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16 de Junho de 2024
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    Sistema penal brasileiro: uma brincadeira de ioiô

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Sob o título “Sonho interrompido” o criminalista Leonardo Isaac Yarochewsky narra a seguinte história:

    Como entender que alguém que já estava a passos largos do crime seja compelido a reiniciar a sua trajetória na prisão? Considerando o condenado como mera peça da engrenagem do sistema de poder penal.

    Frequentemente, o preso que se encontra cumprindo pena no regime fechado tem contra si outros processos em curso em que ainda não houve decisão. Nesse caso, há a possibilidade de que ao alcançar a progressão de regime e até mesmo a liberdade condicionada, sobrevenha nova condenação por crime anteriormente praticado.

    Nessa hipótese, o parágrafo único do art. 111 da Lei de Execução Penal (LEP)[2]dispõe que sobrevindo condenação no curso da execução, somar-se-á a pena imposta ao restante da que está sendo cumprida, sendo determinado novo regime de cumprimento de pena.Portanto, a determinação deste novo regime poderá ensejar a regressão para o regime fechado do condenado que estava em regime de liberdade ou semiliberdade, quando a soma das penas for superior a 8 anos.

    Tal situação remonta-nos ao movimento de um dos brinquedos mais antigos e populares do mundo: o ioiô. Enrolado na mão de uma pessoa o ioiô, preso em uma corda, é lançado no espaço até que em determinado momento é freado e o brinquedo, girando um pouco em falso, se enrola novamente na corda e volta a subir.

    Movimento semelhante ocorre com o apenado que estava em meio livre e volta para a prisão a partir do previsto no parágrafo único do art. 111 da Lei de Execução Penal. Enrolado nas “mãos” do poder, reificado no sistema prisional, o condenado-brinquedo é lançado no espaço através do mecanismo jurídico da progressão de regime até que em determinado momento, em que a corda se estica ao máximo, ele é freado e puxado novamente para o sistema prisional pelas referidas “maõs”.

    Ao permitir que o condenado que estava em liberdade, cumprindo o papel que a sociedade dele esperava, retorne ao cárcere por força do novo regime de cumprimento de pena definido pela unificação; o dispositivo legal em comento revela que é dispositivo de encarceramento cuja funcionalidade está a serviço do poder punitivo e não do homem. Disso, salta aos olhos a falácia da pena como forma de ressocialização, denotando o seu verdadeiro propósito de afastar o preso do meio social.

    É possível pensar que não há o que se discutir nesta situação, afinal, foi proferida nova sentença condenatória com imposição de pena de prisão por crime comprovadamente praticado. No entanto, ressalta-se que tal condenação é referente a crime praticado antes do início do cumprimento da pena em execução que foi julgado em momento posterior aquele em que foi determinada a primeira prisão.

    Ora, a pessoa que tem vários processos em curso não pode ser prejudicada em razão da desorganização da justiça que julga cada um dos seus processos em tempo e hora distintos. Uma vez que estes processos já se encontram no sistema de justiça o condenado deve ter o direito de saber, na integralidade, quanto tempo ficará no estabelecimento prisional. É inadmissível que ele fique a mercê do funcionamento da engrenagem do sistema punitivo estatal.

    Nesse sentido, faz-se necessário que haja um mandamento de priorização de todos os feitos pelos quais responde aquele que cumpre pena privativa de liberdade, possibilitando a unificação de penas e, por conseguinte, a definição da situação jurídica do condenado antes que ele obtenha direito à progressão de regime[3] .

    Ainda sobre o dispositivo da unificação de penas, tendo em vista as sub-humanas condições das prisões brasileiras, não pode ser permitido que alguém que já tenha passado pela prisão possa a ela regressar por crime praticado anteriormente à execução.

    O artigo 45 da Lei 12.594∕12 (SINASE) traz normativa sobre a unificação que deve ser seguida na execução penal, in verbis:

    Verifica-se que, diversamente do previsto na LEP, a lei do SINASE proíbe a autoridade judiciária de determinar o reinício de cumprimento de medida socioeducativa por ato praticado antes do início da execução. Proíbe também a aplicação de nova medida de internação, por atos praticados anteriormente, a adolescente que já tenha cumprido medida socioeducativa de internação ou que tenha sido transferido para cumprimento de medida menos rigorosa, sendo tais atos absorvidos por aqueles aos quais se impôs a medida socioeducativa extrema.

    Poder-se-ia argumentar que a peculiar finalidade pedagógica da medida socioeducativa autoriza tais proibições, vez que, tendo em vista que o adolescente já passou por um processo individualizado de atendimento pedagógico não pode passar por ele novamente. No entanto, denota-se que tal proibição não está ligada a natureza diversa da medida socioeducativa e da sanção penal, mas, à natureza humana daquele que sofre a intervenção penal.

    O direito e a norma devem servir ao homem e não ao poder. Nas palavras de Yarochewsky: “Não resta dúvida que o direito só faz sentido quando está a serviço do ser humano, ou melhor, da sua dignidade (…) A finalidade do direito é a proteção do homem quando o direito (instrumento de poder) desvirtua de sua principal finalidade, qual seja a proteção do indivíduo frente ao poder estatal, a sociedade passa a ser controlada pelo arbítrio e pelo autoritarismo do Estado”[5] .

    Ressalta-se que mensurar o impacto da pena na vida do condenado é algo bastante difícil. No entanto, é perceptível que em razão das péssimas condições de cumprimento da pena privativa de liberdade no país, como regra, a pena cumprida é mais aflitiva do que a pena aplicada havendo um déficit de legalidade entre a pena ficta e a pena real, concretamente executada[6].

    Tal déficit deve nortear a identificação de espaços e formas de redução de danos na execução penal. Medidas compensatórias podem ser tomadas neste sentido. Dentre elas a aplicação da interpretação analógica das regras de unificação do SINASE no âmbito da execução penal.

    Não obstante incidirem sobre sanções diversas destaca-se que o caráter sancionatório das penas e das medidas socioeducativas e, o que é mais importante, a condição humana daquele que sofre a intervenção punitiva autorizam o emprego da referida interpretação que proíbe a aplicação de nova medida privativa de liberdade.

    O condenado não é um brinquedo como o ioiô que pode ser lançado no espaço e depois puxado pela justiça para retornar à prisão. Sua natureza humana é voltada para a liberdade a qual deve esperar e caminhar para alcançá-la. Embora seja o princípio mais ignorado pelo poder criminalizante, o princípio da humanidade veda a aplicação de pena cujas consequências jurídicas sejam cruéis[7], tais como, a gerada pela unificação de penas na execução penal.

    Principalmente no campo da execução penal as pessoas submetidas à pena privativa de liberdade jamais podem ser tratadas como seres desprovidos de humanidade. Nesse sentido, a fundamentação da execução penal e suas regras devem partir do reconhecimento dos direitos humanos[8]. Não podem nunca se afastar do pressuposto da condição humana do apenado.

    O direito que não considera esta inviolável condição é mero instrumento de dominação a serviço da engrenagem punitiva, na hipótese, configura uma perversa brincadeira de ioiô.

    Klelia Canabrava Aleixo éDoutora em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Mestra em Ciências Penais pela Universidade Federal de Minas Gerais e Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

    Flávia Ávila Penido é Advogada, Mestra em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Especialista em Direito Público.

    [1] YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Sonho interrompido. Disponível em . Acesso em: 07 jun.2016.

    [2] BRASIL. Lei 7.210 de 11 de julho de 1984. Institui a lei de Execução Penal. Diário Oficial da União, Brasília, 13 de julho de 1984.

    [3] CARVALHO JÚNIOR, Alderico de. Pena e esperança: há algo além da Teoria agnóstica? 2016 (apostila).

    [4] BRASIL. Lei 12.594 de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional. Diário Oficial da União, Brasília, 18 de janeiro de 2012.

    [5] YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Qual a função da dogmática penal. Disponível em . Acesso em: 13 mar.2017.

    [6] TAVARES, Juarez. Parecer na ADPF nº 3472015. Disponível em: ˂https: ∕∕pt.scribd.com∕document∕267050676∕Parecer-Sistema-Carcerario-Versao-Final˃. Acesso em: 02 nov. 2016.

    [7] ZAFFARONI, Eugênio Raúl et al. Direito penal brasileiro: teoria geral do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, v. 1.

    [8] BRITO, Alexis Couto de. Fundamentos e Limites da Execução Penal no Estado Democrático de Direito. In: Delictae: Revista de ESTUDOS interdisciplinares sobre o Delito, vol. 1, nº 1, jul-dez. 2016, p. 50-95. Disponível em: ˂http://delictae.com.br/index.php/revista/index˃. Acesso em: 21 de abril de 2017.

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