Prazer, me chamo Estado laico
Muito me admira que em pleno ano de 2017 ante avanços tecnológicos, científicos e amplo acesso à informação, ainda vivamos em um cenário onde a expressão religiosa e respeito a sua diversidade se torna uma luta diária e desleal.
Passados 126 anos da promulgação da Constituição de 1891, a primeira a romper o misto de Estado e religião, ainda nos deparamos com abusos religiosos e em nome da religião, temos que ter em mente que o pensamento colonial que nos acorrenta é o mesmo que nos impede à progressão, a marca do catolicismo trazido e implantado por nossos colonizadores, e constitucionalmente imposto por nosso Imperador ainda nos assombra, de tal forma que tudo que destoa do monoteísmo de raiz cristã se torna alvo da intolerância e da aberração.
É fato que vivemos em meio a uma maioria cristã, em todos seus aspectos, sejam católicos ou neopentecostais, porém constituir maioria não legitima a supressão da minoria, pois o Estado reconhece todos como iguais e garante proteção a esta pluralidade religiosa e até mesmo àqueles que não possuem crença, afinal o crer ou não crer é um critério subjetivo e como tal, não pode sofrer censura com base em que uma corrente religiosa pensa ser o correto, pois para cada adepto sempre será sua orientação religiosa o meio reto e inequívoco.
Nunca foi por meio de imposição que se convenceu a mente de alguém, pois não será o proselitismo agressivo e a violência estrutural gratuita modos legítimos de conversão religiosa já que a religião, ou ausência desta, deve ser manifestada de forma voluntária, devendo agregar algo de bom e saudável à vida de quem a pratica e professa e, para tanto, reafirmo não é trabalho do Estado indicar ou até mesmo pender para esta ou àquela religião. Sendo o único e árduo trabalho estatal, neste campo, a manutenção da boa convivência diante das diferenças, e tem sido falho.
Falha esta evidenciada quando agentes públicos, Guardas Civis Metropolitanos, arbitrariamente sob a máxima do cumprimento da lei invadem e ordenam a interrupção de culto religioso em um terreiro de Umbanda no município de Diadema que estaria violando a dita Lei do Silêncio, dado os toques de atabaques e cânticos entoados no local. [1]
Tal arbitrariedade, afronta direta ao artigo 3º, alínea “d e e da Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965 [2], me faz lembrar que curiosamente não vejo notícias como esta ocorrendo em Igrejas neopentecostais que por muitas vezes fazem de seus cultos verdadeiros shows com direito a caixas acústicas, guitarras, microfones e baterias, creio eu que o barulho que estas fazem não fere o ouvido da mesma forma daquela.
Na mesma esteira se viu noticiado flagrante discriminação realizada pela famosa companhia aérea GOL que no dia 04/02/2017 impediu o embarque no aeroporto de Congonhas de dois sacerdotes de religião de matriz africana por estarem vestidos e paramentados conforme preceitua tal religião, sendo obrigados a se desfazerem de objetos considerados sagrados, de suas vestimentas, para que pudessem adentrar ao vôo. Ocorre que nossa Constituição preceitua em seu artigo 5º, VIII que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa…”, a vestimenta faz parte da exteriorização da religiosidade de matriz africana e assim garante a Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010 [3], assim se caracterizam as freiras, frades, padres e monges, e mais uma vez não vejo noticiar abuso contra estes.
Hoje, dia 08/02/2017 percebi que ainda existe sensatez no meio ao caos, existe sim esperança na juventude política que faz do trabalho de pensar sua profissão de fé, e por mais que eu seja apartidário nesta data tomei partido, mas não em defesa de uma legenda política e sim de um ato autêntico e reavivador, onde uma vereadora de Araraquara de nome Thainara Faria se recusou a ler trecho da Bíblia quando da abertura dos trabalhos na Câmara Municipal, determinação esta abrigada pelo artigo 148 do Regimento Interno da casa, causando polêmica. [4]
Tal fato penso eu, é no mínimo hilário, pois polêmica e espécie deveria causar o fato do Regimento Interno prever tal obrigatoriedade já que Município algum pode se inclinar a qualquer tipo religioso, e muito menos obrigá-lo à alguém, a regra é clara, a separação é total, não cabe a uma instituição política preferir esta religião por aquela, por mais inocente que seja. Afinal a Bíblia é neutra, eles dizem. Eu digo que não o é, a Bíblia é livro representante das religiões cristãs e uma vez adotada impõe tal crença, algo avesso à pretensão estatal e seu ideal de tolerância.
Volto afirmar, religião, ou ausência dela, é opção particular não cabendo ao ambiente político, pois o ser político é o representante do povo e, enquanto função pública, deve ser procurador da diversidade, ou seja, a religião não pode interferir nos assuntos do Estado e muito menos em uma Câmara Municipal que conforme Thainara Faria “é a casa do povo e na casa do povo tem que se ter a cara do povo e ninguém aqui deve se sentir diminuído por não ser católico”.
Aos que não me conhecem, me apresento, sou um ente neutro e garantidor erigido pelo artigo 9º de nossa Carta Magna, prazer me chamo Estado laico.
Pedro Henrique Motta Sampaio é Pós-graduando em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Escola Paulista de Direito. Graduado em Direito pela Universidade Prebiteriana Mackenzie. Membro do IBCCRIM. Advogado.
[1] CIPÓ, Roger. Olhar de um cipó: Terreiro de Mãe Corina sofre com perseguição religiosa e abusos da Guarda Municipal de Diadema. Disponível em: http://olhardeumcipo.blogspot.com.br/2017/01/terreiro-de-mae-corina-sofre-com.html.
[2] BRASIL. Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965. Regula o Direito de representação e o processo de Responsabilidade Administrativa Civil e Penal, nos casos de abuso de autoridade. Diário Oficial da união, Brasília, DF, 13 dez. 1965. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4898.htm.
[3] BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm#art60.
[4] G1. Vereadora se recusa ler a Bíblia e gera polêmica na Câmara de Araraquara. Disponível em: http://g1.globo.com/sp/são-carlos-regiao/noticia/2017/02/vereadora-se-recusa-ler-bibliaegera-polemica-na-câmara-de-araraquara.html.
0 Comentários
Faça um comentário construtivo para esse documento.