STF desconsidera processos em andamento como maus antecedentes
Leia a decisão do ministro Celso de Mello no Habeas Corpus (HC) 96618 , na qual ele concedeu liberdade ao economista Antônio Carlos Prado preso por estelionato. O ministro entende que o réu não perde sua condição de primário apenas por responder a outros processos criminais nos quais ainda há possibilidade de recursos.
Leia, abaixo, a íntegra da decisão:
"MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 96.618-7 SÃO PAULO
RELATOR : MIN. EROS GRAU
PACIENTE (S) : ANTONIO CARLOS DA COSTA PRADO
IMPETRANTE (S) : SÉRGIO DE CARVALHO SAMEK
COATOR (A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DECISÃO DO SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO ( RISTF , art. 38 , I ):
Esta decisão é por mim proferida em face da ausência eventual, nesta
Suprema Corte, do eminente Relator da presente causa (fls. 144),
justificando-se, em conseqüência, a aplicação da norma inscrita no
art. 38 , I , do RISTF .
Trata-se de habeas corpus, com pedido de medida liminar,
impetrado contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal de
Justiça, restou consubstanciada em acórdão assim ementado (fls. 54):
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ESTELIONATO.
PACIENTE QUE JÁ RESPONDE A DIVERSOS INQUÉRITOS POLICIAIS E
AÇÕES PENAIS POR ESTELIONATO. PRISÃO PREVENTIVA. GARANTIA
DA ORDEM PÚBLICA E DA EVENTUAL APLICAÇÃO DA LEI PENAL.
DECRETO CONSTRITIVO E MANUTENÇÃO DA CUSTÓDIA DEVIDAMENTE
FUNDAMENTADOS. CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA.
DENEGAÇÃO DO WRIT.
1. A real periculosidade do réu, evidenciada na suposta
reiteração da prática do crime de estelionato, inclusive
com condenação, ainda não transitada em julgado, embora o
paciente permaneça tecnicamente primário, é motivação
idônea capaz de justificar a manutenção da constrição
cautelar, por demonstrar a necessidade de se resguardar a
ordem pública e garantir a aplicação da lei penal.
Precedentes do STJ.
2. A prisão cautelar justificada no resguardo da ordem
pública visa prevenir a reprodução de fatos criminosos e
acautelar o meio social, retirando do convívio da
comunidade aquele que, diante do modus operandi ou da
habitualidade de sua conduta, demonstra ser dotado de
periculosidade.
3. As condições subjetivas favoráveis do paciente, tais
como primariedade, bons antecedentes, residência fixa e
trabalho lícito, por si sós, não obstam a segregação
cautelar, quando preenchidos seus pressupostos legais.
4. Habeas Corpus denegado, em conformidade com o
parecer ministerial.
(HC 84.581/SP , Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO)
HC 96.618-MC / SP
Os fundamentos em que se apóia a presente impetração
revestem-se de inquestionável relevo jurídico, especialmente se se
examinar o conteúdo da decisão que decretou a prisão preventiva do
ora paciente, confrontando-se, para esse efeito, as razões que lhe
deram suporte com os padrões que a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal firmou na matéria em análise.
Eis, no ponto, o teor do decreto de prisão preventiva que,
emanado da MM. Juíza de Direito da 2ª Vara Criminal da comarca de
São Paulo/SP, motivou as sucessivas impetrações de habeas corpus
em favor do ora paciente (fls. 33):
Defiro os requerimentos formulados pelo Dr. Promotor
a fls. 1572, inclusive no tocante à prisão preventiva.
Há, com efeito, provas da existência do delito e
indícios de autoria em relação aos réus, cujos maus
antecedentes e ausência de vinculação, bem como a
gravidade do crime, tornam necessária a custódia, para a
garantia da ordem pública, e da aplicação da lei penal, e
conveniência da instrução criminal.
Isto posto, com fundamento no artigo 312 do Código de Processo Penal, decreto a prisão preventiva dos réus
Antonio Carlos da Costa Prado, José Carlos Dantas e Bruno
Fleires, expedindo-se mandado de prisão.
Presente esse contexto, cabe verificar se os fundamentos
subjacentes à decisão ora questionada ajustam-se, ou não, ao
magistério jurisprudencial firmado pelo Supremo Tribunal Federal no
exame do instituto da prisão preventiva.
As razões que fundamentam o decreto judicial de prisão
cautelar, cujo texto se acha reproduzido a fls. 33, podem ser assim
resumidas: (a) gravidade do crime, (b) maus antecedentes e
(c) ausência de vinculação do distrito da culpa.
Tenho para mim que a decisão em causa, ao decretar a prisão
preventiva do ora paciente, nos termos em que o fez, apoiou-se em
elementos insuficientes, destituídos de base empírica idônea,
revelando-se, por isso mesmo, desprovida de necessária fundamentação
substancial.
Todos sabemos que a privação cautelar da liberdade
individual é sempre qualificada pela nota da excepcionalidade. Não
obstante o caráter extraordinário de que se reveste, a prisão
preventiva pode efetivar-se, desde que o ato judicial que a
formalize tenha fundamentação substancial, com base em elementos
concretos e reais que se ajustem aos pressupostos abstratos -
juridicamente definidos em sede legal - autorizadores da decretação
dessa modalidade de tutela cautelar penal (RTJ 134/798, Rel. p/ o
acórdão Min. CELSO DE MELLO).
É por isso que esta Suprema Corte tem censurado decisões
que fundamentam a privação cautelar da liberdade no reconhecimento
de fatos que se subsumem à própria descrição abstrata dos elementos
que compõem a estrutura jurídica do tipo penal:
(...) PRISÃO PREVENTIVA - NÚCLEOS DA TIPOLOGIA -
IMPROPRIEDADE. Os elementos próprios à tipologia bem como
as circunstâncias da prática delituosa não são suficientes
a respaldar a prisão preventiva, sob pena de, em última
análise, antecipar-se o cumprimento de pena ainda não
imposta (...).
(HC 83.943/MG , Rel. Min. MARÇO AURÉLIO grifei)
Essa asserção permite compreender o rigor com que o Supremo
Tribunal Federal tem examinado a utilização, por magistrados e
Tribunais, do instituto da tutela cautelar penal, em ordem a impedir
a subsistência dessa excepcional medida privativa da liberdade,
quando inocorrente hipótese que possa justificá-la:
Não serve a prisão preventiva, nem aConstituiçãoo
permitiria que para isso fosse utilizada, a punir sem
processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual
(...) ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória ( CF , art. 5º ,
LVII ).
O processo penal, enquanto corre, destina-se a apurar
uma responsabilidade penal; jamais a antecipar-lhe as
conseqüências.
Por tudo isso, é incontornável a exigência de que a
fundamentação da prisão processual seja adequada à
demonstração da sua necessidade, enquanto medida cautelar,
o que (...) não pode reduzir-se ao mero apelo à gravidade
objetiva do fato (...).
(RTJ 137/287, 295, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE grifei)
Entendo, por tal razão, que os fundamentos subjacentes ao
ato decisório emanado da ilustre magistrada de primeira instância,
que decretou a prisão cautelar do ora paciente, conflitam com os
estritos critérios que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
consagrou nessa matéria.
Impende assinalar, desse modo, que a gravidade em abstrato do
crime não basta para justificar a privação cautelar da liberdade
individual do paciente.
O Supremo Tribunal Federal tem advertido que a natureza da
infração penal não se revela circunstância apta, só por si, para
justificar a privação cautelar do status libertatis daquele que
sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado.
Esse entendimento vem sendo observado em sucessivos
julgamentos proferidos no âmbito desta Corte, ainda que o delito
imputado ao réu seja legalmente classificado como crime hediondo
(RTJ 172/184, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - RTJ 182/601-602, Rel.
p/ o acórdão Min. SEPÚLVEDA PERTENCE RHC 71.954/PA , Rel.
Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g.):
A gravidade do crime imputado, um dos malsinados
crimes hediondos ( Lei 8.072 /90 ), não basta à justificação
da prisão preventiva, que tem natureza cautelar, no
interesse do desenvolvimento e do resultado do processo, e
só se legitima quando a tanto se mostrar necessária: não
serve a prisão preventiva, nem a Constituição permitiria
que para isso fosse utilizada, a punir sem processo, em
atenção à gravidade do crime imputado, do qual, entretanto,
ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória (CF , art. 5º , LVII).
(RTJ 137/287, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE grifei)
A ACUSAÇÃO PENAL POR CRIME HEDIONDO NÃO JUSTIFICA A
PRIVAÇÃO ARBITRÁRIA DA LIBERDADE DO RÉU.
- A prerrogativa jurídica da liberdade - que possui
extração constitucional ( CF , art. 5º , LXI e LXV ) - não pode
ser ofendida por atos arbitrários do Poder Público, mesmo
que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime
hediondo, eis que, até que sobrevenha sentença condenatória
irrecorrível ( CF , art. 5º , LVII ), não se revela possível
presumir a culpabilidade do réu, qualquer que seja a
natureza da infração penal que lhe tenha sido imputada.
(RTJ 187/933-934, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Cabe referir, ainda, que também não legitima o ato
excepcional de privação cautelar da liberdade individual a afirmação
de que o ora paciente possui maus antecedentes, por ter, contra si,
procedimentos penais de que não haja resultado condenação com
trânsito em julgado.
Conforme já proclamado, em diversas oportunidades, por esta
Suprema Corte (RTJ 136/627 - RTJ 139/885, v.g.), a mera sujeição de
alguém a simples investigações policiais ou a persecuções criminais
ainda em curso não basta, só por si - ante a inexistência de
condenação penal transitada em julgado -, para justificar o
reconhecimento de que o réu não possui bons antecedentes ou, então,
para legitimar a imposição de sanções mais gravosas, como a
decretação de prisão cautelar, ou a denegação de benefícios de ordem
legal.
A submissão de uma pessoa a meros inquéritos policiais -
ou, ainda, a persecuções criminais de que não haja derivado, em
caráter definitivo, qualquer título penal condenatório - não se
reveste de suficiente idoneidade jurídica para autorizar a
formulação, contra o indiciado ou o réu, de juízo (negativo) de maus
antecedentes, em ordem a recusar, ao que sofre a persecutio
criminis, o acesso a determinados benefícios legais:
PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE NÃO-CULPABILIDADE ( CF ,
ART. 5º, LVII ). MERA EXISTÊNCIA DE INQUÉRITOS POLICIAIS EM
CURSO (OU ARQUIVADOS), OU DE PROCESSOS PENAIS EM ANDAMENTO,
OU DE SENTENÇA CONDENATÓRIA AINDA SUSCETÍVEL DE IMPUGNAÇÃO
RECURSAL. AUSÊNCIA, EM TAIS SITUAÇÕES, DE TÍTULO PENAL
CONDENATÓRIO IRRECORRÍVEL. CONSEQÜENTE IMPOSSIBILIDADE DE
FORMULAÇÃO, CONTRA O RÉU, COM BASE EM EPISÓDIOS PROCESSUAIS
AINDA NÃO CONCLUÍDOS, DE JUÍZO DE MAUS ANTECEDENTES.
PRETENDIDA CASSAÇÃO DA ORDEM DE HABEAS CORPUS. POSTULAÇÃO
RECURSAL INACOLHÍVEL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO IMPROVIDO.
- A formulação, contra o sentenciado, de juízo de maus
antecedentes, para os fins e efeitos a que se refere o
art. 59 do Código Penal , não pode apoiar-se na mera
instauração de inquéritos policiais (em andamento ou
arquivados), ou na simples existência de processos penais
em curso, ou, até mesmo, na ocorrência de condenações
criminais ainda sujeitas a recurso.
É que não podem repercutir, contra o réu, sob pena de
transgressão ao postulado constitucional da não-culpabilidade
( CF , art. 5º , LVII ), situações jurídico-processuais ainda não
definidas por decisão irrecorrível do Poder Judiciário,
porque inexistente, em tal contexto, título penal
condenatório definitivamente constituído. Doutrina.
Precedentes.
(RE 464.947 /SP , Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Tal entendimento - que se revela compatível com a presunção
constitucional juris tantum de inocência ( CF , art. 5º , LVII )
ressalta, corretamente, e com apoio na jurisprudência dos Tribunais
(RT 418/286 - RT 422/307 RT 572/391 - RT 586/338), que processos
penais em curso, ou inquéritos policiais em andamento ou, até mesmo,
condenações criminais ainda sujeitas a recurso não podem ser
considerados, enquanto episódios processuais suscetíveis de
pronunciamento judicial absolutório, como elementos evidenciadores de
maus antecedentes do réu ou justificadores da decretação de sua prisão
cautelar.
É por essa razão que o Supremo Tribunal Federal já decidiu,
por unânime votação, que Não podem repercutir, contra o réu,
situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão
irrecorrível do Poder Judiciário, especialmente naquelas hipóteses
de inexistência de título penal condenatório definitivamente
constituído (RTJ 139/885, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Também não se reveste de idoneidade jurídica, para efeito
de justificação do ato excepcional de privação cautelar da liberdade
individual, a alegação de ausência de vinculação do paciente ao
distrito da culpa.
Como se sabe, a mera desvinculação ao distrito da culpa não
basta, só por si, para legitimar a utilização do instituto da tutela
cautelar penal (HC 95.110-MC/SC , Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Nem se diga que a decisão emanada da magistrada local teria
sido reforçada, em sua fundamentação, pela decisão que manteve a
prisão cautelar do ora paciente e pelo julgamento que veio a ser
proferido pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
(HC
/4), eis que a legalidade da decisão que decreta (oumantém) a prisão cautelar - considerada a diretriz jurisprudencial
que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria - há de ser aferida
em função dos fundamentos que lhe dão suporte, e não em face de
eventual reforço advindo dos julgamentos emanados das instâncias
judiciárias superiores.
Em suma: a análise dos fundamentos invocados pela parte ora
impetrante leva-me a entender que a decisão ora questionada não
observou os critérios que a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal firmou em tema de prisão cautelar.
Sendo assim, tendo presentes as razões expostas, defiro o
pedido de medida liminar, para, até final julgamento desta ação
de habeas corpus, suspender, cautelarmente, a eficácia do
decreto de prisão preventiva do ora paciente, referentemente ao
Processo nº 583.04.098452-4, Controle nº 1.653/2006 (2ª Vara Criminal
da comarca de São Paulo/SP), expedindo-se, imediatamente, em favor
desse mesmo paciente, se por al não estiver preso, o pertinente
alvará de soltura.
Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente
decisão ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC 84.581/SP) , ao
E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (HC
/4) e àMM. Juíza de Direito da 2ª Vara Criminal da comarca de São Paulo/SP
(Processo nº 583.04.098452-4, Controle nº 1.653/2006).
Publique-se.
Brasília, 24 de outubro de 2008.
Ministro CELSO DE MELLO
(RISTF , art. 38 , I)"
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