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3 de Maio de 2024

O promotor deve acusar sempre?

Artigo publicado no jornal Estado de Minas, do Procurador da República Patrick Salgado Martins

Desde que o Estado retirou do cidadão o direito de punir o criminoso, estabelecendo uma estrutura pública de investigação, acusação e julgamento, alimenta-se a ideia de que o Estado sempre deve punir, senão tornar-se-ia devedor perante a vítima.

Com o passar dos anos, as engrenagens dessa máquina estatal foram evoluindo, até alcançarmos o atual sistema acusatório, com Ministério Público (promotor) independente e titular privativo da acusação e Judiciário (juiz) também independente e titular exclusivo do julgamento, permanecendo o dever de punir nas mãos do Estado, mas dependente da ação do promotor. E para não se tornar escravo da vontade (discricionariedade) do promotor, concluiu-se que ele sempre estaria obrigado a acionar a máquina punitiva, pedindo a condenação do criminoso, no que se resolveu denominar princípio da legalidade ou da obrigatoriedade da ação penal pública.

Ocorre que esse raciocínio secular está pautado em enorme equívoco, pois o dever de punir não se realiza apenas por meio de uma condenação, como se todo fato penalmente relevante devesse implicar, necessariamente, punição do criminoso. Esqueceu-se que, em muitos casos, a implementação da Justiça criminal conduza à ausência de punição, não necessariamente por razões de fato, mas também por razões de direito.

Há, então, um dever de persecução penal, e não um dever de acusação penal. O compromisso que o Estado assumiu com o cidadão, na verdade, se restringe ao esgotamento dos meios de investigação, à formulação de um juízo acusatório independente (positivo, negativo ou intermediário) e à submissão do fato a julgamento, também independente (inafastabilidade da jurisdição).

Quanto ao juízo acusatório positivo não há questionamentos, pois é historicamente vinculado ao papel de acusador do promotor, além de equivocadamente interpretado como único caminho a ser seguido pelo mesmo. O juízo acusatório intermediário, ainda que recente, também encontra irrestrito apoio intelectual, pela possibilidade de o promotor propor uma transação penal ao pequeno infrator, em vez de pedir sua condenação. Mas em relação ao juízo acusatório negativo, quando o promotor promove o arquivamento das investigações, tal conduta somente seria admita quando ausente provas suficientes à acusação, ou quando presente alguma causa que afastasse a tipicidade, a antijuridicidade ou a culpabilidade.

Ledo engano, pois há outros motivos, além dos citados, que conduzem o promotor a um juízo de valor sobre o fato para o exercício integral do seu dever institucional de promoção da persecução penal, em defesa da Justiça, ainda mais com a efetiva evolução da criminalidade, que se organizou, infiltrou nas engrenagens do Estado em todas as esferas de poder, ultrapassou as fronteiras nacionais, ampliou seu alcance e força, até alcançar níveis quase inatingíveis.

Por exemplo, quando o criminoso causa enorme lesão ao patrimônio público e esconde o dinheiro em algum paraíso fiscal, se o promotor descobrir esse dinheiro ele deverá adotar todas as medidas legais cabíveis para seu repatriamento. Mas, se as autoridades públicas do paraíso fiscal somente se dispuserem a colaborar, fornecendo provas e devolvendo o dinheiro lavado, se o promotor não acusar o criminoso por crimes fiscais e financeiros, o que fazer?

Se entendermos a obrigatoriedade como princípio, ela poderá ser cotejada com outros princípios, nesse caso concreto, como o da eficiência, do interesse público e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, conduzindo o promotor à opção pelo arquivamento das investigações dos crimes fiscais e financeiros, promovendo apenas a acusação quanto à lavagem de dinheiro transnacional. Mas a leitura feita desse princípio sempre se deu como regra de acusação penal, o que afastaria qualquer margem de discricionariedade ao promotor que sempre deveria acusar, sob pena de o Estado ficar em dívida com o cidadão, de quem tomou o direito de punir.

Todavia, como dissemos anteriormente, essa regra da obrigatoriedade está relacionada à persecução penal, e não somente à acusação penal, pois o exato sentido do axioma de que “nenhum crime deve ficar impune” apenas obriga o promotor a formular seu juízo acusatório, seja positivo, negativo ou intermediário, perante o juiz. No caso em apreço, portanto, deve o promotor formular seu juízo acusatório negativo quanto aos crimes fiscais e financeiros, motivado nos três princípios citados, e formular seu juízo acusatório positivo quanto ao crime de lavagem de dinheiro, perante o juiz competente, que exercerá o controle legal e político sobre a obrigatoriedade, fazendo com que o Estado cumpra seu dever perante a vítima (no caso, a coletividade) da forma que mais se aproxima do ideal de justiça, pois de nada valeria prender o criminoso e soltar o dinheiro lavado.

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