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1 de Maio de 2024

Caso Damião Ximenes Lopes: entre a medicina, o direito e a política

Publicado por SANDRA VIÑAS
há 8 anos

Por Sandra Maria Portuguez Viñas

(...) O tempo todo e de todos os lados a investir a poderosa fábrica de subjetividade serializada, produtora destes homens que somos. (...) Muitas vezes não há outra saída. (...) Corremos o risco de sermos confinados quando ousamos criar quaisquer territórios singulares, independentes das serializações subjetivas.

Guattari e Rolnik

Resumo

O presente estudo enfatiza a questão do julgamento do caso Damião XimenesLopes, pessoa com deficiência mental, que fora espancada até a morte, porfuncionários da Clínica de Repouso, em Sobral, no interior do Estado do Ceará na qual se encontrava internado, no ano de 1999, caso este que foi submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos e resultou na condenação do Brasil, mediante indenização aos familiares da vítima, devido à violação a direitos humanos.

Abstract

This study emphasizes the judgement of the case Damião Ximenes Lopes, people with learning disabilities, who had been beaten to death by employees of a Clinic Rest in Sobral, Ceará State. This case which was submitted to the Inter-American Court of Human Rights and resulted in the condemnation of Brazil, upon compensation to the victim's family, because of the violation of human rights.

Palavras-Chave: Direitos Internacional; Direitos Humanos; Deficiência Mental;Damião Ximenes Lopes; Lei nº 10.216 de 2001

Introdução

Segundo Ventura e Brito, na obra “Pessoas portadoras de transtornos mentais e o exercício de seus direitos”, a evolução da concepção de cidadania ocorre nos mesmos moldes da maturação dos direitos humanos e corresponde à universalização dos direitos individuais, sociais e políticos. A cidadania possui, uma dimensão civil, relativa ao efetivo exercício dos direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei, à garantia de ir e vir e de manifestar o pensamento, dentre outros. Possui também uma dimensão política referente à atuação do cidadão no governo da sociedade e uma dimensão social, que garante a participação das pessoas na riqueza coletiva, incluindo a garantia do direito à saúde, à educação, ao trabalho, ao salário justo e à aposentadoria, por exemplo. A cidadania plena engloba o exercício dos direitos civis, políticos, econômicos e sociais e requer, portanto, estabilidade democrática contínua einstituições que possam garantir a vigência dos direitos civis, políticos e sociais. Estas são respectivamente os Tribunais de Justiça, as instituições relacionadas ao Poder Legislativo e a ação do Poder Executivo na realização de programas sociais (Ventura e Brito, 2012).

Evocando a história dos povos, a mitologia e o início do conhecimento quantoàs doenças mentais se percebe o pensamento inverso quando o caos faz origem ao renascimento conforme a obra “Nise da Silveira: imagens do inconsciente entre psicologia, arte e política” a seguir transcrito: A crermos em Eurípedes, os mitos dionisíacos apresentam certas características que indicam a negação da esfera privada e da esfera pública, do oikos e da polis. Inversamente à religião oficial que se prende ao ideal da sophrosyne, ao controle harmônico do indivíduo dentro de certas normas, o dionisismo aparece como uma libertação. Basta lembrar que nas Bacantes, o cosmos retorna ao caos a fim de que tudo possa renascer (Frayze-Pereira, 2003).

Na loucura como em tudo mais é preciso começar pela Grécia. As primeirasdescrições de doenças mentais estão em Homero. Não se esqueça, porém, a Bíblia, pois aí se encontra excelente narração de estados psíquicos anormais. Hipócrates, o maior dos Asclepiades, viu certo que do cérebro partem as desrregulações que levam os homens aos desmandos do delírio. Precedeu Griesinger3 de cerca de vinte e quatro séculos. (Lopes, 2015).

Entendia o psiquiatra alemão Wilhelm Griesinger que “A loucura tem sidocompreendida de maneira bastante diversa ao longo da história, tendo seutratamento evoluído em consonância com a sua compreensão. Durante o período da Idade Média, por exemplo, a loucura era associada à influência do demônio, havendo, inclusive, pessoas queimadas na fogueira em virtude da suposta possessão demoníaca” (Alencar e Lima, 2014).

Em estudo e análise do texto “Assistência psiquiátrica: breve histórico geral eatual do processo de reforma no Brasil” subtrai-se que até a Idade Média, aos loucos era permitido andar livremente pelas cidades, circular entre as pessoas, viver de caridade. No Renascimento a loucura passa por dois momentos: no primeiro, ela é relacionada às artes plásticas e as pinturas eram vistas como uma das vocações do louco; no segundo, ela é relacionada às formas discursivas, e a literatura e filosofia veem a loucura como uma desmoralização do saber. Nessa oposição, tudo se tornava duvidoso, e é a razão que viria a explicar e demonstrar cientificamente determinados fenômenos. Assim, a loucura passa a ser relacionada a ordem da razão, iniciado a sua problematização (PUC-Rio, 2015).

A intolerância, o desprezo, o abandono, o asco e o medo na história dacivilização foram os adjetivos mais precisos para nomear como se viam os doentes mentais. Em virtude disso houveram muitas mortes, confinamentos em asilos, prisões e maus tratos físico e psíquicos excluindo os doentes mentais da sociedade tida como normal. Sob certos aspectos, a Psiquiatria pode ser considerada como a primeira “especialidade médica”, ou antes ainda com a designação de “Alienismo” – este em fins do século XVIII e começo do século XIX –, em um tempo em que “especialidade”, tal como viria a ser estabelecida principalmente no século XX, ainda não existia (Neves, 2015).

O modelo asilar e carcerário dos séculos anteriores, modelo seguido pelopsiquiatra italiano Franco Basaglia alienava o cliente afastando-o do convívio social e retirando-os o maior bem jurídico do ser humano, qual seja, a vida e a dignidade humana. Após o século XX, o médico francês Philippe Pinel (1745-1827) separou os desajustados dos dementes para que se fundamentassem novos direitos de valor social onde o estado passaria a ter obrigações e deveres, com a exigência de tutela jurisdicional efetiva, de cuidados e higienização, de inserção na sociedade, principalmente com o tratamento psiquiátrico reconhecido como especialidade médica na atualidade.

A revolução metodológica introduzida por Pinel na França, desde o final doséculo XVIII, segundo a qual a base da psiquiatria deveria repousar sobredescrições precisas das diferentes formas clínicas rigorosamente observadas pelo médico, acompanhadas pelo criterioso esforço de delimitação das espécies típicas e de sua classificação, só foi acolhida muito lentamente no contexto germânico. Até meados do século XIX, a nascente psiquiatria alemã encontrava-se dividida em duas correntes principais, diferentes em suas orientações doutrinárias, mas igualmente metafísicas em seus métodos e postulados fundamentais. Em ambas, o que estava em jogo no campo psiquiátrico não era tanto a oposição entre corpo e mente, mas a oposição entre corpo e alma (Pereira, 2007).

Embora vista como uma “ciência da mente”, ou ainda como uma das áreas “psi”, a Psiquiatria, como especialidade médica, instalou-se no “campo do corpo”, território anatômico, fisiológico, social e cultural, situado na interface entre oindivíduo e a coletividade, onde atua a Medicina e onde são lidos sinais e sintomas que conduzem a formulações diagnósticas (Neves, 2015).

“A psiquiatria sempre ocupou uma posição especial no conjunto da ciência médica e da arte médica de curar – assim como a medicina no conjunto das outras ciências. Como arte de curar, ela se sempre se encontra apenas no limite da ciência e vive de sua indissolúvel relação com a práxis”

Hans-Georg Gadamer.

Com essas palavras Hans-Georg Gadamer iniciou uma conferênciaministrada em um Congresso de Psiquiatria, realizado em 1989 em São Francisco, EUA. Em sua exposição, o filósofo alemão chamou a atenção para o fato de que, talvez mais do que em qualquer outra especialidade médica, na Psiquiatria são muito imediatamente articuladas as relações entre a normatividade emanada das formas de sociabilidade humana em dado tempo e local e os padrões de normalidade/anormalidade e, portanto, de intervenção médica, expressos em seus conceitos e práticas (Ayres, 2012).

A assistência aos doentes no Brasil colonial era extremamente precária. Amaior parte dos cuidados era prestada por curandeiros de todos os matizes, inclusive sacerdotes católicos (especialmente os jesuítas). Os médicos formadoseram raríssimos, e mesmo os cirurgiões e barbeiros licenciados dificilmente eram encontrados, a não ser nos centros maiores, e serviam principalmente as pessoas importantes. Não havia especialistas em psiquiatria, mas os hospitais da Irmandade da Santa Casa abrigavam, mais que tratavam, os enfermos mais necessitados (Miranda-Sá Jr., 2007).

A passagem do século XIX para o XX é significativa para a história dapsiquiatria no Brasil, pois representa uma mudança na atitude dos alienistasbrasileiros. Aparece a preocupação em participar da produção científica ocidental não mais como meros receptores e repetidores sem rigor teórico -situação em que permaneceram durante muito tempo —, mas como pesquisador e de seus fundamentos. As pesquisas inserem-se, então, diretamente nos parâmetros com os quais vinha-se trabalhando na Europa nessa época (Portocarrero, 2002).

Segundo a mesma autora, na obra “Arquivos da loucura: Julian Moreira e adescontinuidade histórica da psiquiatria” a psiquiatria brasileira do início do século XX, inaugurada por Juliano Moreira, constitui, tanto ao nível do saber quanto da prática, um momento de ruptura em relação às teorias e às práticas psiquiátricas precedentes, que, por uma abertura em seu próprio discurso, permitiu a crítica e seu abandono, constituindo as condições de possibilidade do surgimento do novo modelo.

Principalmente, a partir do período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, começaram a surgir experiências inovadoras no tratamento psiquiátrico, quepretendiam romper com a lógica manicomial excludente. Dentro desse contexto, houve a retomada da utilização da atividade e do trabalho, valorizando-se, sobrenovas bases, a teoria de Simon, formalizando-se as práticas e os saberes da terapia ocupacional, que se consolidou como profissão. Nas novas propostas de tratamento, a prescrição de atividades deixou de ser exclusividade da autoridade médica, envolvendo profissionais de diversas formações. Entre essas experiências inovadoras, podemos citar as Comunidades Terapêuticas, na Inglaterra, a Psicoterapia Institucional, na França, e a Psiquiatria Comunitária, nos EUA (Fernandes, 2005).

O ano de 1978 costuma ser identificado como o de início efetivo domovimento social pelos direitos dos pacientes psiquiátricos em nosso país. OMovimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), movimento plural formado por trabalhadores integrantes do movimento sanitário, associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas, surge neste ano. É sobretudo este Movimento, através de variados campos de luta, que passa a protagonizar e a construir a partir deste período a denúncia da violência dos manicômios, da mercantilização da loucura, da hegemonia de uma rede privada de assistência e a construir coletivamente uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos mentais.

A experiência italiana de desinstitucionalização em psiquiatria e sua críticaradical ao manicômio é inspiradora, e revela a possibilidade de ruptura com osantigos paradigmas, como, por exemplo, na Colônia Juliano Moreira, enorme asilo com mais de 2.000 internos no início dos anos 80, no Rio de Janeiro. Passam a surgir as primeiras propostas e ações para a reorientação da assistência. O II Congresso Nacional do MTSM (Bauru, SP), em 1987, adota o lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Neste mesmo ano, é realizada a I Conferência Nacional de Saúde Mental (Rio de Janeiro) (Brasil, 2005).

O processo de reforma psiquiátrica, especialmente a partir dos anos 90 doséculo passado, acompanhou-se no país de um intenso debate entre especialistas, escolas profissionais e teóricas, familiares, usuários, formadores de opinião, meios de comunicação de massa e a população em geral. Alguns avanços no combate ao estigma foram alcançados, especialmente naquelas situações onde programas promovem concretamente a inclusão social dos pacientes, como no caso das residências terapêuticas, projetos de geração de renda e as atividades culturais promovidas pela rede de serviços (Brasil, 2005). O início do século XXI foi muito relevante para os militantes da lutaantimanicomial, dada a promulgação da Lei nº 10.216 de 2001 (que redireciona o modelo assistencial em saúde mental, rumo à atenção extra-hospitalar), aplaudida por todos aqueles que mantinham a “utopia de uma sociedade sem manicômios” no campo da Saúde Mental. Logo no ano seguinte, outra importante normativa foi promulgada no Brasil, comemorada pelos que lutavam em defesa dos direitos humanos, o Decreto nº 678 de 2002 – que obriga o cumprimento da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos (Convenção IDH) no país –, tornando ainda mais intensa a fiscalização de violações desses direitos no território nacional (Silva, 2013).

A Reforma Psiquiátrica no Brasil é um movimento histórico de caráter político, social e econômico influenciado pela ideologia de grupos dominantes. A práxis da reforma psiquiátrica faz parte do cotidiano de um bom número de profissionais de saúde mental. Tem como uma das vertentes principais a desinstitucionalização com conseqüente desconstrução do manicômio e dos paradigmas que o sustentam. A substituição progressiva dos manicômios por outras práticas terapêuticas e a cidadania do doente mental vêm sendo objeto de discussão não só entre os profissionais de saúde, mas também em toda a sociedade (Gonçalves e Sena, 2001).

A Reforma deve ser entendida como um processo político e social complexo. Na década de 70 do século passado, são registradas várias denúncias quanto àpolítica brasileira de saúde mental em relação à política de privatização daassistência psiquiátrica por parte da previdência social, quanto às condições (públicas e privadas) de atendimento psiquiátrico à população. É nesse contexto, no fim da década citada, que surge pequenos núcleos estaduais, principalmente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Estes constituem oMovimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). No Rio de Janeiro, em1978, eclode o movimento dos trabalhadores da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM) e coloca em xeque a política psiquiátrica exercida no país (Mesquita e cols, 2010).

O rompimento com o saber/fazer tradicional da psiquiatria e a construção deum novo saber/fazer baseado nos princípios éticopolíticos do doente mental como cidadão, são metas da reforma psiquiátrica (Gonçalves e Sena, 2001).

Conforme Gonçalves e Sena (2001), o conceito defendido pela reforma, adesinstitucionalização não se restringe à substituição do hospital por um aparato de cuidados externos envolvendo prioritariamente questões de caráter técnicoadministrativo- assistencial como a aplicação de recursos na criação de serviços substitutivos. Envolve questões do campo jurídico-político e sociocultural. Exige que, de fato haja um deslocamento das práticas psiquiátricas para práticas de cuidado realizadas na comunidade. A questão crucial da desinstitucionalização é uma “progressiva ‘devolução à comunidade’ da responsabilidade em relação aos seus doentes e aos seus conflitos”.

Uma legislação em saúde mental de um país ou região, que defenda direitosdos portadores de transtorno mental, como o direito ao tratamento e à proteçãocontra a discriminação e marginalização econômica, pode ser considerada tantocomo produto de uma política de saúde mental, como parte da estratégia paraconsolidação dessa política (WHO, 2003 citado por Mateus e Mari, 2013).

O direito à saúde mental é um direito fundamental do cidadão, previsto naConstituição Federal para assegurar bem-estar mental, integridade psíquica e pleno desenvolvimento intelectual e emocional. No Brasil, o direito à saúde mental é amparado pela Lei e já conta com o acesso gratuito e facilitado a vários serviços públicos de atenção e auxílio. Mas vale lembrar que depende, sobretudo, da existência de condições para uma vida digna, contando, assim, com a constante articulação de indivíduos, comunidades e da sociedade como um todo para a construção de uma realidade social mais justa (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL/PROCURADORIA FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO, 2015).

A questão da Saúde Mental e Direitos Humanos, tem como foco a análise deum controvertido acontecimento de ordem médica e legal, cujo desenrolaratravessou de modo contundente essas conquistas normativas: o caso DamiãoXimenes, no qual o Brasil foi condenado em um tribunal internacional por violação de direitos humanos, em 4 de julho de 2006, devido à morte de um paciente internado em um hospital psiquiátrico, em 4 de outubro de 1999 (Silva, 2013).

Segundo Correia (2015), sempre que houver a responsabilizaçãointernacional de um Estado, haverá a obrigação de reparação dos danos por estecausados. A responsabilidade internacional pode ocorrer em três âmbitos, quaissejam: o Legislativo, por atos ou omissões do Poder Legislativo; o Administrativo, por atos ou omissões de autoridades e funcionários dos órgãos estatais; e o Judiciário, por denegação de justiça ou por uma má administração da justiça. Nesse sentido, a jurisprudência da Corte Interamericana é clara ao determinar que qualquer dos poderes do Estado pode praticar atos violatórios que determinarão a responsabilidade internacional.

O movimento de internacionalização dos direitos humanos é corolário dasatrocidades cometidas pelo nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Com ele fortaleceu-se a ideia de que a proteção de tais direitos não deve se reduzir àatuação exclusiva dos estados nacionais, implicando na revisão da tradicional noção de soberania, permitindo-se intervenções de monitoramento e responsabilização internacionais; e no reconhecimento de que os indivíduos têm direito a proteção internacional de seus direitos (Lima, 2010). Para o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Estado tem aresponsabilidade primária no tocante à proteção de direitos, tendo a comunidade internacional, a responsabilidade subsidiária, quando as instituições nacionais se mostrarem falhas ou omissas na proteção de direitos.

Nesse caso, ressalte-se que o objetivo maior da tutela internacional é propiciar avanços internos no regime de proteção dos direitos humanos (Correia, 2015).

Conforme Lima (2010) a dignidade da pessoa humana não será alcançada, tampouco mantida, em circunstância de instabilidade social, especialmenteinstabilidade jurídica, sendo certo que o direito é o “reitor-mor” das relações políticas e econômicas subjacentes à tessitura social. A segurança jurídica, seu pressuposto, por sua vez, é expressão inarredável do Estado de Direito, no qual pontifica a repartição de funções estatais. Importa, nos limites da presente reflexão, a consideração da jurisdição como instrumento de estabilização social, de segurança jurídica, exercida através do processo judicial.

Conforme Oliveira e Pereira (2015), a lei 10.216 de 2001 preconiza o acessoà saúde mental de forma integral e socialmente reconhecido pela sociedade efamília o artigo dispõe o direito ao atendimento integral dos casos graves emsofrimento psíquico em seu parágrafo único salienta,

São direitos da pessoa portadora de transtorno mental: I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade; III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração; IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas; V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária; VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis; VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento; VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental. (BRASIL, 20018, citado por Oliveira e Pereira, 2015)

O Estado possui responsabilidade quanto às políticas públicas, desenvolvimento, assistência e promoção de ações na área de saúde mental om a inclusão do doente na sociedade. Este deverá prestar os atendimentos em estabelecimentos de saúde mental aos portadores deste transtorno. Quanto ao conhecimento acerca de seus direitos, é importante ressaltar que os Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência à Saúde Mental aprovados pela Assembléia Geral das Nações Unidas salientam que o paciente admitido em estabelecimento de saúde mental deverá ser informado o mais breve possível após a admissão. Com linguagem que o paciente entenda, deverão ser dadas informações, conforme resolução e nos termos da lei do país, essas informações incluirão a explicação desses direitos e como exercê-los (Ventura e Brito, 2011).

O tratamento para doentes mentais visa a reinserção social do mesmo emseu meio social e familiar. Segundo Lapa e Paul (2007), O direito internacionalpassou a conferir capacidade processual para os indivíduos apresentarem, perante os órgãos internacionais de supervisão e monitoramento, as denúncias de casos individuais com base no princípio da responsabilidade internacional. A Comissão Interamericana pode ser um elemento complementar na luta pela defesa dos direitos humanos.

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos, instituído pela ConvençãoAmericana de 1969 (também denominada de “Pacto de San José”) possuiatualmente uma importância fundamental na luta pela proteção dos direitoshumanos no continente latino-americano. Atuando como um suplementointernacional de proteção, haja vista que o seu acesso se dá, em regra, após serem esgotadas as vias recursais internas na busca pela reparação das violaçõessofridas, pode também atuar como um órgão primário, na medida em que é negado ou dificultado o acesso às vias judiciais dos Estados membros (Leite, 2008).

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CORTEIDH), com sede emSan Jose, Costa Rica, é composta por sete juízes nacionais dos Estados-membrosda OEA, independentemente de seus países de origem terem ratificado aConvenção Americana, e possuem competência jurisdicional e consultiva. Na Corte, os Estados detêm a legitimidade processual e não mais os indivíduos. Portanto, a Corte só recebe denúncias dos Estados e nunca dos indivíduos, também podendo receber denúncias da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, quando não houve acordo entre o indivíduo e o Estado violador do direito naquela instância (Lapa e Paul, 2007).

Segundo Leite (2008), a processualística do sistema interamericano dedireitos humanos impôs que primeiramente o caso deva passar pelo crivo daComissão Interamericana, para que esta funcione como uma espécie de filtro, nointuito de que somente as demandas relevantes cheguem à Corte. Em caso de não se chegar a um acordo entre o Estado denunciado e a Comissão, ou mesmo se é firmado um acordo (solução amistosa) e o Estado não cumpre o pacto, o caso deve obrigatoriamente seguir para a Corte Interamericana. Em casos extremos, a Corte poderá atuar de forma urgente, determinando medidas provisórias obrigatórias a serem tomadas pelos Estados. São as situações previstas no art. 63.2:

Em casos de extrema gravidade e urgência, e quando se fizer necessário evitar danos irreparáveis às pessoas, a Corte, nos assuntos de que estiver conhecendo, poderá tomar as medidas provisórias que considerar pertinentes (...).

Segundo a obra “Manual das Organizações Internacionais de RicardoSeintefus”, doutor em relações internacionais e professor titular o Departamento de Direito da Universidade de Santa Maria, - o funcionamento da corte orienta-se por seu estatuto* (Seintefus) cujo texto integral do estatuto está na obra “Textos Fundamentais dos Direitos das Relações Internacionais” excluídos assim os cidadãos e os cidadãos não governamentais.

Segundo o mesmo autor, existem duas formas básicas pelas quais um casochega à corte. A primeira delas atine à um caso específico, já concretizado nomundo fático, que estados, membro ou não da ONU, decidem à elas submeter. Asegunda, ocorre por antecipação, subdividindo-se em dois modos: a previsão num tratado em que a corte será responsável por dirimir questões suscitadas em função dele; ou a declaração, por um estado, de que se sujeita à jurisdição da Corte seja em caráter permanente, por prazo determinado ou em condições de reciprocidade.

Portanto, a amplitude da competência é limitada pelas condições de abrangência. De nenhum modo, um Estado será sujeito à decisão da corte sem que para tanto apresente seu consentimento, seja prévio ou concomitantemente. Aos que consentem a sentença é definitiva e inapelável (art. 60) mas à ela não se aplica analogia (Sentefus).

Caso Damião Ximenes

Um dos mais notórios casos de degradação humana ocorrido no interior deuma instituição asilar consiste no caso Damião Ximenes, dado que esse era o nome da vítima, a qual foi morta na chamada Casa de Repouso Guararapes, clínica psiquiátrica credenciada ao Sistema Único de Saúde (SUS) e pertencente ao município de Sobral, Ceará. A dimensão da gravidade de tal caso é proporcional à sua repercussão, eis que configurou, em 2000, o fechamento da supracitada casa de repouso e, em 2006, a primeira condenação do Brasil por violação de direitos humanos, no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA) (Alencar e Lima, 2014).

O caso em questão diz respeito à morte de Damião Ximenes Lopes, vítima deabuso de direitos humanos, em novembro de 1999, enquanto estava internado na Casa de Repouso Guararapes. A Instituição psiquiátrica era filiada ao Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro. Damião também sofria de epilepsia e morreu quatro dias depois de ser internado na referida clínica. A Corte condenou o Brasil por violar quatro artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos: direito à vida (artigo 4o), direito à integridade física (artigo 5o), direito às garantias judiciais (artigo 8o) e o direito à proteção judicial (artigo 9o) (Lapa e Paul, 2007).

Damião era portador de transtornos mentais e morreu, aos 30 anos, quatrodias depois de ser internado. A causa apontada pela morte foi parada cardíaca por razões indeterminadas, mas, o seu corpo apresentava sinais de tortura e maus tratos Ele teria recebido tratamento cruel, desumano, degradante, tortura e conseguinte assassinato no inteiror da clínica. Os médicos que o atenderam foram processados criminalmente, bem como os seus auxiliares (Carneiro, 2010).

Ocorreu que os funcionários da Clínica de Repouso Guararapes, localizadano município de Sobral, interior do Estado do Ceará, a 230 Km de Fortaleza (única clínica psiquiátrica daquela região, a qual integrava a rede privada credenciada ao Sistema Único de Saúde - SUS), onde se encontrava internado Ximenes Lopes, agrediram-no até a morte. A família denunciou os maus tratos, a tortura e o atendimento negligente que lhe foi dispensado pelos médicos e enfermeiros da referida Casa de Repouso, o que ocasionou a morte prematura do mesmo, após 3 dias (Rostelato, 2009).

Conforme o mesmo autor, O caso foi objeto de ação cível, proposta pela mãede Damião Ximenes Lopes, Sra. Albertina Viana Lopes (Reparação de Danos - Proc. Nº. 2000.0173.0797-0/0, em trâmite perante a 5ª Vara Cível da Comarca de Sobral – CE) e criminal (suscitado crime incurso no art. 136, § 2º do Código Penal - Proc. Nº. 2000.0172.9186-1/0, em trâmite perante a 3ª Vara Criminal da Comarca de Sobral – CE), contra o proprietário da Clínica e outros, além da denúncia encaminhada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, contra o Estado brasileiro.

Depois de o caso ter sido levado à Comissão de Direitos Humanos daAssembléia Legislativa do Ceará, os governos, municipal e estadual, entraram em consenso para o pagamento de uma pensão de um salário mínimo comoindenização. A oferta foi recusada pela família que denunciou Revista Homem, Espaço e Tempo Outubro/2010 ISSN1982-3800 190 o caso, primeiro envolvendo a questão da saúde mental a ser julgado pela Corte, em 22 de novembro de 1999 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Em 9 de outubro de 2002, A Corte considerou o caso admissível. Em 2003, a Comissão chegou a solicitar aogoverno brasileiro medidas mais incisivas para que o caso fosse solucionado. No entanto, como isso não aconteceu, e, após ouvir as partes, os juízes reuniram-se nos dias 3 e 4 de julho de 2006 para estabelecer a sentença (Carneiro, 2010).

Segundo Lapa e Paul (2007) na sentença, o MM. Juiz brasileiro AntônioAugusto Cançado Trindade, em voto separado, criticou a legislação brasileira dedireitos humanos e, em particular, a alteração constitucional realizada em 2004, a qual veio dificultar ao Congresso Nacional brasileiro a aprovação dos referidostratados internacionais. Além de ser a primeira condenação do Brasil perante aCorte, é paradigmática, por ser a primeira sentença desse órgão a indenizarfamiliares de vítima com distúrbios psíquicos.

No tocante às considerações prévias da presente Sentença sobre o casoXimenes Lopes, segundo Cançado Trindade, citado por Lapa e Paul (2007).

[...] não há que passar despercebido que a Corte Interamericana valorou o reconhecimento de responsabilidade internacional efetuado pelo Estado demandado como ‘uma contribuição positiva ao desenvolvimento deste processo e à vigência dos princípios que inspiram a Convenção Americana no Brasil’ (par.80), em particular no tocante ao reconhecimento da violação dos artigos 4 e 5 da Convenção (pars.119 e 122). Com isto cessou a controvérsia em quanto a determinados fatos do caso concreto, embora a Corte naturalmente não tivesse se eximido de proceder, como cabia, a suaprópria valoração dos fatos.

A descrita violação aos direitos fundamentais de Ximenes, ocorreu em datade 04 de outubro de 1999, tendo o ato representado afronta aos direitos humanos e requerido a remessa do caso à apreciação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual, por sua vez, indicou a responsabilidade do Brasil na violação a direitos vários (implementadas na área de circunscrição territorial do País), tais como: à vida, à integridade física, às garantias judiciais e à proteção judicial (correspondendo respectivamente, aos artigos 4, 5, 8 e 25 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos), salientando a omissão pela insuficiência de resultados positivos na implementação de políticas públicas de reforma da saúde mental que possibilitassem procedimentos de credenciamento e fiscalização maiseficazes de instituições privadas de saúde (Rostelato, 2009).

A Corte Interamericana de Direitos Humanos integrada pelos seguintes juízes:Sergio García Ramírez, Presidente; Alirio Abreu Burelli, Vice-Presidente; Antônio Augusto Cançado Trindade, Juiz; Cecilia Medina Quiroga, Juíza; Manuel E. Ventura Robles, Juiz; e Diego García-Sayán; Juiz; presentes, ademais, Pablo Saavedra Alessandri, Secretário, e Emilia Segares Rodríguez, Secretária Adjunta, de acordo com os artigos 62.3 e 63.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e com os artigos 29, 31, 53.2, 56 e 58 do Regulamento da Corte, em Sentença de 4 de julho de 2006, proferiu a seguinte Sentença (Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2015):

Portanto, A CORTE, DECIDE, Por unanimidade, 1. Admitir oreconhecimento parcial de responsabilidade internacional efetuado pelo Estado pela violação dos direitos à vida e à integridade pessoalconsagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção Americana, emrelação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitosestabelecida no artigo 1.1 desse tratado, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes, nos termos dos parágrafos 61 a 81 da presente Sentença. DECLARA, Por unanimidade, que 2. O Estado violou, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes, tal como o reconheceu, os direitos à vida e à integridade pessoal consagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, nos termos dos parágrafos 119 a 150 da presente Sentença. 3. O Estado violou, em detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda e dos senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme XimenesLopes, familiares do senhor Damião Ximenes Lopes, o direito à integridade pessoal consagrado no artigo 5 da Convenção Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, nos termos dos parágrafos 155 a 163 da presente Sentença. 4. O Estado violou, em detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda, familiares do senhor Damião Ximenes Lopes, os direitos às garantias judiciais e à proteção judicialconsagrados nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação com a obrigação geral de respeitar e garantir os direitos estabelecida no artigo 1.1 desse tratado, nos termos dos parágrafos 170 a 206 da presente Sentença. 5. Esta Sentença constitui per se uma forma de reparação, nos termos do parágrafo 251 dessa mesma Sentença. 84 E DISPÕE, Por unanimidade, que: 6. O Estado deve garantir, em um prazo razoável, que o processo interno destinado a investigar e sancionar os responsáveis pelosfatos deste caso surta seus devidos efeitos, nos termos dos parágrafos 245 a 248 da presente Sentença. 7. O Estado deve publicar, no prazo de seis meses, no Diário Oficial e em outro jornal de ampla circulação nacional, uma só vez, o Capítulo VII relativo aos fatos provados desta Sentença, sem as respectivas notas de pé de página, bem como sua parte resolutiva, nos termos do parágrafo 249 da presente Sentença. 8. O Estado deve continuar a desenvolver um programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os princípios que devem reger o trato das pessoas portadoras de deficiência mental, conforme os padrões internacionais sobre a matéria e aqueles dispostos nesta Sentença, nos termos do parágrafo 250 da presente Sentença. 9. O Estado deve pagar em dinheiro para as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda, no prazo de um ano, a título de indenização por dano material, a quantia fixada nos parágrafos 225 e 226, nos termos dos parágrafos 224 a 226 da presente Sentença. 10. O Estado deve pagar em dinheiro para as senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda e para ossenhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes, no prazo de um ano, a título de indenização por dano imaterial, a quantia fixada no parágrafo 238, nos termos dos parágrafos 237 a 239 da presente Sentença. 11. O Estado deve pagar em dinheiro, no prazo de um ano, a título de custas e gastos gerados no âmbito interno e no processo internacional perante o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, a quantia fixada no parágrafo 253, a qual deverá ser entregue à senhora Albertina Viana Lopes, nos termos dos parágrafos 252 e 253 da presenteSentença. 12. Supervisionará o cumprimento íntegro desta Sentença e dará por concluído este caso uma vez que o Estado tenha dado cabal cumprimento ao disposto nesta Sentença. No prazo de um ano, contado a partir da notificação desta Sentença, o Estado deverá apresentar à Corte relatório sobre as medidas adotadas para o seu cumprimento. O Juiz Sergio García Ramírez deu a conhecer à Corte seu Voto Fundamentado e o Juiz Antônio Augusto Cançado Trindade deu a conhecer à Corte seu Voto Separado, os que acompanham a presente Sentença. 85 Redigida em espanhol e português, fazendo fé o texto em espanhol, em San José, CostaRica, em 4 de julho de 2006. Sergio García Ramírez Presidente.

Rostelato (2009) enfatizou que o fato de ser a vítima direta do presente casouma pessoa portadora de deficiência mental (o primeiro caso do gênero perante a Corte) reveste-o de circunstância agravante. Para a autora, na presente Sentença, a Corte reconhece a proteção especial que requerem as pessoas particularmente vulneráveis, portadoras de deficiência mental, – como o Sr. Damião Ximenes Lopes, vítima fatal no cas d'espèce (pars.103-105), – e adverte que:

‘[...] a vulnerabilidade intrínseca das pessoas com deficiências mentais é agravada pelo alto grau de intimidade que caracteriza os tratamentos das enfermidades psiquiátricas, que torna essas pessoas mais suscetíveis a tratamentos abusivos quando são submetidas a internação’ (par.106) [...]. 40. As obrigações de proteção, – ainda mais em uma situação de alta vulnerabilidade da vítima como a presente, – revestem-se de caráter erga omnes (par.85), abarcando também as relações interindividuais, tendopresente o dever do Estado de prevenção e de devida diligência, sobretudo em relação a pessoas que se encontram sobre seus cuidados. A saúde pública é um bem público, não uma mercadoria. Em meus numerosos escritos e Votos no seio desta Corte, venho expressando há tantos anos meu entendimento no sentido de que todas as obrigações convencionais de proteção revestem-se de um caráter erga omnes. É-me particularmente difícil escapar da impressão que me assalta no sentido de que em todo essetempo talvez tenha eu escrito e continue escrevendo para os pássaros [...].

Conforme Silva (2015), o “Caso Damião Ximenes”, como o caso CustódioSerrão, também nos remete aos discursos e às práticas em torno daresponsabilidade em nossa sociedade, talvez não tanto relativas à responsabilidade individual, mas àquela dita “governamental”: é o Estado que é acusado de “irresponsável”, também é ele que tem que defender sua reputação, sendo que na audiência pública e em eventos científicos subseqüentes membros do governo federal assumem a responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de Damião, apontando tal postura como pioneira e respeitável. Entretanto, do ponto de vista da doutrina jurídica que regulamenta a atuação da Corte Interamericana de DH – da responsabilidade objetiva – tal assunção de responsabilidade não atenua em nada a sentença: condenado a indenizar a família da vítima, o Estado brasileiro foi orientado a reparar o dano tendo em vista violação de 11 normas internacionais, não fazendo qualquer sentido a atribuição de culpa ou a avaliação da intenção no interior desse tribunal internacional.

Baseado na sentença proferida pela Corte Interamericana de DireitosHumanos, concluímos que a Corte vem cumprindo com o papel na defesa dosdireitos humanos de abusos dos direitos previstos na Convenção Americana tendo como um dos casos a morte de Damião Ximenes Lopes e concluiu que o Estado brasileiro era responsável por violar os direitos à integridade pessoal, à vida, à proteção judicial e às garantias judiciais, consagrados na Convenção sobre Direitos Humanos. Deve-se ressaltar que que em dezembro de 2003, a Comissão fez recomendações ao Estado brasileiro, no sentido de investigar aprofundadamente e adotar medidas para que novos casos não viessem a ocorrer, além de ter determinado que fosse reforçado o monitoramento e a supervisão desse tipo de serviço no País. O governo brasileiro não cumpriu tais recomendações e, por isso, a Comissão encaminhou o caso à Corte Interamericana.

As sentenças da Corte têm natureza jurídica internacional, isto é, sãosentenças internacionais. Estas se caracterizam por serem prolatadas pororganismos jurisdicionais internacionais. Elas não emanam de um Estado e, poressa razão, não se subordinam a nenhuma soberania específica. São obrigatóriaspara os Estados que previamente acordaram em se submeter à jurisdição doorganismo internacional que as proferiu. A aceitação da jurisdição de uma corteinternacional é facultativa, mas uma vez reconhecida formalmente a competência de tal organismo, o Estado se obriga a implementar suas decisões, sob pena de responsabilidade internacional (Ceia, 2013).

Conclusão

O caso visto como violação aos direitos da pessoa com deficiência, foipioneiro com a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de DireitosHumanos. A condenação imposta ao país foi o marco para a proteção de pessoasacometidas de transtorno mental e significativa melhoria à assistência a saúdemental aprovados pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 17 de dezembro de 1991 e ratificados pelo Estado brasileiro (Marques, 2008, pg. 87).

Em decorrência das normas legais supramencionadas foi publicada a Lei nº 10.216 de 06 de abril de 2001 eu implantou a reforma psiquiátrica no Brasil com o fim de efetivar os direitos humanos, a preservação da dignidade por meio dapreservação e respeito à integridade física, moral, a individualização, espiritualidade e bem estar do ser humano. Por fim, ressalte-se que a jurisdição interna não afasta a interferência internacional, mas fiscaliza a violação dos direitos humanos das pessoas portadoras de transtorno mental. A reinclusão social do paciente com transtorno mental e a adaptação ao meio em que vivem tem um importante definitivo papel no tratamento, concedendo-lhes mais dignidade e mais justiça à condição humana.

Com a sentença proferida na Corte Interamericana de Direitos Humanos amudança foi a implantação de uma rede de Atenção à Saúde Mental (RAISM) nomunicípio de Sobral com os seguintes seguimentos disseminados no Brasil a saber: centros de atenção psicossocial (CAPS em geral), serviço residencial terapêutico, unidade de internação psiquiátrica em hospital geral, ambulatório de psiquiatrias regionalizado e estratégia de saúde de família, com o fim de humanizar o atendimento e a inserção da inclusão social para proporcionar saúde e habilitação social (Sá, Barros e Costa).

Através dessa transformação e política social vem ocorrendo conhecimento, o entendimento o respeito em relação ao adoecimento psíquico possibilitando orespeito aos diferentes, melhorando a qualidade de vida dos pacientes atendidos e uma transição cultural crescente no sentido de melhor aceitação e acolhimento do doente mental que faz com que a Nação evolua de forma vertical na política, na medicina e nos direitos sociais quanto aos deficiente mentais, bem como naspessoas que possuem transtornos mentais.

Por fim, conclui-se que o Brasil, através da condenação no caso DamiãoXimenes instituiu políticas públicas capazes de atender a população portadora de doenças mentais, os médicos se especializaram para atender este público com a evolução do conhecimento do tratamento médico na farmacologia, houve interesse nas pesquisas científicas para tratar as doenças mentais e a farmacologia buscou novos medicamentos capazes de reduzir os sintomas das doenças e o direito através da jurisprudência firmou teses em benefícios das sociedade.

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