Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
1 de Maio de 2024

Magistratura, ideologia e psicologia

A propósito de uma obra fundamental para a nossa época

há 9 anos

A propósito de uma obra fundamental para a nossa época*

Marco Antônio Ribeiro Tura**

Alguns juízes jamais aceitarão a afirmativa de que sua atividade é predominantemente retórica, já que se consideram sinceramente neutros e imparciais. No entanto devem conformar-se com saber que a imparcialidade é impossível quando se trabalha em áreas de conflito, onde se chocam interesses e valores” (Nilo Bairros de Brum, jurista).

O juiz que não tem valores e diz que o seu julgamento é neutro, na verdade está assumindo os valores de conservação. O juiz sempre tem valores. Toda sentença é marcada por valores. O juiz tem que ter a sinceridade de reconhecer a impossibilidade de uma sentença neutra” (Rui Portanova, magistrado).

A capacidade de julgar a realidade exterior depende diretamente de como é o juízo crítico de cada pessoa em relação ao seu mundo interior” (David Zimerman, psiquiatra).

É comum encerrar a apresentação de uma obra com a recomendação de sua leitura a todos os leitores. Não estamos diante de uma obra comum. Então, permitam-me agir de maneira oposta. Começo a apresentação desta obra, em respeito ao seu espírito, não recomendando sua leitura a certos leitores.

Por quê?! Explicarei.

Em seu trabalho sobre os aspectos psicológicos da atividade jurídica, o médico psiquiatra David Zimerman afirma que os magistrados podem ser reunidos em dez tipos. Como idealizações, tais tipos jamais se apresentam, na realidade, em formas puras, mas sempre combinados entre si. Zimerman, curiosamente, não menciona um tipo específico de magistrado: o sádico.

O magistrado sádico tem um comportamento estatístico e uma mentalidade tecnocrática, que usa com habilidade para disfarçar a ideologia da classe com a qual se identifica; nele há um espírito fazendário tão encarnado que o faz assumir o corpo do fazendeiro e tratar o jurisdicionado feito gado; e gado, sabemos, se conta, se marca, se mata.

O magistral sadismo é um mal que desumaniza, que coisifica, que converte a todos, inclusive ao magistrado sádico, em números; mal que, nesses tempos de reprodutibilidade da decisão em escala industrial, faz com que o seu portador se limite a tratar os dramas cotidianos como sentenças contadas, risonha e vitoriosamente, aos milhares.

Até mesmo por razões terapêuticas, recomendo este livro para todos os tipos de magistrados apontados por Zimerman. Menos para os magistrados sádicos. Pois este livro não vem para socorrê-los. Este livro se volta contra vocês!

Aos demais, magistrados ou jurisdicionados, recomendo fortemente este livro que, como verão, possui méritos maiores do que os meramente acadêmicos, aferidos para que seja conferido um grau ou algum título.

O livro de Júlia Lenzi Silva é obra de reflexão científica; mas, também, instrumento de ação política. Como obra de reflexão científica, o livro expressa uma análise do objeto como totalidade. Como instrumento de ação política, o livro representa a tomada de partido em favor dos vulneráveis, seja no sentido de privação material, seja no sentido de restrição informacional.

Em nenhum momento Júlia teme dizer que é parcial. E, em minha opinião, nada há a temer quem tem ao seu lado o modelo constitucionalmente consagrado: um modelo favorável ao desenvolvimento equilibrado e sustentável, à diminuição das desigualdades sociais e regionais e, principalmente, à erradicação da miséria. Pois não me parece um mero acaso que, invariavelmente, vejamos os que se dizem imparciais também se declararem contrários ou atuarem em contrariedade ao projeto concebido pelos constituintes para o Brasil pós-88. Os autodeclarados imparciais, frequentemente, juram obediência à Constituição quando de suas posses funcionais e, depois, mostram-se mais preocupados com as suas posses materiais.

O texto do livro é denso e profundo, como se espera de um trabalho científico; porém, para minha surpresa, de leitura extremamente agradável, algo incomum no ambiente acadêmico atual.

Marcado pela abordagem interdisciplinar, o livro contém elementos de teoria moral e de dogmática jurídica e trata de questões políticas e econômicas sempre com a mesma desenvoltura; sem perder de vista que, ao final, o projeto é, por assim dizer, transdogmático, isto é: uma crítica conceitualmente consistente e operacionalmente coerente à dogmática vigente a partir e por meio dela, mas para além dela, para derrotar, de uma tacada, o panfletário e o chicaneiro.

Na visão de Júlia, a Constituição de 1988, superando o regime anterior de seguro social, assumiu o conceito de seguridade social como núcleo de um sistema que, fundado na solidariedade, integra a previdência, a saúde e a assistência, com vistas à promoção, à proteção e à preservação da dignidade humana.

O modelo constitucional, porém, teria sido esvaziado pela legislação e pela administração. Enquanto os constituintes idealizaram políticas para o desenvolvimento social (qualitativo), legisladores e administradores realizaram políticas para o crescimento econômico (quantitativo); algumas vezes, contrariamente às leis e aos regulamentos, mas todas as vezes em confronto com a Constituição.

Esse proceder da legislação e da administração encontra guarida em uma certa jurisdição que insiste em ver a nova ordem com velhos olhos, submetendo a Constituição aos ditames da legislação e aos apelos da administração.

Como salvar a Constituição de tão infieis guardiões?!

A concretização do Direito, bem sabemos, é questão política e, como tal, envolve lutas entre classes, grupos, indivíduos. Se a elaboração do texto da Constituição envolveu lutas variadas, sua implementação exigirá muitas mais. Toda formulação teórica que se proponha a formar o intérprete da Constituição, nesse sentido, é também doutrina prática para a conformação do aplicador da Constituição.

Na linha da luta pelo Direito, Júlia volta suas baterias contra as abordagens típicas do juspositivismo vulgar, focadas na forma da norma estatal como começo e em seu conteúdo como fim de todo o labor jurídico. A luta contra essa vulgata juspositivista, porém, não leva Júlia para a vulgata jusnaturalista. A meta almejada, em meu sentir, é a da superação do juspostivismo, e, portanto, da afirmação de alguns de seus elementos e negação de outros tantos, conforme o que se convencionou denominar de pós-positivismo.

Júlia, assim, lança mão de dois expedientes no campo da dogmática hermenêutica e da dogmática empírica, a saber: a metodologia relacional e o princípio da parcialidade positiva. Enquanto a metodologia relacional implica a adoção das perspectivas da alteridade e da complexidade, a parcialidade positiva instrumentaliza tais perspectivas no campo da processualidade.

Na visão tradicional, as partes são consideradas formalmente iguais e o juiz afirma-se como terceiro desinteressado no direito posto em lide, porque visto do ângulo subjetivo. Na visão alternativa, a desigualdade material das partes é reconhecida e o juiz, embora terceiro, manifesta um interesse especial, interesse de fazer valer o direito sobreposto à lide, porque visto pelo ângulo objetivo. Ali importa saber quem tem o direito à tutela. Aqui importa saber a quem o direito tutela.

A preocupação central de Júlia é contribuir para a concretização do projeto constitucional da seguridade social por meio do processo judicial previdenciário. Trata-se, pois, de discurso em favor da afirmação de uma certa dimensão dos direitos humanos, a dimensão dos direitos a prestações materiais. Falo em direitos humanos e não em direitos fundamentais, pois, para mim, persiste uma essencial diferença entre ambas as expressões e assim o é ainda e apesar da aproximação entre as ordens nacional e internacional.

Por se situarem entre a eticidade e a juridicidade, os direitos humanos são a “ratio” e o “telos” das ordens nacional e internacional. Por isso, direitos humanos, ao contrário dos direitos fundamentais, independem de positivação. Os direitos humanos são critérios de legitimação das ordens nacional e internacional e, assim, evidentemente não podem ser delas decorrentes. As ordens nacional e internacional limitam-se, quando muito, a declará-los, jamais constituí-los. Nesse sentido, os direitos humanos não demandam apreciações de validade, mas de efetividade; não demandam normas jurídicas que os consagrem, mas políticas públicas que os realizem.

É certo que a afirmação dos direitos humanos demanda a existência de magistrados que, como indivíduos, almejem permanecerem psicologicamente bem cuidados, juridicamente bem formados e politicamente bem resolvidos de modo a desempenharem adequadamente o relevante papel de implementadores das políticas públicas constitucionalmente delineadas e, neste sentido, operarem como agentes políticos (da Nação) e não como meros servidores públicos (do Estado).

A afirmação dos direitos humanos demanda, porém, anterior e superiomente, a presença na magistratura, como instituição, de uma cultura eticamente comprometida com a luta pelo império do Direito, com a luta da civilização contra a barbárie, com a luta pela construção de sociedades em que se imponha uma ordenação objetiva protetiva da dignidade marcadamente transindividual em vez da ordem subjetiva expansiva da liberdade meramente individual.

Em uma síntese, que creio nada dever ao pensamento e ao sentimento de Júlia, percebo em sua obra, como proposta central, a ideia de fazer com que o processo judicial previdenciário supere a distinção artificial entre fatos e normas, entre efetividade e validade, entre ser e dever-ser.

E isto não apenas para que o mundo do ser seja conformado pelo mundo do dever-ser, como quer uma certa concepção mecânica acerca da concretização do direito, mas, especial e principalmente, pela constatação de que a relação entre ambos, por ser dialética, torna impossível, em matéria de direitos humanos, a conformação do ser pelo dever-ser sem que o julgador conheça o destinatário real dos preceitos protetivos e o reconheça como portador de específicas circunstâncias vitais. Preceitos de direitos humanos são acatados na medida em que se ressalta a humanidade que qualifica a juridicidade e não o contrário.

Obviamente, portanto, em havendo um programa constitucional dirigido à preservação, proteção e promoção de condições essenciais à vida, nenhuma decisão será constitucionalmente adequada se permitir que pereça o próprio sujeito que pleiteia a observância do direito que tem, em sua essencial dignidade, na dignidade do sujeito postulante, seu fundamento e sua finalidade.

Em nossos tempos, com justa razão, reclamamos que as soberanias cedam ante a dignidade humana.

Creio que, com razão ainda mais justa, deveríamos reclamar, com Júlia, que à dignidade humana cedam as corporações e as autarquias.

*Originalmente publicado in: SILVA, Júlia Lenzi. Processo judicial previdenciário e política pública de previdência social. Curitiba: Juruá, 2015.

** Pesquisador do Programa de Pós-Doutorado em Direito Político e Econômico da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo e Orientador do Grupo de Regulação de Mercados e Políticas Setoriais do Programa de Pesquisas em Finanças Públicas da Escola de Administração Fazendária. Doutor em Direito Internacional e Integração Econômica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Ministério Público da União. Procurador do Trabalho no Estado de São Paulo.

  • Publicações4
  • Seguidores3
Detalhes da publicação
  • Tipo do documentoArtigo
  • Visualizações126
De onde vêm as informações do Jusbrasil?
Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/magistratura-ideologia-e-psicologia/205467423

0 Comentários

Faça um comentário construtivo para esse documento.

Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)