Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
3 de Maio de 2024
    Adicione tópicos

    Aspectos dogmáticos, sociológicos e a objetificação feminina no crime de estupro

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Desde a alteração legal na Parte Especial do Código Penal brasileiro (Lei nº 12.015/2009), o tipo penal de estupro (art. 213, CP) passou a englobar o antigo crime de atentado violento ao pudor. Assim, o legislador optou por apenar com a mesma intensidade quem pratica conjunção carnal e quem pratica ato libidinoso.

    Ocorre que, o legislador não se preocupou em definir o que seria ato libidinoso para fins de aplicação dos artigos 213 e/ou outros tipos penais do Código Penal, o que tem se tornado matéria tormentosa na doutrina e jurisprudência. No que tange à conjunção carnal, maiores controvérsias não subsistem, posto ser pacífico o seu conceito.

    Leia também:

    Defensoras Públicas se solidarizam com magistrado criticado após soltar preso em ônibus

    Para se definir quais atos libidinosos caracterizam o tipo penal, importante à construção de uma interpretação conforme a Constituição da República para legitimar a aplicação do tipo penal, especialmente em virtude do princípio da proporcionalidade dos crimes e das penas e, para que, também, não sejam afrontados os princípios da legalidade e da taxatividade penal.

    Forçoso destacar que a pena cominada ao crime de estupro – reclusão de 6 (seis) a 10 (dez) anos – é excessivamente alta para repreender determinados atos libidinosos, que embora repugnantes e graves, não se equiparam a outros atos libidinosos como sexo oral e coito anal praticados com violência ou grave ameaça a pessoa.

    Ademais, deve-se considerar que foram introduzidas no mesmo tipo penal condutas completamente distintas no que se refere ao desvalor da ação e desvalor do resultado. Assim, não poderia o legislador – em desatenção aos princípios constitucionais, notadamente, ao da proporcionalidade da pena – cominar a mesma pena para aquele que mediante violência ou grave ameaça pratica com a vítima conjunção carnal ou o coito anal e aquele que sem o consentimento da vítima passa a mão em seus seios ou em suas nádegas para satisfazer a libido. Não que essa última conduta não mereça reprovação, mas que não se pode puni-la da mesma maneira da primeira, parece evidente.

    Neste sentido, importante a doutrina de José Henrique Pierangeli[1]:

    Porém, o legislador penal brasileiro não seguiu o bom exemplo de nossos coirmãos portugueses, perdendo uma chance de ouro para fazer, como fizeram as legislações mais avançadas, uma nítida distinção entre os atos libidinosos relevantes e irrelevantes. E a consequência dessa opção é que são enquadráveis, no mesmo tipo penal, condutas tão dispares como um beijo lascivo e um coito anal. Nesse contexto, se para grande parte da doutrina parece exagerado um mínimo de 06 anos de reclusão para uma relação vaginal, anal ou oral forçada (lembrando que esse é o mesmo patamar inicial para o homicídio simples), parece-nos inconcebível cominar-se essa mesma pena para um beijo roubado, ainda que lascivo, ou para uma apalpadela nas partes pudendas da vitima.

    Como já dito, em razão do princípio da legalidade – viga mestra do direito penal -, e da taxatividade, o tipo penal (modelo legal de comportamento proibido) tem como primordial função a de garantia de que ninguém será acusado ou condenado por conduta que não esteja devidamente descrita e definida em lei. Definir é delimitar, segundo Aurélio é “determinar extensão dos limites”. Não é sem razão que os tipos penais incriminadores devem ser fechados, não há lugar dentro de um direito penal garantista e comprometido com o Estado de Direito para tipos penais indeterminados, imprecisos, vagos e ambíguos.

    O legislador errou muito ao tratar o “estupro” – prática da conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça – de igual modo ao “atentado violento ao pudor”, especialmente, em relação à prática de “qualquer ato libidinoso”. Deveria, em obediência aos princípios já referidos, especialmente ao da proporcionalidade, diferenciar a conjunção carnal, o coito anal e o sexo oral de outros atos libidinosos, como, por exemplo, acariciar os seios ou beijá-los. Repita-se, para que não paire qualquer dúvida, que os aludidos atos libidinosos quando praticados mediante violência ou grave ameaça ou quando se tratar de vítima vulnerável merece a reprovação, mas esta não pode ser a mesma daquela para qual, diga-se de passagem, é cominada pena mínima igual a do homicídio simples (art. 121 do CP).

    ***

    Inobstante tais apontamentos de ordem dogmática e técnica, que constituem o atual paradigma limitador do poder punitivo estatal – feito por homens e para homens – convém destacar a relevância de uma análise dos fatores sociológicos que antecedem o crime de estupro em si, reafirmando a importâncias das lutas feministas.

    A objetificação feminina se desvela em incontáveis níveis e meandros, de tal forma que o crime de estupro – tal qual definido em Lei – constitui apenas mais uma forma de violência.

    Portanto, a questão que se apresenta de imediato não é a necessidade de aderência a uma corrente jurídico-penal, e sim a percepção de que, em comum a todas as formas de violência, misoginia, desrespeito e discriminação contra as mulheres – que vão desde o “fiu-fiu” assediador das ruas até o stealthing[2] praticado pelo próprio parceiro sexual – há uma cultura patriarcal que se apropria e invade os corpos das mulheres de tal forma que esses passam a integrar e pertencer à ordem do público.

    Portanto, momentos de repercussão midiática, que conclamam e inflamam justiceiros de plantão, servem de reflexão para demonstrar a premência da construção de uma sólida cultura da sororidade que não se enquadre na lógica punitivista criada pelo próprio patriarcalismo.

    A articulação e engajamento de mulheres em torno de suas lutas pela igualdade representa um esforço que é capaz de traduzir e sintetizar a esperança em dias em que sua palavra será creditada e sua voz ouvida.

    A criação de hashtags como a “#meumotoristaabusador” – em que pese as possíveis ressalvas que recaem sobre as mesmas – e de campanhas como a “Hora do Mamaço” demonstram as possibilidades progressistas de enfrentamento à cultura machista e ocupação de espaços há muito renegados.

    A figura do “estuprador” sempre existirá, mas, as engrenagens que o alimentam encontram-se na sociedade que, por exemplo, incentiva o consumo da pornografia, da prática do assédio e da constante objurgação das meninas.

    Logo, enquanto sociedade, somos corresponsáveis pela perpetuação ou não da cultura do estupro e pela luta e resistência enquanto atos políticos, tanto no campo privado quanto no público, eis que, nos dizeres de Carla Rodrigues[3], “a história da política feminista respira por estas ondas que se erguem, acumulam, quebram e varrem. A força dos feminismos está na sua dialética infinita como horizonte”.

    Bárbara Bastos é Advogada e Pesquisadora

    Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado e Doutor em Ciências Penais (UFMG)

    [1] PIERANGELI, José Henrique e DE SOUZA, Carmo Antônio. Crimes Sexuais. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 20/21.

    [2] Conduta daquele que retira o preservativo durante a relação sexual sem o consentimento da parceira.

    [3] Disponível em:

    • Sobre o autorMentes inquietas pensam Direito.
    • Publicações6576
    • Seguidores935
    Detalhes da publicação
    • Tipo do documentoNotícia
    • Visualizações232
    De onde vêm as informações do Jusbrasil?
    Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/aspectos-dogmaticos-sociologicos-e-a-objetificacao-feminina-no-crime-de-estupro/495427293

    Informações relacionadas

    Anna Siqueira, Advogado
    Artigoshá 3 anos

    Noções Gerais Acerca da Prática de Sextorsão e de Stealthing no Brasil

    Âmbito Jurídico
    Notíciashá 11 anos

    A mulher e o assédio moral

    Carlos Alberto Alves, Assistente Administrativo
    Notíciashá 9 anos

    Quando as mulheres são reduzidas a objetos sexuais

    Sarah Fernandes, Advogado
    Artigoshá 6 anos

    Afinal, partidas e torneios de poker são ilegais no Brasil?

    Consultor Jurídico
    Notíciashá 11 anos

    Estado deve permitir procuradores a exercerem a advocacia

    0 Comentários

    Faça um comentário construtivo para esse documento.

    Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)