos (existência, validade e eficácia).

6.1. A natureza jurídica do ato constitutivo das associações sem fins econômicos

O pensamento crítico da teoria do direito, em diversas oportunidades, expressou ressalvas às investigações a respeito da “natureza jurídica” dos institutos. Não sem parte de razão.

Com efeito, propor o estudo da natureza jurídica de um instituto pode levar a crer que se busca uma essência, algo perene e descontextualizado da mutável realidade histórica e social. Sob essas lentes, na propriedade ou no casamento, típicos institutos de direito privado, v.g., seria possível encontrar uma essencialidade permanente que perpassaria inerte ao tempo e ao espaço.

Justamente para evitar essa específica e determinada leitura do direito é que, ao se propor uma reflexão sobre a natureza jurídica do ato constitutivo das associações, mostra-se importante definir, ainda que em termos gerais, em que sentido se utiliza a expressão “natureza”.

Neste capítulo, ao se buscar a natureza jurídica do ato constitutivo das associações sem fins econômicos, investiga-se o regime jurídico a ela aplicável, considerando que, na complexidade dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, diversos institutos se organizam, aproximam-se e se diferenciam, conforme a maior ou menor identidade do regime jurídico a eles pertinente. 4

Quando se conclui, por exemplo, que determinado instituto tem a natureza jurídica de um contrato, atribui-se a ele uma série de princípios e de regras jurídicas que não lhe seriam cabíveis caso a conclusão fosse de que se tratava de um ato unilateral.

Nessa linha de raciocínio, propor a discussão sobre a natureza jurídica do ato constitutivo da associação, longe de significar uma busca pela sua essência, aponta para um esforço na compreensão do regime jurídico a ela aplicável. Isso servirá de suporte para a busca de soluções para ulteriores questões, desde as mais teóricas até as mais práticas.

No direito brasileiro, pode-se dizer que praticamente inexistiu debate sobre a natureza jurídica do ato constitutivo da associação. Considerando que até o advento do Código Civil de 2002 não havia uma estrita separação entre associações e sociedades civis, parecia ser unânime, em doutrina, a concepção de que as associações ostentariam natureza jurídica contratual.

Em direito comparado, ao contrário, o tema da natureza jurídica das associações foi o palco de uma intensa polêmica que pode ser didaticamente resumida em duas orientações teóricas: anticontratualistas e contratualistas.

Segundo Auletta, as teses anticontratualistas e o repúdio a uma explicação contratual para a formação de associações em sentido amplo, incluindo também as sociedades, teria origem no pensamento de Otto von Gierke. 5 Estaria nesse autor a crítica a uma explicação geral das organizações associativas a partir do contrato, como um desenvolvimento mesmo da crítica ao individualismo contratualista como via de explicação para todas as organizações associativas, desde as mais simples até a constituição do próprio Estado.

As associações, sob o viés do jusnaturalismo contratualista, não passariam de uma soma de indivíduos, de um nexo entre indivíduos, razão pela qual não existiria uma grande diferença entre as diversas possíveis associações e o próprio Estado. Todas seriam decorrentes de manifestações individuais. Todas seriam decorrentes de contratos. 6

Gierke, ao se opor à concepção contratualista, sustentou que do ato constitutivo de uma sociedade ou de uma associação não decorreria uma relação obrigacional. O ato constitutivo de uma associação teria por efeito a criação de um novo sujeito de direito e, portanto, teria natureza jurídica diversa: seria um ato social constitutivo. 7

Referida semente teórica encontrou solo fértil na Alemanha, sobretudo a partir da teoria do ato complexo de Kuntz, 8 encontrando ecos em diversos outros países europeus, com especial atenção, sem prejuízo de outros autores aqui não nominados, para a doutrina do ato coletivo de Duguit 9 seguida por Boubbé, 10 para o institucionalismo de Maurice Hauriou 11 e, em solo italiano, para a concepção de ato coletivo em Francesco Messineo, 12 também adotada em direito espanhol por Castan Tobeñas. 13 No Brasil, vale registrar a adoção dessa orientação teórica por Orlando Gomes para explicar o ato constitutivo das associações. 14

Uma advertência, no entanto, merece ser feita. Nesse assunto, o desencontro na estipulação de termos dificulta a reflexão teórica. Os termos ato coletivo , ato colegial e ato complexo são tratados de diferentes maneiras por autores nacionais e estrangeiros. Ora se defende uma distinção entre eles, ora se defende uma indistinção, sem que se verifique nem mesmo uma identidade de critérios e pontos de partida para a reflexão. 15

De qualquer modo, para os fins do raciocínio que se pretende desenvolver nesse momento, verifica-se um universo teórico mais ou menos homogêneo que compreende a constituição de uma associação como o fruto de uma pluralidade de manifestações de vontade convergentes para a constituição de uma nova organização. 16

O posicionamento teórico que veio a se firmar, todavia, foi o contrário. A expressiva maioria dos autores, sobretudo após a segunda metade do século XX, acabou por concluir pela natureza contratual do ato constitutivo, tanto das sociedades quanto das associações. 17

Para esse desfecho, foi decisivamente importante o desenrolar da teoria geral dos contratos, com especial relevância para a criação da noção do contrato plurilateral e do contrato associativo, 18 expandindo o instituto do contrato para além das operações econômicas de troca.

Ao ampliar os lindes do instituto do contrato para além da função da troca, grande parte das críticas à natureza contratual do ato constitutivo das sociedades acabou ruindo por terra.

Em recente publicação, tratando especificamente das sociedades, António Pinto Monteiro sintetiza o debate (ressaltando que, por maior que seja o predomínio da teoria contratualista, esse é um dos assuntos que recorrentemente voltam à tona): “Quanto ao contrato, poder-se-ia mesmo questionar se de verdadeiro contrato se trata, pois a verdade é que a classificação do mesmo como negócio jurídico bilateral ou plurilateral atende apenas ao número de declarações de vontade, sendo certo, todavia, que aqui tais declarações não são de sentido oposto, antes se configuram como declarações do mesmo lado, formando uma só parte, o que parece que atiraria esse acto constitutivo para o campo dos negócios unilaterais, em que há uma só parte, mesmo quando existe mais do que uma declaração negocial. Não parece, contudo, que deva ser assim, pois isso significa reduzir o contrato à função de troca , devendo privilegiar-se, isso sim, na noção de contrato, o acordo de vontades dotado de efeitos jurídicos, formado por duas ou mais declarações negociais. Além de que não estaremos perante declarações meramente paralelas, pois sempre poderão descortinar-se relações entre as partes que celebram o contrato de sociedade”. 19

Nesse cenário, a teoria dos contratos plurilaterais de Tullio Ascarelli 20 obteve destaque e, sobretudo, flagrante aceitação na doutrina brasileira. 21

A percepção de inúmeros contratos organizados sob a denominação de contrato plurilateral torna-se mais fácil se partirmos do princípio de que os contratos de troca em sentido amplo, essencialmente bilaterais, representariam apenas um tipo contratual geral ao lado de outros que, por sua vez, se posicionariam entre o gênero do contrato e os diversos contratos em espécie.

Seguindo essa linha de raciocínio, partindo de tipos “intermediários”, dinamicamente verificáveis entre os contratos típicos e o conceito geral de contrato, seria possível encontrar categorias expansivas que auxiliariam na compreensão de grandes grupos de contratos reunidos pela identidade de algumas de suas principais características típicas. 22

Ascarelli, por exemplo, identifica os contratos plurilaterais por meio de uma série de proposições que, em grande medida, refletem características típicas de um grupo de contratos que poderia ser reunido num tipo contratual geral denominado contrato plurilateral . Tais proposições são adiante resumidas: 23 1) nos contratos plurilaterais existe a possibilidade de vinculação de duas ou mais partes; 2) todas as partes em um contrato plurilateral seriam titulares de direitos e obrigações; 3) os direitos e as obrigações das partes nos contratos plurilaterais estabelecem-se reciprocamente; 4) há possibilidade de adesão de novas partes após a formação do contrato plurilateral; 5) os interesses conflitantes das partes, verificáveis no momento anterior da contratação, devem ser compostos e unificados pela finalidade comum lançada no contrato plurilateral; 6) a execução do contrato plurilateral não se esgota com sua constituição, projetando-se sobre a atividade a ser desenvolvida pelas partes; 7) os contratos plurilaterais são contratos de execução continuada; 8) com esses contratos pode-se constituir uma comunhão de bens; 9) os direitos das partes num contrato plurilateral ficam destinados à realização da finalidade comum, sendo tipicamente equivalentes e podendo sofrer diferenças meramente quantitativas; 10) as obrigações dos sócios podem ser diferentes entre si no contrato; 11) ao contrário dos contratos bilaterais, nos contratos plurilaterais as prestações não são substituídas reciprocamente; l2) a finalidade comum nos contratos pode ser alcançada mediante negociações com terceiros ou diretamente pela atividade dos sócios; 13) os contratos plurilaterais podem ser internos (o fim social é desenvolvido diretamente pelas atividades dos sócios) ou externos (os fins sociais são atingidos pela atuação da sociedade externamente); 14) os contratos plurilaterais são abertos, permitindo acolher um número ilimitado de contratantes; 15) o defeito da manifestação de vontade de uma das partes na formação do contrato plurilateral atinge apenas essa manifestação, e não a própria formação do contrato; 16) há diferença de disciplina entre o contrato plurilateral e o ato de ‘adesão’ ao contrato plurilateral; 17) a eficácia do contrato plurilateral pode dirigir-se à constituição de uma organização estabelecida para o desenvolvimento de relações exteriores.

A partir dessas características (ao lado de outras aqui não referenciadas pelo esforço de síntese), Ascarelli conclui que no contrato plurilateral (ou, melhor dizendo, nesse tipo contratual geral) seria possível abranger tanto o subtipo do contrato de sociedade quanto o subtipo do contrato de associação.

O subtipo do contrato de associação seria caracterizado pelo fato de as atividades serem diretamente desenvolvidas pelos associados, sendo o fim social, por sua vez, diretamente atingido e fruído pelos associados (contrato plurilateral interno).

Essa aparente vitória das correntes contratualistas para explicar o fenômeno associativo em sentido amplo, envolvendo tanto associações quanto sociedades, não parece suficiente, tampouco adequada para retratar o atual panorama do direito brasileiro.

Se para a explicação das sociedades o modelo teórico do contrato plurilateral mantém-se razoavelmente intacto – no máximo desatualizado perante os recentes enfoques da análise econômica do direito 24 –, uma …

Experimente Doutrina para uma pesquisa mais avançada

Tenha acesso ilimitado a Doutrina com o plano Pesquisa Jurídica Avançada e mais:

  • Busca por termos específicos em uma biblioteca com mais de 1200 livros.
  • Conteúdo acadêmico de autores renomados em várias especialidades do Direito.
  • Cópia ilimitada de Jurisprudência, Modelos, Peças e trechos de Doutrina nas normas ABNT.
Ilustração de computador e livro
Comparar planos
jusbrasil.com.br
16 de Junho de 2024
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/secao/6231-o-componente-integrativo-da-eficacia-o-registro-dos-estatutos-623-a-associacao-sem-fins-economicos-no-plano-da-eficacia-associacoes-ed-2023/1804174165