Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
6 de Maio de 2024
    Adicione tópicos

    Vara especializada para processamento e julgamento de crime de abuso de autoridade

    No entender do Supremo Tribunal Federal (STF), a criação de varas especializadas pelo próprio Poder Judiciário é constitucional, por se tratar de medida administrativa de organização judiciária (HC nº 88.660). Em meados de 2008, durante o debate jurídico sobre a edição da Súmula Vinculante nº 11, que regulamentou o uso de algemas, a proposta de criação de vara especializada para processamento e julgamento de crime de abuso de autoridade ganhou destaque na voz do então Presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes. Naquela ocasião, a principal motivação da proposta foram as acusações de excessos cometidos pela Polícia Federal na operação em que o ex-prefeito Celso Pitta, o banqueiro Daniel Dantas e o investidor Naji Nahas foram presos. A existência de vara especializada serviria para dar celeridade e prioridade ao processamento e julgamento desses crimes. O problema é que tais argumentos são frágeis para lastrear uma proposta como essa, que deve ser tratada com muita desconfiança.

    Segundo a Lei nº 4.898/65, o crime de abuso de autoridade é de menor potencial ofensivo, porque a pena de detenção, que é o referencial para determinação da natureza de menor ofensividade do delito, varia entre dez dias e seis meses, ou seja, não ultrapassa a pena máxima in abstrato de dois anos. A despeito de considerações críticas da legislação, que, a partir da quantidade de pena, mostra que não assume a dimensão de gravidade do crime perante a sociedade - a pena estipulada para o abuso de autoridade é menor do que a do crime de maus-tratos a animais (art. 32 da Lei nº 9.605/98), o que inclusive viabiliza transação penal -, o fato é que atualmente, segundo o STJ, este crime é julgado em Juizados Especiais Criminais, regidos justamente pelos princípios da celeridade e economia processual (CC nº 36.252). Nesse contexto, em que o tratamento prioritário é decorrência lógica da estrutura dos Juizados, não faz sentido criar vara especializada em julgamento de abuso de autoridade.

    Seja como for, se por um lado é evidente que os Juizados lidam com um volume de processos longe do ideal, que prestigia a eficiência da prestação jurisdicional, por outro isso não legitima, por si só, a criação de vara especializada, inclusive porque a proporção de processamento desse crime é incipiente diante dos demais. O problema em torno do crime de abuso é, antes de outra coisa, de natureza legislativa: a sensação de impunidade não desaparecerá diante da criação de vara especializada para implementar uma lei ultrapassada. Ainda assim, mesmo que ocorra o recrudescimento desta norma ordinária, o crime de abuso de autoridade está longe de se caracterizar, salvo exceções casuísticas, como de grande complexidade e especialidade a justificar a criação de vara própria, a exemplo dos crimes de lavagem de dinheiro, que envolvem organizações criminosas compostas por diversas pessoas, cujas atividades dependem da prática de outros crimes antecedentes, praticados em mais de uma localidade.

    Há razões que nutrem a desconfiança sobre essa proposta. Afora o debate jurídico sobre a pertinência da criação dessas varas, o contexto político em que nasceu a proposta sinaliza um movimento de intimidação aos policiais, como se apenas autoridades policiais e seus agentes (na linguagem do art. 301 do CPP) praticassem tais crimes, e essa ponderação não é fruto de síndrome de perseguição. A prova disso é que as demais autoridades com voz no jogo do processo judicial e que podem cometer abuso de autoridade - promotores de justiça, procuradores da República, juízes de direito e federais, desembargadores estaduais e federais, ministros de Cortes Superiores - têm prerrogativa de foro, o que significa que jamais serão processadas e julgadas nessas varas especializadas, pois o princípio da especialidade não prevalecerá sobre a reserva constitucional. Essa sutileza revela que o público-alvo das varas de abuso será a autoridade policial, ou seja, justamente aqueles que não têm garantias funcionais no exercício da profissão, nos moldes do art. 93 da Constituição Federal de 1988.

    Acaso a criação de varas especializadas se consolide na vigência da Lei nº 4.898/65, sem alterações, como resultado de uma decisão de natureza discricionária, o desejo é que o foro por prerrogativa de função deixe de existir para o crime de abuso, já que a intenção é combater esse tipo de delito. Se for para atender aos imperativos de otimização do trabalho jurisdicional no julgamento desse crime, então que a medida permita processar todos os abusos, independentemente de quem os pratique.

    Como é improvável que a prerrogativa deixe de existir, seguindo a tendência de raciocínio do STF (ADI nº 2.860-DF) e do STJ (Rcl nº 2.790-SC), que têm debatido sobre isso para entender que ato de improbidade administrativa - que nem crime é - praticado por quem tem prerrogativa não pode ser julgado por juiz de primeira instância, então a conclusão é que a proposta de criação de vara especializada não deve sair do papel.

    Fonte:

    • Publicações960
    • Seguidores16
    Detalhes da publicação
    • Tipo do documentoNotícia
    • Visualizações40
    De onde vêm as informações do Jusbrasil?
    Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/vara-especializada-para-processamento-e-julgamento-de-crime-de-abuso-de-autoridade/2319528

    0 Comentários

    Faça um comentário construtivo para esse documento.

    Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)