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5 de Maio de 2024

Carta a um jovem advogado especialista em Direito Digital

O conhecimento da área passou a ser um requisito para a própria carreira dos operadores do Direito

há 7 anos

Sempre tive afinidade com tecnologia, fiz cursos de COBOL e BASIC, e comecei a desenvolver projetos na área ainda na adolescência. Já na Faculdade de Direito, eu tinha um website chamado “Urbanóide” e minha fama no escritório onde era estagiária era de ser “a advogada que entende de tecnologia”, porque eu sabia programação de software. Logo que me formei, em 1998, comecei a atuar com Direito Digital. Naquele ano escrevi uma crônica que ganhou o prêmio “Pau-Brasil de Literatura” da USP, falando que no futuro as faculdades fechariam as portas, pois todas as aulas seriam pela internet, via educação à distância (EAD).

Por causa do texto, do rótulo de “advogada que entende de tecnologia”, e do contexto da época que era do “bug do milênio”, comecei a ser procurada para falar sobre quebras de contratos de TI e outras questões legais relativas à proteção de software e a criação de negócios na internet, especialmente em lojas virtuais e sites de leilão, que estava em pleno auge. Com isso, para mim, acabou sendo natural unir meus conhecimentos tecnológicos aos jurídicos, o que se tornou um diferencial. Não era comum achar um especialista que tivesse domínio das questões legais e também conhecesse das questões técnicas. Então acabei sendo, mesmo ainda muito jovem e recém-formada, uma solução que o mercado procurava, nascia ali uma nova forma de oferta jurídica, a do “Direito Digital”.

Durante as palestras que dava nas empresas, muita gente me pedia indicações de leitura. Meu último slide era de dicas de leitura, todas em inglês. Esse continua sendo um grande desafio do profissional do Direito Digital: conhecimento da matéria. Os assuntos até hoje, com quase 20 anos de atuação na área, ainda são novos para muitas pessoas e se renovam a cada dia, já que a tecnologia muda e com ela o comportamento das pessoas e seus impactos econômicos e sociais. É um volume de temas que vem aumentando desde os anos 90, principalmente com a criação do www por Tim Berners-Lee, mas que quase não estão presentes na grade curricular da graduação de Direito.

Algumas faculdades possuem uma ou outra matéria do Direito Digital como optativa, mas em geral essa disciplina é tratada somente em especializações e cursos de pós-graduação. Isto tem feito com que o aluno de Direito se forme muito em descompasso com a realidade da sociedade para a qual ele terá que trazer soluções, respostas jurídicas.

Quase todos os casos exigem conhecimento técnico sobre como coletar provas eletrônicas, por isso, acredito que essa matéria tinha que ser dada obrigatoriamente na graduação, em uma aula de computação, com uso de ferramentas de esteganografia, espelhamento, captura de imagem, software hexagesimal, entre outras.

Outro detalhe importante, além de saber a matéria, é manter uma atualização constante, já que estamos falando de uma área em contínua evolução. O que presenciamos é a revisitação dos institutos fundamentais do Direito relacionados a diferentes temas, como a identidade, já que as pessoas se relacionam por meio de interfaces e não presencialmente, a soberania, afinal as fronteiras não são mais geográficas, e testemunhas, que passaram a ser as máquinas. É a transformação do Direito Tradicional para o Direito Digital.

Às vezes não basta atualizar esses institutos, é preciso mudar. Por exemplo, se uma pessoa copia seus dados sem autorização, não é possível tipificar o ato como o furto, já que na prática a pessoa levou, mas não subtraiu os dados (não os tornou indisponíveis, conforme exige o artigo 155 do CP).

Mediante essas novas situações que acontecem no ambiente digital, é necessário pensar em novos tipos de crimes aos quais os cidadãos digitais estão sujeitos. Atualmente estão sendo rediscutidos institutos que são pilares do pensamento jurídico, como privacidade, liberdade de expressão e a própria ética digital e a isso tem se chamado “digital rights”. Já há muitas obras a respeito disso em inglês e espanhol. Por isso escrevi meu primeiro livro, Direito Digital, que saiu em 2001 e se encontra na sexta edição, símbolo de como a área continua evoluindo.

Além da qualificação, outro desafio é a própria prática jurídica. Em 2004, quando decidi abrir meu escritório, meus colegas me perguntavam se eu ia mesmo trabalhar “só” com isso. Na época éramos dois: um estagiário e eu; hoje somos 23 profissionais, sendo 15 advogados. Meu primeiros clientes foram gerentes de TI – eu trabalhava com questões de política de privacidade e segurança da informação, também tinha clientes que precisavam de contratos de hospedagem de site, de armazenagem de dados, desenvolvimento de software. Inicialmente as funções giravam em torno de elaborar contratos de tecnologia. Depois vieram os profissionais de marketing, interessados fazer em campanhas digitais, preocupados em proteger a marca na web e buscando o amparo legal. Na sequência entrou o varejo: a princípio eram start-ups, pequenos empreendedores que montavam lojas virtuais, mas então comecei a ter os grandes clientes, empresas tradicionais que queriam tomar proveito da Internet e iniciar o seu comércio eletrônico.

Com a evolução das relações digitais, o Direito Digital acabou alcançando todas as práticas jurídicas. Qualquer caso de relação civil, trabalhista ou criminal tem algum aspecto envolvendo o digital, seja uma mensagem ofensiva ou ameaça, uma comprovação eletrônica de transações financeiras. Assim, o desafio é a escolha de qual melhor modelo aplicar para casos que muitas vezes são inéditos. É o novo pensar jurídico que exige do profissional conhecimento técnico, prático e especializado. Ou seja, a atuação do advogado de Direito Digital passou a ser indispensável. E para os operadores do Direito, o conhecimento do Direito Digital passou a ser um requisito para a própria carreira.

Patricia Peck Pinheiro - Advogada especialista em Direito Digital. Formada pela Universidade de São Paulo, onde é doutoranda em Direito Internacional

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9 Comentários

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Parabéns, Patricia. Assim como você, Eu, também, estou buscando alinhar meus conhecimentos de tecnologia (sou formado há mais de 15 anos na área), com o jurídico. Pois, em Dezembro de 2017, estarei me formando em Direito. E, pelo momento, tenho buscado informações a respeito do Direito Digital. irei inclusive, fazer uma pós nesta matéria. Preciso de dicas de leituras e cursos. Abraços. continuar lendo

Muito bom artigo e comentários.
Abandonei a prioridade do direito em 1970 quando meus amigos e colegas se encaminhavam para carreiras jurídicas, inclusive com dois, alçando ao Tribunal de Haia.
Hoje não tenho as benesses da aposentadoria e outras regalias. Mas estou feliz com a opção.
Felizmente hoje voces não precisam escolher. Podem abraçar as duas vertentes da mesma carreira, o lado jurídico e o lado tecnológico.
Afinal, viva o Direito Digital.
Mais que isso, viva o Estado de Direito Virtual, uma realidade que sucede os Estados de Direito Burocrático e Mutante weberiranos.
O Véio. continuar lendo

Parabéns!!!!!!!! continuar lendo

Parabéns! Excelente artigo, tema bastante pertinente nos dias de hoje. Tenho muito apreço pelo Direito Digital. continuar lendo