Aspectos dogmáticos, sociológicos e a objetificação feminina no crime de estupro
Desde a alteração legal na Parte Especial do Código Penal brasileiro (Lei nº 12.015/2009), o tipo penal de estupro (art. 213, CP) passou a englobar o antigo crime de atentado violento ao pudor. Assim, o legislador optou por apenar com a mesma intensidade quem pratica conjunção carnal e quem pratica ato libidinoso.
Ocorre que, o legislador não se preocupou em definir o que seria ato libidinoso para fins de aplicação dos artigos 213 e/ou outros tipos penais do Código Penal, o que tem se tornado matéria tormentosa na doutrina e jurisprudência. No que tange à conjunção carnal, maiores controvérsias não subsistem, posto ser pacífico o seu conceito.
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Para se definir quais atos libidinosos caracterizam o tipo penal, importante à construção de uma interpretação conforme a Constituição da República para legitimar a aplicação do tipo penal, especialmente em virtude do princípio da proporcionalidade dos crimes e das penas e, para que, também, não sejam afrontados os princípios da legalidade e da taxatividade penal.
Forçoso destacar que a pena cominada ao crime de estupro – reclusão de 6 (seis) a 10 (dez) anos – é excessivamente alta para repreender determinados atos libidinosos, que embora repugnantes e graves, não se equiparam a outros atos libidinosos como sexo oral e coito anal praticados com violência ou grave ameaça a pessoa.
Ademais, deve-se considerar que foram introduzidas no mesmo tipo penal condutas completamente distintas no que se refere ao desvalor da ação e desvalor do resultado. Assim, não poderia o legislador – em desatenção aos princípios constitucionais, notadamente, ao da proporcionalidade da pena – cominar a mesma pena para aquele que mediante violência ou grave ameaça pratica com a vítima conjunção carnal ou o coito anal e aquele que sem o consentimento da vítima passa a mão em seus seios ou em suas nádegas para satisfazer a libido. Não que essa última conduta não mereça reprovação, mas que não se pode puni-la da mesma maneira da primeira, parece evidente.
Neste sentido, importante a doutrina de José Henrique Pierangeli[1]:
Porém, o legislador penal brasileiro não seguiu o bom exemplo de nossos coirmãos portugueses, perdendo uma chance de ouro para fazer, como fizeram as legislações mais avançadas, uma nítida distinção entre os atos libidinosos relevantes e irrelevantes. E a consequência dessa opção é que são enquadráveis, no mesmo tipo penal, condutas tão dispares como um beijo lascivo e um coito anal. Nesse contexto, se para grande parte da doutrina parece exagerado um mínimo de 06 anos de reclusão para uma relação vaginal, anal ou oral forçada (lembrando que esse é o mesmo patamar inicial para o homicídio simples), parece-nos inconcebível cominar-se essa mesma pena para um beijo roubado, ainda que lascivo, ou para uma apalpadela nas partes pudendas da vitima.
Como já dito, em razão do princípio da legalidade – viga mestra do direito penal -, e da taxatividade, o tipo penal (modelo legal de comportamento proibido) tem como primordial função a de garantia de que ninguém será acusado ou condenado por conduta que não esteja devidamente descrita e definida em lei. Definir é delimitar, segundo Aurélio é “determinar extensão dos limites”. Não é sem razão que os tipos penais incriminadores devem ser fechados, não há lugar dentro de um direito penal garantista e comprometido com o Estado de Direito para tipos penais indeterminados, imprecisos, vagos e ambíguos.
O legislador errou muito ao tratar o “estupro” – prática da conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça – de igual modo ao “atentado violento ao pudor”, especialmente, em relação à prática de “qualquer ato libidinoso”. Deveria, em obediência aos princípios já referidos, especialmente ao da proporcionalidade, diferenciar a conjunção carnal, o coito anal e o sexo oral de outros atos libidinosos, como, por exemplo, acariciar os seios ou beijá-los. Repita-se, para que não paire qualquer dúvida, que os aludidos atos libidinosos quando praticados mediante violência ou grave ameaça ou quando se tratar de vítima vulnerável merece a reprovação, mas esta não pode ser a mesma daquela para qual, diga-se de passagem, é cominada pena mínima igual a do homicídio simples (art. 121 do CP).
***Inobstante tais apontamentos de ordem dogmática e técnica, que constituem o atual paradigma limitador do poder punitivo estatal – feito por homens e para homens – convém destacar a relevância de uma análise dos fatores sociológicos que antecedem o crime de estupro em si, reafirmando a importâncias das lutas feministas.
A objetificação feminina se desvela em incontáveis níveis e meandros, de tal forma que o crime de estupro – tal qual definido em Lei – constitui apenas mais uma forma de violência.
Portanto, a questão que se apresenta de imediato não é a necessidade de aderência a uma corrente jurídico-penal, e sim a percepção de que, em comum a todas as formas de violência, misoginia, desrespeito e discriminação contra as mulheres – que vão desde o “fiu-fiu” assediador das ruas até o stealthing[2] praticado pelo próprio parceiro sexual – há uma cultura patriarcal que se apropria e invade os corpos das mulheres de tal forma que esses passam a integrar e pertencer à ordem do público.
Portanto, momentos de repercussão midiática, que conclamam e inflamam justiceiros de plantão, servem de reflexão para demonstrar a premência da construção de uma sólida cultura da sororidade que não se enquadre na lógica punitivista criada pelo próprio patriarcalismo.
A articulação e engajamento de mulheres em torno de suas lutas pela igualdade representa um esforço que é capaz de traduzir e sintetizar a esperança em dias em que sua palavra será creditada e sua voz ouvida.
A criação de hashtags como a “#meumotoristaabusador” – em que pese as possíveis ressalvas que recaem sobre as mesmas – e de campanhas como a “Hora do Mamaço” demonstram as possibilidades progressistas de enfrentamento à cultura machista e ocupação de espaços há muito renegados.
A figura do “estuprador” sempre existirá, mas, as engrenagens que o alimentam encontram-se na sociedade que, por exemplo, incentiva o consumo da pornografia, da prática do assédio e da constante objurgação das meninas.
Logo, enquanto sociedade, somos corresponsáveis pela perpetuação ou não da cultura do estupro e pela luta e resistência enquanto atos políticos, tanto no campo privado quanto no público, eis que, nos dizeres de Carla Rodrigues[3], “a história da política feminista respira por estas ondas que se erguem, acumulam, quebram e varrem. A força dos feminismos está na sua dialética infinita como horizonte”.
Bárbara Bastos é Advogada e Pesquisadora
Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado e Doutor em Ciências Penais (UFMG)
[1] PIERANGELI, José Henrique e DE SOUZA, Carmo Antônio. Crimes Sexuais. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 20/21.
[2] Conduta daquele que retira o preservativo durante a relação sexual sem o consentimento da parceira.
[3] Disponível em:
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