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16 de Junho de 2024
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    A arquitetura de Brasília pode influenciar no regime democrático?

    Publicado por Justificando
    há 9 anos

    Quando concebida e planejada em 1950 e início dos anos 60, Brasília representava as esperanças do povo brasileiro, em particular o seu desejo por modernidade.

    O projeto que já se alastrava durante anos, e refletido na Constituição de 1946, foi efetivado na presidência de Juscelino Kubitscheck, que assumiu o governo em 1956. Era necessária a transferência da capital do Rio de Janeiro para o planalto central em nome de uma nova geopolítica.

    Influenciada pelo boom modernista e econômico da época surge Brasília, coração politico da terra do cruzeiro, trazendo na sua perfeita arquitetura e organização os anseios do brasileiro por uma nova era e por ser o ponto central do país, todo e qualquer cidadão teria amplo acesso.

    Brasília vista de cima deslumbra e encanta, de fato, parece corresponder a ideia central de Niemeyer, como sendo a representação dos anseios por modernidade e mudança do povo brasileiro. Vista do nível do chão, porém, do lugar onde as pessoas moram e trabalham, é uma das cidades mais inóspitas do mundo! E até aonde a arquitetura e a disposição geográfica de Brasília poderiam influenciar em um regime democrático?

    O cientista politico nova iorquino Marshall Berman, em visita à Capital Federal no ano de 1987, teve a mesma sensação que muitos de nós ao chegar a Brasília: “Não cabe a mim uma descrição detalhada do projeto, mas a sensação que tive – e confirmada por outras pessoas que lá estiveram – é que a cidade, apesar da beleza arquitetônica, possui enormes espaços vazios, onde o indivíduo se “sente mais sozinho do que um homem na lua” [1].

    Conforme ele mesmo observa, a ausência deliberada de espaços públicos vai à contramão da tradição do urbanismo latino americano em que a vida se organiza em torno de grandes praças, onde as pessoas se olham nos olhos, conversam e se reúnem. [2]

    Frise-se que não se trata de uma crítica à Brasília como cidade ou as pessoas que lá vivem, mas sim uma crítica como centro político e de tomada de decisões em um regime democrático, que é a República Federativa do Brasil.

    O afastamento de Brasília das demais cidades do Brasil, bem como dos seus próprios cidadãos, tem confirmado toda essa tese.

    O colapso político, econômico e moral desencadeado no ano de 2015 trouxe a tona um fato que, se não era percebido pela maioria dos brasileiros, era pelo menos ignorado: a crise de representatividade alijada ao distanciamento dos cidadãos para com os seus representantes (nos três poderes).

    A dinâmica da sociedade atual nos coloca diante de totalitarismos (expressos ou velados), que cada vez mais afastam a liberdade-participação do cidadão no processo decisório.[3] Esse afastamento da ação política no viver em sociedade está intrinsecamente ligado à crise de representatividade que se tornou latente nos últimos anos. [4] Nas palavras de Miguel Reale [5], estamos diante de um totalitarismo normativo, em que um pequeno grupo de homens decide sobre tudo e todos, substituindo-se o povo.

    Isto posto, a falta de identidade democrática que existe entre governantes e governados é resultado direto da não observância plena do Princípio da Cidadania decorrente do art. 1, II da Constituição Federal de 1988. A cidadania, entendida como a identidade política do indivíduo ou, em uma concepção Arendtiana, como “quintessência da liberdade” [6], garante ao cidadão o gozo dos direitos políticos ,[7] entendidos como aqueles que competem ao indivíduo como elemento pessoal do Estado. Percebe-se, portanto, que a cidadania emerge da soberania popular como direito de participação no processo político, bem como da tomada de decisão sobre os assuntos do governo.

    Nas palavras da Professora Maria Garcia[8], o indivíduo estará obedecendo, em última análise, não às ordens de um poder superior, mas sim às suas próprias ordens e determinações, pois cada indivíduo, na democracia, concorre para a formação dela. Democracia é, portanto, autodeterminação, pois a formulação das normas jurídicas se dá por aqueles mesmos que devem obedecê-la, na acepção kelseniana.

    Infelizmente, essa não é a realidade que vigora no sistema político brasileiro. O ano de 2015 trouxe à tona diversas demonstrações de como a distância entre o povo e seus representantes no Congresso Nacional é latente, e talvez hoje, tendo em vista os mais variados meios de comunicação, tenhamos nos dado conta que além dos nossos olhos, Brasília também esteja longe do nosso controle.

    Sem me aprofundar, cito claros exemplos no plano dos três poderes:

    O Judiciário, representado em Brasília pelo Supremo Tribunal Federal – além do STJ -, ainda que tenha votado nos últimos anos temas progressistas, como o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo como entidade familiar equiparada a união estável (ADI nº 4277), o reconhecimento do Estados de Coisas Inconstitucional (ECI) no sistema prisional brasileiro (ADPF 347)[9] e esteja votando a Declaração de Inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas (RE 635.659), ainda sofre de forte influência política por parte dos seus Ministros (seja ideológica ou decorrente do processo de escolha dos mesmos), um claro exemplo é a fatídica ADI 4650 proposta pela OAB e que visava a declaração de inconstitucionalidade do financiamento privado de campanha, a qual ficou exatos 532 dias com o excelentíssimo Ministro Gilmar Mendes, sob o pretexto de “vista” do processo. Atitude lamentável diante da situação e do clamor por uma “Reforma Política” no seio da sociedade. Ou, por outro lado, a indicação de Ministros que já tenham atuado diretamente como patronos de partidos políticos e que agora estejam os julgando.

    O Congresso Nacional, diuturnamente, tem se tornado o bunker por meio do qual os parlamentares têm feito prevalecer a sua vontade e os seus interesses em detrimento do povo e, até mesmo, da dos seus pares. Sem me aprofundar no debate (o que gostaria), temos a votação da redução da maioridade penal, que, apesar de representar, segundo dados de pesquisa, o anseio da maioria da população, foi aprovada mediante um “neo-processualismo” do Presidente da Câmara dos Deputados, um dia após a rejeição da EC principal, violando frontalmente a Constituição Federal[10]. A quantidade de Emendas à Constituição, que já se aproximam de 90[11], e que, ao certo, poucas pessoas sabem o que se têm retirado e acrescentado à Carta Maior. Aprovação de “pauta-bomba” pela oposição que visa um cenário de “quanto pior, melhor” onera ainda mais o povo, e só serve para “chutar cachorro morto”, ou, como preferir chamar o Executivo, de terrae brasilis. E, por último, o PL 2016/15, que trata da lei antiterrorismo, que , apesar da sua ressalva, pode ser utilizado diretamente para a criminalização dos movimentos sociais, conformando assim o controle final e institucionalizado sobre a sociedade.

    Se a Capital Federal se localizasse em alguns dos grandes centros, tais como Rio e São Paulo, será que ainda haveria essa “tranquilidade” no trato com a coisa pública?

    Logo, seria Brasília, localizada no centro geográfico do país uma espécie de Panóptico moderno, idealizado por de Jeremy Bentham, no século XVIII, para substituir as masmorras escuras da idade média?

    O Panóptico era uma prisão circular em forma de anel e com uma torre no meio, ao passo que todas as celas poderiam ser vigiadas e vistas, porém nenhuma das celas podia ver aquele que os via. As prisões circulares serviam apenas para esconder em seu epicentro o poder dominador, a qual tudo via sem ser visto. Com o passar dos anos a concepção do Panóptico fora ampliado, não se limitando às prisões, avançando para as escolas, hospitais, manicômios, etc.

    Na óptica do Foucault, somos forçados a dizer que Brasília não passa de um Panóptico moderno e politico de exercício de poder[12]. Berman vai além e diz que Brasília talvez fizesse sentido para a capital de uma ditadura militar, comandada por generais que quisessem manter a população a certa distância, isolada e controlada. À época escreveu uma carta para Niemeyer relatando sua impressão de Brasília, o que não foi visto com bons olhos pelo arquiteto.

    De fato, o projeto de “ponto de encontro” de todos os povos acabou se tornando em uma região longínqua, desértica, pouco povoada, lugar em que os olhos dos representantes tudo veem sem serem vistos pelas massas nos conchavos antiéticos por lá firmados.

    Para que o Brasil continue democrático é necessário um centro político onde as pessoas possam convergir, se reunir, dirigir-se a seus governantes – porque em uma democracia, afinal de contas, o governo pertence às pessoas – para discutir suas necessidades e desejos.

    Se faz necessário repensar novos caminhos para que a sociedade possa influenciar no Poder Legislativo, pois é evidente que atualmente os partidos políticos se mostram como um fracassado canal de manifestação da comunidade. Os governos representativos hoje sofrem com a mesma doença dos sistemas de partidos: burocratização e tendência ao bipartidarismo, não representando ninguém, exceto as próprias máquinas dos partidos. [13]

    É necessário que o cidadão esteja provido de instrumentos para intervenção no processo legislativo, e até no controle de constitucionalidade das normas, sendo ele diretamente o destinatário da lei posta pelo Estado e ponto formador da sociedade política.

    Segundo Berman, o ponto máximo para um arquiteto moderno era poder usar as tecnologias para criar formas perfeitas, ideias clássicas e eternas, ao passo que se isso pudesse ser feito na escala de uma cidade inteira, ela seria perfeita e completa. Nas palavras do homem subterrâneo de Dostoievski, “para os homens modernos, pode ser uma aventura criativa construir um palácio, e no entanto ter de morar nele pode virar um pesadelo”.[14]

    Assim segue a Capital Federal, da perfeição matemática e pré-fabricada do “Palácio de Cristal” ao poder central que tudo vê e não é visto do “Panóptico”. E, assim como ao espectador do Palácio e aos prisioneiros do Panóptico, ultimamente, não nos têm restado nada mais a fazer.

    Erick Beyruth de Carvalho é Mestrando em Direito Constitucional pela PUC/SP. Aluno de mobilidade na Universidade de Coimbra-PT (2012). Graduação pela IBMEC/RJ. Advogado.
    REFERÊNCIAS [1] BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. 1º ed. São Paulo. Companhia das letras, 2007. P.14 [2] Idem.p.12 [3] GARCIA, Maria. Desobediência Civil: Direito Fundamental. 2.ed. rev. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2004, pg.295 [4] Idem.p.258 [5] Idem. p.260 [6] ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Perspectiva. 2014, p.205 [7] GARCIA, Maria. Desobediência Civil: Direito Fundamental. 2.ed. rev. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2004, pg.139 [8] Idem.p.255 [9] Estado de Coisas Inconstitucional. Disponível em: http://jota.info/jotamundo-estado-de-coisas-inconstitucional. Acesso em:03.10.2015. [10] O neoprocessualismo legislativo de Eduardo Cunha. Disponível em: http://www.criticaconstitucional.com/o-neoprocessualismo-legislativo-de-eduardo-cunha/ Acesso em:03.10.2015. [11] Emendas Constitucionais: Acesso em:03.10.2015. [12] Reflexão que teve origem no Seminário Foucault e as mudanças de olhar. Apresentado na cadeira de Direito Quântico do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu da PUC/SP, coordenada pelo Prof. Ricardo Hasson Sayeg, pelos discentes Augusto Lewin e José Rubens Demoro Almeida. [13]GARCIA, Maria. Desobediência Civil: Direito Fundamental. 2.ed. rev. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2004, pg.295 [14] BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. 1º ed. São Paulo. Companhia das letras, 2007. P.14
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