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Direito Ambiental Brasileiro

Direito Ambiental Brasileiro

Introdução ao Direito Penal Ambiental Brasileiro

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Matheus Almeida Caetano 1

1. Introdução 2

A Lei 9.605/98 (ou Lei de Crimes Ambientais) foi uma tentativa de compilar os crimes ambientais existentes de forma esparsa no ordenamento jurídico-penal brasileiro (inicialmente ao unificar alusivamente os revogados Código Florestal Brasileiro, Lei 4.771/65 – hoje vigente sob a Lei 12.651/12 – e Código de Caça, Lei 5.197/67), mas o que se conseguiu fora apenas uma limitada harmonização das normas ambientais com conteúdo jurídico-penal, já que essa matéria também se faz presente, por exemplo, nas seguintes leis não revogadas por aquela, Lei 6.453/77 (danos nucleares), Lei 7.802/89 (agrotóxicos) e Lei 11.105/05 (biotecnologia).

Inicialmente se adverte que o presente capítulo não exaurirá todos os temas e aspectos inerentes aos crimes ambientais na ordem jurídica brasileira, nem se propõe a ser um comentário à Lei de Crimes Ambientais. Pretende-se, tão só, expor e desenvolver os principais aspectos da dogmática jurídico-penal ambiental através de alguns institutos e exemplos presentes nas assim denominadas partes geral e especial da Lei 9.605∕98, a saber: o bem jurídico-penal ambiental (2), o injusto penal material ambiental (3), o Direito Penal Secundário (4), a acessoriedade administrativa e as normas penais em branco do Direito Penal Ambiental (5) e alguns aspectos sobre a Lei de Crimes Ambientais (6). Antes da análise dessas características da dogmática jurídico-penal ambiental, bem como dos principais aspectos da legislação criminal ambiental, imprescindível se faz algumas notas sobre o complexo objeto de tutela envolvido: o meio ambiente e seus elementos.

2. O bem jurídico-penal ambiental

Antes de desenvolver os aspectos do bem jurídico-penal, é necessária uma introdução ao bem jurídico ambiental. Por sua natural complexidade, esse exige uma abordagem diferenciada ao se permitir uma fragmentação em pequenas parcelas independentes do todo que mantêm a qualidade de bens ambientais autônomos e dignos de proteção, sem que isso implique quebrar a sua caracterização global e indivisível. Portanto, trata-se, respectivamente, das categorias jurídico-ambientais de microbens e macrobem ambientais 3 .

Sobre as relações entre os microbens e o macrobem, lembra-se que é o meio ambiente um sistema complexo 4 , no qual as várias combinações entre os elementos bióticos (animais, plantas e homens) e os abióticos (água, solo, ar) possibilitam o surgimento de outras realidades dignas de proteção 5 , por exemplo, os animais semelhantes (bem concreto, corpóreo e material) quando reunidos formam a espécie daqueles (bem abstrato, incorpóreo e imaterial), já a soma de todas as espécies de animais constitui a fauna 6 . Dessa forma, as razões fáticas de proteção do macrobem e dos microbens – enquanto bens jurídicos ambientais – decorrem de que:

[...] a proteção da integridade ecológica e dos bens naturais considerados individualmente não pode ser dissociada da proteção funcional do patrimônio natural globalmente considerado – i.e., dos bens naturais e do conjunto das suas relações. É o que resulta de uma das características básicas dos sistemas ecológicos: a interdependência dos bens naturais que compõem um dado sistema e dos sistemas ecológicos em si. 7

Também assim, segundo Mirra, “o meio ambiente é um sistema de relações muito complexas, de uma grande sensibilidade à variação de um só desses fatores, que produz reações em cadeia” 8 . Portanto, toda a complexidade ecológica (o macrobem) depende dos microbens e vice-versa, de modo que “uma lesão num elemento do ecossistema possa vir a provocar um desequilíbrio global e irreversível” 9 . Note-se que é justamente sobre os microbens que recai, em primeira linha, a interferência do homem, o que deve implicar a tutela jurídica desses, que conduzirá, por sua vez, à do macrobem 10 . A complexidade do bem ambiental propicia o surgimento de uma heterogeneidade de deveres de proteção do ambiente ao protegê-lo como macrobem, no qual “o dever de proteção reparte-se igualmente por todos, embora o seu conteúdo possa variar consoante o potencial poluente da atividade desenvolvida” 11 . Por outro lado, na tutela da vertente material dos bens ambientais, os microbens, “o dever de proteção recairá, em primeira linha, sobre o titular do direito de propriedade, porque só ele tem o acesso direto à coisa corpórea que envolve o bem” 12 .

O macrobem “tem um grande conteúdo de abstração” 13 , o que permite diferenciá-lo dos elementos reais da natureza (rios, animais, árvores, solo, ar, ou seja, os microbens) 14 , apenas podendo ser compreendido enquanto categoria essencialmente axiológica 15 e normativa 16 , sendo obrigatoriamente diferenciada (não estanque) dos bens ambientais concretos. Protege-se aqui um estado de equilíbrio ecológico dos suportes materiais do bem natural (condições ótimas físico, químico e biologicamente falando dos bens naturais), impondo a todos o dever de preservá-lo e o direito a usufruí-lo 17 . Suas características são: a incorporeidade e a imaterialidade 18 ; é um bem indivisível 19 , unitário 20 , inalienável 21 , além de não permitir qualquer tipo de penhora e/ou prescrição 22 ; é também um bem público, cuja natureza é de uso comum do povo (indisponibilidade) 23 .

Os microbens ambientais constituem a multifaceta real do meio ambiente 24 , a concretização material dos elementos constituintes do macrobem, os quais “[...] em si mesmos, também são bens jurídicos: é o rio, a casa de valor histórico, o bosque com apelo paisagístico, o ar respirável, a água potável” 25 . Decorre dessa materialidade a importância de conceituá-los e protegê-los através do sistema normativo (seja ele o ambiental, seja o penal, sujeitos às respectivas peculiaridades e exigências de cada ramo jurídico), pois será justamente sobre eles (os microbens), conforme explicitado, que recairá a ação impactante do homem. Os microbens ambientais caracterizam-se pela sujeição ao duplo regime de titularidade dominial (o público, enquanto propriedade do Estado, e o privado) 26 ; em regra, são corpóreos (como as florestas, os animais, as águas e os solos, por isso apropriáveis comercialmente pelo homem) 27 . Quanto a nós, parece que o Direito Penal Ambiental somente pode destinar-se à tutela subsidiária e fragmentária de microbens ambientais, uma vez que a amplitude do macrobem ambiental pode ensejar criminalizações de condutas insignificantes ou destituídas de ofensa ao bem jurídico-penal tutelado 28 .

Apresentadas as categorias de macro e microbens ambientais, agora se passa às três formas básicas de compreensão do bem jurídico meio ambiente 29 , a saber: (i) a ecocêntrica; (ii) a antropocêntrica pura; (iii) a ecoantropocêntrica. Essas compreensões ultrapassam o aspecto do bem jurídico-penal, pois envolvem temas da teoria geral do direito, como os sujeitos de direito, a capacidade jurídica, o conceito de pessoa em direito, de coisa, de objeto jurídico e de bem jurídico, além de constituírem as razões de fundo da proteção do meio ambiente, as quais acarretarão consequências diversas aos planos da normatividade ambiental e penal ambiental.

A compreensão ecocêntrica (i) 30 é inaceitável, pois, além de promover o translado de um universo antropocêntrico para um biocêntrico, ela acarreta, no plano jurídico, a atribuição da condição de sujeito de direito à natureza e aos seus elementos 31 . Essa perigosa inversão de perspectiva ética faz com que o homem perca “o duplo privilégio de ser a fonte exclusiva do valor e o seu fim” 32 , o que leva, por exemplo, a considerar em um mesmo plano valorativo a provocação da morte de um animal ou de um homem. Tal negação do dualismo homem-natureza instaura “o reino da imanência absoluta”, no qual o curso dos astros, a cultura, o voo de um pássaro e os princípios da ética teriam um mesmo sentido 33 . A fusão cultura-natureza, homem-meio ambiente, valor-fato provoca uma mitigação tanto do direito quanto da categoria sujeito de direito 34 , uma vez que isso também poderia dar ensejo a uma escala valorativa entre os seres humanos.

Müller-Tuckfeld considera-a incompatível com o direito vigente, chamando atenção para a ausência da “condição de sujeito com capacidade jurídica (ainda que corporativa)” 35 do meio ambiente 36 . É contraproducente fazer da natureza ou de seus elementos sujeitos de direito, o que geraria muitos problemas irresolúveis para a teoria geral do direito, atingindo o próprio direito penal 37 . Não seria estranha aqui a hipótese de incriminação de condutas que lesionassem qualquer forma de vida (seja uma formiga, seja uma hortaliça 38 ), sendo possível vislumbrar, até mesmo, hipóteses de legítima defesa entre um animal e um homem; e de estado de necessidade entre as espécies. Um animal ao defender os membros de sua família ou de sua espécie do ataque de um predador não está a fazer justiça ou ciente de uma situação de legítima defesa ou de estado de necessidade, ele simplesmente age e reage para se defender através de um instinto de preservação da própria vida. Portanto, o núcleo da problemática dos animais serem titulares de direitos (ou bens jurídicos tutelados pelo direito penal) reside no plano dos valores, que, posteriormente, o direito moldará conforme os seus princípios, regras e axiomas.

Já a compreensão antropocêntrica pura (ii) faz do indivíduo o centro exclusivo de todos os interesses, “todas as coisas, os bens e inclusive a natureza são tidos como valiosos apenas enquanto produzam utilidade para os humanos” 39 . Seria, nesse sentido, indiferente a extinção de uma espécie, seja animal, seja vegetal 40 . O perigo desse antropocentrismo puro reside na opulência com que é visto o meio ambiente, funcionalizado exclusivamente conforme os interesses humanos; trata-se aqui da teoria monista-pessoal do bem jurídico 41 . A sua adoção implicaria uma mitigação do Direito Penal Ambiental, já que o meio ambiente e seus elementos seriam considerados, ou como manifestações do bem jurídico-propriedade, ou como instrumentos propícios a lesar a vida ou a integridade física da pessoa, constituindo os ataques àqueles em meras “modalidades especiais de crimes de lesões ou de danos” 42 .

A compreensão ecoantropocêntrica (iii) apresenta-se como a mais equilibrada entre os exageros e os problemas das perspectivas anteriores, inclusive a ordem jurídica nacional caracteriza-se por uma mescla de correntes antropocêntricas e ecocêntricas, não sendo admissível falar-se nem em antropocentrismo puro nem em ecocentrismo absoluto 43 . Sendo o Direito uma das esferas da cultura 44 , é o homem o criador e o destinatário da norma (leia-se: a proteção do meio ambiente é de cunho antropocêntrico), mas tampouco se trata de um antropocentrismo puro, há bens jurídicos ambientais (e inclusive penais) sem aproveitamento humano conhecido ou rentável ou sem qualquer recondução aos bens jurídicos pessoais 45 . Essa compreensão é somente compatível com a teoria dualista do bem jurídico 46 , pois transcende os bens pessoais, reconhecendo a mesma (dignidade e) legitimidade desses quanto dos coletivos, e, portanto, a autonomia desses em relação àqueles: “[...] uma teoria dualista não terá qualquer dificuldade em reconhecer o meio ambiente como um bem jurídico coletivo, nem sempre redutível a bens jurídicos individuais” 47 .

A adoção do posicionamento dual não implica desvalorização do homem diante do social; ao contrário, permite um fortalecimento dos laços humanos através do meio ambiente que, por sua vez, traz retornos ao próprio homem, já que o direito ao meio ambiente equilibrado está intimamente ligado à dignidade da pessoa humana. Porém, cabe à compreensão ecoantropocêntrica tornar visível a orientação filosófica que informará toda a arquitetura do bem jurídico (o sentido do meio ambiente para a proteção jurídico-penal) e, por consequência, dos tipos nos crimes ambientais 48 .

Embora se reconheça as dificuldades de assimilação de um objeto tão polimórfico, bem como a necessidade de “tentar encontrar e definir, tanto quanto possível com rigor [...] o bem ou bens jurídicos que o direito do ambiente deve proteger” 49 , ele (s) deve (m) atender indubitavelmente aos dois pressupostos de legitimidade: (1) a generalidade (os bens ou condições a serem protegidos devem interessar à maioria da sociedade, e não apenas a uma parcela dessa) e (2) a relevância – “[...] a intervenção penal apenas se justifica para tutelar bens essenciais para o homem e a sociedade, vitais. O contrário é um uso sectário ou frívolo do Direito Penal: a sua perversão” 50 . Isso colocado, apresenta-se as características dos verdadeiros bens jurídicos coletivos, a saber: (a) a de não exclusão no uso; (b) a de não rivalidade no consumo (aspecto semelhante a ideia de bem de uso comum mencionado acima ao ser tratado o bem ambiental); e (c) a de não distributividade (aspecto similar a indivisibilidade do bem ambiental) 51 .

A não exclusão no uso (a) apresenta-se como a principal diferença em relação aos bens individuais, pois não afasta os indivíduos quanto ao uso do bem comum. Sobre aqueles, os titulares têm direitos subjetivos de oposição erga omnes em face de todas e quaisquer pessoas, o que não ocorre com o meio ambiente, bem coletivo de uso comum 52 . A não rivalidade no consumo (b) 53 aconselha a não se compreender o bem jurídico “[...] como um puro valor ideal”, pois ele é “vulnerável frente a um consumo contrário ao ordenamento e, portanto, pode ser reduzido ou destruído” 54 . A não distributividade (c) fará com que um bem seja caracterizado como coletivo, quando se apresente real, conceitual ou juridicamente impossível fracioná-lo em partes e dividi-lo em porções individualizadas 55 . Isso tem consequências significativas na aplicação do Direito Penal Ambiental, sobretudo pela redução de alguns âmbitos de aplicação das causas de exclusão da tipicidade e da ilicitude 56 .

O bem ambiental tutelado é “axiologicamente diferenciado dos bens até agora objeto de tutela” 57 , por exemplo, (o artigo 157 CP) o roubo de um animal silvestre (objeto da ação), cujo bem jurídico-penal tutelado é a propriedade sobre aquele (“coisa alheia móvel”) era uma forma de proteção indireta daquele microbem 58 . Por sua vez, por meio dos artigos 29 e 32 da Lei 9.605/98, protege-se, como bens jurídico-penais, a fauna em termos diretos no primeiro, e, no último, “a integridade física e o bem-estar dos animais [...] sustentando-se tratar de valores, de ‘interesses-da-vida’, que pertencem ao próprio animal” – embora a doutrina tenha perquirido qual (-is) seria (m) o (s) concreto (s) bem (-ns) jurídico--penal (-is) tutelado (s) no tipo penal de crueldade contra animais, gerando discussões candentes na doutrina 59 . Isso fez com que os animais não fossem considerados meros objetos dos homens (o que não implica, por sua vez, a assunção de novos sujeitos de direitos, ou pelo menos não nos mesmos moldes dos seres humanos, caso assim fosse, o roubo de um cão ou outro animal seria passível de ser tratado como sequestro, constrangimento ilegal ou cárcere privado – dependendo das circunstâncias do caso e admitida uma inaceitável noção ecocêntrica pura) 60 .

Reconhece-se, portanto, a teoria dualista por atribuir a mesma dignidade e legitimidade à tutela de bens jurídicos individuais e coletivos, como é o caso do meio ambiente; bem como a compreensão ecoantropocêntrica por ser a única capaz de promover uma tutela penal dos bens ambientais sem qualquer distorção ou limitação pessoal. Por fim, não se pretende abordar todas as teorias e as polêmicas circundantes ao bem jurídico-penal, tão só se arranca da forte e convicta proposta de que não há crime sem bem jurídico afetado, ofendido, e com isso passa-se ao desenvolvimento da ideia de injusto penal material ambiental.

3. O injusto penal material ambiental

O conceito material 61 de que se parte (caracterizado por conceitos valorativos) liga-se aos três elementos constitutivos do delito, respectivamente: o resultado (o princípio da ofensividade), a ação (o princípio da materialidade) e a culpabilidade (princípio da responsabilidade pessoal) 62 . As ideias de bem jurídico-penal e ofensividade amarram-se de tal maneira a constituírem o núcleo da antijuridicidade material 63 que, quanto a nós, apresenta-se como a mais compatível com o Estado Democrático de Direito 64 .

Um primeiro nível de valoração para um legítimo injusto penal material é assim firmado: o Direito Penal Ambiental destina-se à tutela de alguns bens jurídico-penais ambientais 65 . A proteção dos bens jurídico-penais ambientais apresenta-se de modo que “não se pode admitir que os delitos contra o ambiente possam ter por objeto o próprio controle ambiental e não bens jurídicos materiais, imediatamente lesados” 66 . Disso decorre o segundo nível de valoração, capitaneado pelo princípio da ofensividade (nullum crimen sine iniuria), ou seja, esse como elemento imprescindível do ilícito penal material 67 , logicamente não o único, de modo a estabelecer que: não há crime sem ofensa a bem jurídico-penal 68 . Essa é “uma inafastável exigência para a legitimidade do ilícito-típico na ordem jurídico-penal brasileira, após a Constituição Federal de 1988” 69 , a qual procura identificar o resultado da relação entre a prática da conduta típica e o objeto de tutela da norma.

Tamanha é a sua relevância para o Direito Penal que, nas palavras de Faria Costa, “[...] a ofensa a um bem jurídico é a pedra de toque que pode legitimar a intervenção do detentor do ius puniendi (o Estado), enquanto entidade suscetível de cominar males eticamente legitimados” 70 . Assim deve ser porque a ofensividade representa o divisor de águas entre o fato penalmente relevante e os demais fatos civil ou administrativamente significativos, ou seja, há situações reais de danos ou de perigos (ambientais) que não representam significado para o Direito Penal (Ambiental). Esse princípio tem uma dupla função: (i) em um primeiro patamar (de lege ferenda ou de jure condendo como limite ao ius puniendi) volta-se para o momento legiferante, de maneira a atuar como diretriz ao legislador 71 ; (ii) em um segundo (de lege lata ou de jure condito como limite ao ius poenale) o destinatário é o aplicador da norma, o Judiciário e as demais instituições indispensáveis ao funcionamento da Justiça, tratando-se de uma diretriz interpretativa 72 .

Assim, é significativo o potencial decorrente dessa última função da ofensividade, porque ela implica uma possível recuperação de normas jurídico-penais em vigor, cujo déficit – em termos da primeira função orientativo-legislativa – é grave, ou seja, as leis editadas sem arrimo algum na ofensa ao bem jurídico. Por fim, o princípio da lesividade (embora melhor seria falar-se em ofensividade, conforme já destacado) “atua como uma afiada navalha descriminalizadora, idônea para excluir, por injustificados, muitos tipos penais consolidados, ou para restringir sua extensão por meio de mudanças estruturais e profundas” 73 .

A relevância do injusto material decorre de sua atuação como fundamento axiológico da natureza lesiva do resultado 74 , admitindo-se três níveis de ofensa (os quais constituem respectivos desvalores de resultado): o dano/violação; o concreto pôr-em-perigo; e o cuidado-de-perigo; todos esses compactuando do fio condutor da “perversão da matricial e originária relação de cuidado-de-perigo” 75 . O desvalor de resultado não pode ser dispensado nem considerado como mera condição objetiva de punibilidade, advertindo-se que a proposta integrativa do injusto material não representa uma desconsideração do desvalor da ação e nem uma supervalorização do desvalor do resultado, mas antes uma perspectiva integrada desses dois desvalores como correta (leia-se legítima) apreensão do ilícito penal ambiental. O desvalor da ação e o desvalor do resultado constituem cumulativamente o resultado do injusto material, pois não é possível colocar a “falsa opção entre o desvalor do ato e desvalor do resultado”, qualquer redução a uma ou outra esfera implica “reduzir a capacidade limitadora do discurso jurídico-penal” 76 .

Afasta-se assim o mero desvalor da ação, exigindo-se para a configuração do injusto material um efetivo resultado jurídico, ora, a desobediência às diretrizes administrativas (seja em sua faceta de ato, seja de norma, conforme a espécie de acessoriedade administrativa envolvida no tipo penal, conforme desenvolvido infra no item 5 e ss.) não tem o condão de transformar o ilícito administrativo em penal pelo mero descumprimento, o que já afasta também a possibilidade de fundamentação desse grupo de casos em modelos delitivos de mera desobediência, de infração de dever ou de delitos de comportamento. Nesse sentido, seguem dois exemplos para exemplificar a relevância do injusto penal material na concretização das normas penais ambientais brasileiras.

O primeiro deles refere-se ao artigo 49 da Lei 9.605/98 77 , um nítido caso de atipicidade material por não ser possível contemplar qualquer bem jurídico-penal 78 , o que não suplanta nem o primeiro nível de valoração do injusto, conforme supramencionado. Esse tipo penal é flagrantemente inconstitucional, seja pela violação crassa do princípio penal constitucional de proteção de bens jurídicos 79 , seja pela desproporcionalidade, irrazoabilidade, insignificância 80 e pela absoluta ausência de ofensa. A relevância prática disso está na possibilidade real de uma condenação a uma pena de detenção de três meses a um ano, ou, imaginando-se alguém em livramento condicional ou sursis penal que, caso realize essa (para além de questionável) conduta típica, poderia perder quaisquer dos benefícios 81 , retornando ao cumprimento da pena privativa de liberdade 82 – por exemplo, um indivíduo apaixonado que presenteia a sua musa com uma rosa apanhada em praça pública ou em um jardim particular 83 , ou até mesmo, “alguém [...] em sua caminhada matinal, imprudentemente, ou seja, sem intenção, vontade ou assunção do risco, pisado em algumas poucas plantas de ornamentação do logradouro público do local, onde se exercitava” 84 .

O outro exemplo decorre do artigo 52 da Lei 9.605/98 85 . Considerando que o indivíduo A, residente em um pequeno sítio localizado próximo a uma Unidade de Conservação B (UC B), ambos localizados em um local de difícil acesso e com recente infraestrutura instalada (por exemplo, estrada, telefone público, posto de combustível). A volta da pacata cidade C com alguns produtos destinados aos serviços de manutenção de seu sítio, mas abrupta e inesperadamente tem um problema com o seu veículo na estrada que circunda a UC B. Tendo em vista as avançadas horas da noite e sem contato telefônico, A decide pegar os seus produtos (destaque aqui para a sua vara de pesca que costuma utilizar no pequeno riacho que passa por sua propriedade rural) e cortar caminho através da UC B. Infortunadamente, o policial ambiental E o intercepta e dá-lhe voz de prisão. Eis o exemplo, nota-se que a conduta típica (formal) está (aparentemente) completa: A penetrou a UC B com os produtos destinados aos serviços de manutenção do sítio (a vara de pesca ou outro instrumento proibido pelo tipo), obviamente sem licença da autoridade competente 86 .

Há crime a ser perseguido pelo Estado aqui? O que muda em face do princípio da culpabilidade e da ofensividade nesse caso? No modelo de injusto material proposto anteriormente – inspirado na ofensa a bens jurídicos – não ocorreria nenhum crime nesse hipotético caso, pois o indivíduo A que penetra na UC B com instrumentos de manutenção de seu sítio (sem qualquer intuito de caça ou de extração de recursos, produtos ou subprodutos florestais) não provoca nenhuma ofensa ao bem jurídico-penal tutelado em quaisquer dos três níveis possíveis. Não seria o caso aqui nem mesmo de uma hipótese de ato preparatório pela absoluta ausência de dolo, sem quaisquer ressonâncias jurídico-penalmente relevantes. Punir essa conduta seria responder com uma pena ao mero descumprimento da norma, ou seja, adentrar a Unidade de Conservação com instrumentos ou substâncias relacionados à caça ou à exploração florestal “sem licença da autoridade competente”. Em termos jurídico-penais, não passaria o artigo 52 da Lei 9.605/98 de um crime de infração de dever, ou ainda, quando muito, a conduta a ser punida poderia representar um ato preparatório para algum outro ilícito-penal ambiental, o que também constituiria em uma ofensa à presunção de inocência (cfr. nota 290, infra), além de criticável pelas razões já apontadas.

A consequência dessa proposta é uma significativa restrição da tutela penal do meio ambiente, principalmente no tocante à aplicação da Lei 9.605/98, mas, ainda que, em seu espaço diminuto, o Direito Penal Ambiental sai fortalecido ao se preservar dos problemas de legitimidade dos modelos de injusto formais, pois ele acaba por manter os parâmetros de validade jurídico-penais que são exigidos pelo Estado de Direito. No próximo item passa-se ao sentido e às implicações do Direito Penal Secundário – terreno por excelência da proteção penal do meio ambiente – com suas características e diferenças (entendidas as últimas tanto no sentido formal quanto no material) em relação ao Direito Penal Nuclear – espaço do direito penal tradicional, conforme abordagem a seguir.

4. Sobre o lugar do Direito Penal Ambiental: o Direito Penal Secundário

Em termos diretos, pode-se afirmar que alusivamente o Direito Penal Material divide-se em Direito Penal Nuclear 87 e Direito Penal Secundário 88 . Grosso modo, tal classificação rege-se por critérios de ordem formal e material, por exemplo, o lócus da previsão legal (no CP para o nuclear e nas leis extracódigo no secundário) e a natureza do bem jurídico-penal protegido (o pessoal no nuclear e o coletivo no secundário) respectivamente. Ambos os critérios não fornecem unilateralmente uma resposta segura e operacional 89 , o que levará à defesa de outros de ordem material e formal (sempre cumulativos) para a identificação dessas modalidades.

Destaca-se a necessidade de afastamento de quaisquer indícios ou efetivos juízos (apressados) de mitigação ou infravaloração do Direito Penal Secundário, pois ele “é tão importante como o direito penal nuclear” 90 . Embora se reconheça que, no sentido hierárquico-valorativo, “a introdução, no código penal, de um ou vários tipos legais de crime [...] arrasta um valor acrescentado, não só ao nível de símbolo, mas fundamentalmente na correspondência do seu tratamento dogmático” 91 . Em contrapartida, esse constante afastamento do modelo jurídico-penal iluminista faz com que D’Ávila manifeste uma preocupação com os novos espaços de normatividade 92 , em especial, com o direito penal ambiental, “[...] convertido em amplo campo de prova do que pode vir a ser o direito penal nos anos que seguem, muito tem a contribuir para a feição, ainda demasiadamente frágil, do direito penal que se deseja …

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26 de Maio de 2024
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