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Sumário:
Mário Henrique Ditticio
Graduado e Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Ex-defensor Público do Estado de São Paulo (entre 2007 e 2018), lotado na unidade júri. Ex-assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Assessor jurídico do Programa Fazendo Justiça, convênio CNJ/PNUD.
mhditticio@gmail.com
A característica peculiar do processo de crimes dolosos contra a vida – o procedimento bifásico e o julgamento do mérito por jurados leigos –, transforma a impetração de habeas corpus no Tribunal do Júri em matéria específica no sistema de justiça penal, consideradas a atuação da defesa e da jurisdição.
O presente artigo tem como objetivo esboçar um breve panorama dos habeas corpus no procedimento do júri a partir da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A estrutura do texto acompanhará a ordem cronológica do procedimento, desde o recebimento da denúncia até o julgamento das impugnações contra a decisão do Conselho de Sentença, identificando-se as situações processuais que dão ensejo à parcela relevante das impetrações e o respectivo quadro da jurisprudência recente da Suprema Corte 1 .
O processo dos crimes dolosos contra a vida é bifásico 2 . A primeira fase do procedimento (o juízo de formação da culpa) começa com o recebimento da denúncia e termina com a decisão de pronúncia, impronúncia, desclassificação ou absolvição (sumária ou imprópria). A segunda fase consiste no julgamento do mérito, competência do Conselho de Sentença.
Sob a ótica da defesa, o juízo de formação da culpa apresenta três momentos sensíveis principais: (i) a denúncia e seu recebimento; (ii) a instrução processual; (iii) a pronúncia.
A matéria de defesa arguível nos dois primeiros pontos não difere, em essência, das questões comuns ao rito ordinário. Convém destacar apenas um aspecto: o momento de arguição da nulidade 3 .
O art. 571 do CPP estabelece o prazo final em que as nulidades devem ser arguidas pelas partes, sob pena, a princípio, de preclusão 4 . As hipóteses relativas ao procedimento do júri encontram-se nos incisos I, V e VIII 5 .
As regras quanto ao momento de alegação das nulidades dos processos do júri, portanto, são as seguintes: as ocorridas na primeira fase do procedimento devem ser alegadas até a pronúncia; nulidades ocorridas após a pronúncia devem ser alegadas até o início dos trabalhos do Tribunal do Júri; as que se derem durante a sessão plenária de julgamento devem ser arguidas assim que ocorrerem.
A primeira fase do procedimento encerra-se com a preclusão da decisão que pronuncia o acusado, impronuncia-o, desclassifica a imputação ou absolve o réu sumariamente 6 .
O processo seguirá à segunda fase, portanto, unicamente se o juiz pronunciar o acusado, “convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação” 7 .
A primeira fase do procedimento foi idealizada para funcionar como um filtro em favor do cidadão, a quem é garantido que acusações desprovidas de um mínimo lastro probatório não serão levadas adiante para serem apreciadas pelo Conselho de Sentença 8 .
A decisão poderá ser impugnada mediante recurso em sentido estrito 9 . “Preclusa a decisão de pronúncia, os autos serão encaminhados ao juiz presidente do Tribunal do Júri”, a fim de que intime as partes a oferecer rol de testemunhas e requerimento de documentos ou diligências para o julgamento em plenário 10 .
A jurisprudência do STF é pacífica no sentido de que a interposição de recursos especial ou extraordinário contra o acórdão que julga o recurso em sentido estrito não impede a realização do Plenário do Júri, por serem tais recursos destituídos de eficácia suspensiva 11 .
A impugnação da decisão de pronúncia pode abranger (a) o mérito da decisão e/ou (b) a sua forma.
A discussão sobre o mérito das decisões de pronúncia em sede de habeas corpus é bastante limitada, nos casos concretos, pela aplicação do entendimento consolidado segundo o qual não é permitida a reanálise de fatos e provas nessa “estreita via” 12 . A vedação, contudo, não é absoluta e em inúmeros casos o Tribunal acaba por fazê-lo.
A impugnação do mérito das decisões que remetem o acusado a júri abrange dois temas de destacado interesse: o primeiro diz respeito ao atingimento do standard de prova necessário à pronúncia (“indícios suficientes de autoria”); o segundo trata-se da discussão sobre o reconhecimento do dolo nessa fase, frequente nos casos de homicídio no trânsito.
A jurisprudência do STF sobre a suficiência de prova necessária para a pronúncia firmou-se a partir de controvertido “princípio”, criado pela doutrina e acolhido pelos Tribunais de todo o país: in dubio pro societate , segundo o qual,
[d]iante da dúvida quanto à existência do fato e da respectiva autoria a lei estaria a lhe impor a remessa dos autos ao Tribunal do Júri. [...] Vale observar que ‘Não se pede na pronúncia, nem se poderia, o convencimento absoluto do juiz da instrução, quanto à materialidade e a autoria. Não é essa a tarefa que lhe reserva a lei. O que se espera dele é o exame do material probatório ali produzido, especialmente para a comprovação da inexistência de quaisquer das possibilidades legais de afastamento da competência do Tribunal do Júri’ [...] 13 .
Referido princípio encontraria abrigo constitucional, ao lado do princípio da presunção de inocência, tratando-se de verdadeiro corolário da competência constitucional do Júri. 14
Apesar da hegemonia histórica dessa construção, a Segunda Turma do STF proferiu decisão recente que pode representar alguma alteração na jurisprudência consolidada em direção a um maior refinamento teórico 15 .
Pela relevância da matéria, transcrevo trechos do voto do Ministro relator:
3. Do standard probatório para a decisão de pronúncia e a incongruência do princípio in dubio pro societate
[...] diante de um estado de dúvida, em que há uma preponderância de provas no sentido da não participação dos acusados nas agressões e alguns elementos incriminatórios de menor força probatória, o Tribunal optou por alterar a decisão de primeiro grau e pronunciar os imputados.
Considerando tal narrativa, percebe-se a lógica confusa e equivocada ocasionada pelo suposto ‘princípio in dubio pro societate ’, que, além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova. Além de desenfocar o debate e não apresentar base normativa, o ‘in dubio pro societate ’ desvirtua por completo o sistema bifásico do procedimento do júri brasileiro, esvaziando a função da decisão de pronúncia.
[...]
Sem dúvidas, para a pronúncia, não se exige uma certeza além da dúvida razoável, necessária para a condenação. Contudo, a submissão de um acusado ao julgamento pelo Tribunal do Júri pressupõe a existência de um lastro probatório consistente no sentido da tese acusatória. Ou seja, requer-se um standard de prova um pouco inferior, mas ainda assim dependente de uma preponderância de provas incriminatórias.
[...]
Como visto, neste caso concreto, conforme reconhecido pelo juízo de primeiro grau [...] há uma preponderância de provas no sentido da não participação dos imputados [...] nas agressões que ocasionaram o falecimento da vítima.
Ainda que se considere os elementos indicados para justificar a pronúncia em segundo grau e se reconheça um estado de dúvida diante de um lastro probatório que contenha elementos incriminatórios e absolutórios, igualmente a impronúncia se impõe. Se houver uma dúvida sobre a preponderância de provas, deve então ser aplicado o in dubio pro reo , imposto nos termos constitucionais (art. 5º, LVII , CF), convencionais (art. 8.2, CADH) e legais (arts. 413 e 414 , …
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