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15 de Maio de 2024

Reconhecimento de pessoas no processo penal: exigência de formalidades legais

O que os olhos não veem o coração não sente? Saiba como a psicologia judicial mudou o entendimento dos Tribunais Superiores sobre o tema

Publicado por Isaac Messias
ano passado

Vagaries of memory mean eyewitness testimony isnt perfect

O processo penal é o jurídico e legítimo meio de se obter uma pena, ideia que surge do princípio de vedação da pena sem prévio processo. Significa dizer que há necessidade de que haja formalidades legais para a sentença penal condenatória. Mas tal não significa formalismo por formalismo, antes é estabelecer a finalidade de credibilidade do juízo definitivo, reduzindo ao máximo o erro judiciário (LOPES JR, 2022).

Aplicando tal entendimento ao meio de obtenção de prova reconhecimento de pessoas temos que as determinações constantes no artigo 226 do CPP devem ser observadas sob pena de reduzida credibilidade da prova produzida, seja em sede instrutória ou em sede investigatória, podendo ocorrer nulidade da prova ou ainda afetar na sua (des) valoração.

Determina o art. 226, CPP o seguinte:

Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida; II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la; III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela; IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais. Parágrafo único. O disposto no inc III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.

Entende-se pela leitura do artigo que deve haver demonstração da necessidade do ato de reconhecimento de pessoa, tendo em vista que está muito conectado com a dimensão da autoria delitiva - consubstanciada na justa causa. Posta a dúvida da autoria já se percebe a necessidade do ato.

A regra é clara:

Descreve-se a pessoa a ser reconhecida, o réu é colocado ao lado de pessoas semelhantes, a pessoa reconhecedora deve indicar quem entende ser o autor do fato, tendo, por fim, a lavratura do ato, nessa ordem.

A doutrina hodiernamente define como cinco o número de pessoas semelhantes a serem pareadas com o réu para fins de maior confiabilidade.

Extrai-se, portanto, que a vítima - geralmente quem reconhece - deve ter independência nesse procedimento não sendo tolerado pelo Direito invasões de autoridades que pretendem “ajudar” no reconhecimento.

Perguntas como “o autor é aquele ali?, apontando” não devem ser toleradas.

No atual modelo de nulidades no processo penal há necessidade de concreta demonstração de prejuízo. No entanto, os Tribunais Superiores passaram a perceber presunção do prejuízo quando não observadas as formalidades do art. 226, CPP como pode-se observar entendimento esposado pelo STJ.

No HC n. 598.886/SC, de relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 27/10/2020, houve proposta de nova interpretação ao art. 226 do CPP, conferindo cogência - verdadeira - ao dispositivo afastando a argumentação do cotidiano forense de que era “mera recomendação”, o que uma vez já foi ventilado como entendimento do STJ. Com tal mudança há nulidade por eventual descumprimento somada com a imposição do relator aos magistrados:

“Este Superior Tribunal de Justiça, a seu turno, ao conferir nova e adequada interpretação do art. 226 do CPP, sinaliza, para toda a magistratura e todos os órgãos de segurança nacional, que soluções similares à que serviu de motivo para esta impetração não devem, futuramente, ser reproduzidas em julgados penais.”

Colaciona-se o julgado em comento os motivos aos quais levaram a mudança de entendimento por parte do Tribunal Superior:

[...] 2. Segundo estudos da Psicologia moderna, são comuns as falhas e os equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações. Isso porque a memória pode, ao longo do tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível para a reconstrução do fato. O valor probatório do reconhecimento, portanto, possui considerável grau de subjetivismo, a potencializar falhas e distorções do ato e, consequentemente, causar erros judiciários de efeitos deletérios e muitas vezes irreversíveis. 3. O reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de "mera recomendação" do legislador. Em verdade, a inobservância de tal procedimento enseja a nulidade da prova e, portanto, não pode servir de lastro para sua condenação, ainda que confirmado, em juízo, o ato realizado na fase inquisitorial, a menos que outras provas, por si mesmas, conduzam o magistrado a convencer-se acerca da autoria delitiva. Nada obsta, ressalve-se, que o juiz realize, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório. ( HC n. 598.886/SC, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 27/10/2020, DJe de 18/12/2020.)

Observa-se que houve enfrentamento do entendimento de que o art. 226, CPP possuía apenas recomendações ao judiciário com uma análise da psicologia judicial, campo de estudos importantes para compor com o judiciário, haja vista o processo como atividade de cognição, e da prova como signo de algo que se deu no passado (LOPES JR, 2022)

Aury Lopes Júnior (2022) expõe as afetações na memória capazes de comprometer o ato de reconhecimento de pessoas, tais como o efeito “foco da arma”, efeito compromisso, transmissão de inconsciente, e construção de falsas memórias - todos capazes de conduzir a imprestabilidade do reconhecimento. Sob esta ótica, a necessidade de formalidades legais se torna patente.

Brevemente, a transmissão de inconsciente, por exemplo, é capaz de fazer com que a pessoa reconheça que uma pessoa esteve em determinado lugar e circunstância quando na verdade essa pessoa foi vista por ela momentos antes. Pode ocorrer uma transmissão da imagem da pessoa para outro lugar e outro momento, tudo por deturpações da memória. Nesse caso, o que os olhos não veem o coração pode sentir.

Ademais, em recente decisão do STF no RHC 206846 de relatoria do Min. Gilmar Mendes, julgado em 22/02/2022, além de prever que inobservância do procedimento descrito gera invalidade do reconhecimento, há críticas ao procedimento previsto no art. 226, CPP (não alterado desde 1941), esclarecendo que não é suficiente para o incremento da credibilidade da prova colhida pelo reconhecimento de pessoas, apresentando sugestões de recentes estudos da psicologia judicial quais sejam:

a) um número mínimo de fillers (pessoas semelhantes ao investigado apresentadas juntamente a ele no momento do reconhecimento, mas que se sabe inocentes); b) as instruções que devem ser dadas ao reconhecedor antes do procedimento, como a informação de que o autor do fato pode ou não estar entre as pessoas exibidas, e a vedação a feedbacks confirmatórios depois do ato; c) idealmente, deve-se adotar procedimento duplo-cego, em que os servidores que organizam o reconhecimento também não sabem quem é o suspeito em identificação; d) devem ser estabelecidos “critérios de ‘suspeita razoável’ para realizar o procedimento, ou seja, as investigações devem levar ao reconhecimento, não partir deste. (BRASIL, p. 6, 2022, apud CECCONELLO, et al, p. 359-368, 2021)

Com isso, a atenção quanto as nulidades referentes ao procedimento devem ser dobradas, desde o momento da investigação preliminar até a instrução processual, tendo em vista esse novo paradigma psicológico que revolveu a jurisprudência

Por fim, das análises jurisprudenciais efetuadas, bem como da exposição doutrinária entende-se pela necessidade do compromisso com as formalidades constantes no art. 226 do CPP, não havendo sombra de variação, inclusive com incremento da confiabilidade dessa prova - um esforço dos agentes do Estado - sob pena de haver dúvida razoável sobre a autoria delitiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. Saraiva Educação SA, 2022.

(CECCONELLO, William W.; STEIN, Lilian M.; DE AVILA, Gustavo N. Novos rumos para o reconhecimento de pessoas no Brasil? Perspectivas da Psicologia do Testemunho frente à decisão HC 598.886-SC. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 177, p. 359-368, 2021)

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