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27 de Maio de 2024
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    Uma breve reflexão sobre a importância da Defensoria Pública no enfrentamento da letalidade de crianças e adolescentes

    Publicado por Dimilly Andrade
    há 3 anos

    Dimilly de Andrade Ferreira Fernandes

    O direito da Infância e Juventude no Brasil passa por grandes transformações desde a implementação da Doutrina da Proteção Integral e o reconhecimento das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Na legislação brasileira, a criança tem direito à brincadeira, atenção individual, a um ambiente aconchegante, seguro e estimulante, ao contato com a natureza, higiene, saúde, alimentação sadia, a desenvolver sua curiosidade, imaginação, capacidade de expressão, ao movimento em espaços amplos e alegres, à proteção, ao afeto e amizade. Contudo, apesar dos avanços na elaboração da legislação protetiva à criança e adolescente, ainda vivenciamos um momento histórico de muitos desafios para efetivar os direitos fundamentais enunciados na Constituição Federal Brasileira de 1988 - CF/88.

    Mas o que é um direito? “Um direito difere de um privilégio, de uma necessidade ou carência e de um interesse"(CHAUI, 2019, p. 275). A Convenção sobre os Direitos da Criança adotada pela Assembleia Geral da ONU, realizada em 20 de novembro de 1989 (entrou em vigor em 2 de setembro de 1990), em consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e Estatuto da Criança e Adolescente – ECA de 1990, é um dever de todos nós, enquanto adultos e sociedade, proteger e cuidar da criança e do adolescente,"sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra natureza, seja de origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição."

    Um dos principais direitos fundamentais previstos na CF/88 é o direito à vida. Lê-se no artigo :

    Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (BRASIL, 1988).

    O direito à vida é tão importante que o ECA, Lei 8.069/90, no artigo , salienta que é dever da família, da sociedade em geral, comunidade e do poder público assegurar com absoluta prioridade a efetivação desse direito. No artigo 7º reforça essa importância, estabelecendo que toda criança e adolescente têm direito à proteção à vida. Embora há previsão legal, afirmando a necessidade de proteção à vida para que esses indivíduos possam gozar desse direito, é necessário o Estado garantir o direito à segurança, acesso à justiça e educação cidadã.

    Em seu ensaio, “A crise na educação”, Arendt (1997) chama atenção para a educação da criança e, apesar de escrever em outro contexto, não ser educadora de crianças, suas reflexões permitem compreender a importância do papel desempenhado pela educação para cidadania, fundamentando caminhos à reconstrução dos direitos humanos, vendo na cidadania o direito a ter direitos. Lembra que os esforços para educar a criança devem lograr êxito em promover o seu bem-estar da maneira esperada. A criança é normalmente introduzida ao mundo pela primeira vez através da escola. Contudo,

    A escola não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo; ela é, em vez disso, a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo. [...] o comparecimento não é exigido pela família, e sim pelo Estado, isto é o mundo público, e assim, em relação à criança, a escola representa em certo sentido o mundo, embora não seja ainda o mundo de fato. Nessa etapa da educação, sem dúvida, os adultos assumem mais uma vez uma responsabilidade pela criança, só que, agora, essa não é tanto a responsabilidade pelo bem-estar vital de uma coisa em crescimento como por aquilo que geralmente denominamos de livre desenvolvimento de qualidades e talentos (ARENDT, 1997, p. 239).

    Portanto, é preciso estimular a criança a pensar e a escola é um espaço apropriado e indispensável para educar, viver a cidadania e permitir condições para viver processos vitais, mover-se no espaço público, que é comum a todos.

    A legislação brasileira garante à criança e ao adolescente todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral e a família, escola, a sociedade e o poder público devem assegurar a efetivação desses direitos. O ECA no artigo 70 estabelece que “é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente."

    Arendt (2001) caracteriza a violência como instrumental. Chaui (2000) lembra que, no Brasil, alguém pode dizer-se indignado com a existência de crianças de rua, com as chacinas dessas crianças, mas, ao mesmo tempo, afirmar que se orgulha de ser brasileiro porque somos um povo pacífico, ordeiro e inimigo da violência.

    O direito ao acesso à justiça da criança e do adolescente está expressamente disciplinado no artigo 141 do ECA, que garante o"acesso de toda criança ou adolescente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, por qualquer de seus órgãos". No parágrafo 1º estabelece: “a assistência judiciária gratuita será prestada aos que dela necessitarem, através de defensor público ou advogado nomeado."

    Para efetivação da previsão legal do direito à vida, segurança e acesso à justiça de crianças e adolescentes foram criadas pelo poder público, políticas públicas de proteção, prevenção e coibição de violência. Uma das ações do poder público foi a criação em 2003 do Programa de Proteção à Criança e Adolescente ameaçados de morte - PPCAAM, instituído em 2007 pelo Decreto n. 6.231/2007 e, posteriormente alterado pelo Decreto n. 9.371/2018 e revogado pelo Decreto n. 9.579/2018.

    Este programa está presente em várias unidades da federação, com objetivo de dar prioridade ao atendimento no interesse das crianças e adolescentes ameaçados de morte. Para orientar os operadores do PPCAAM, além do Decreto 9.579/2018, que trata da instituição, coordenação, finalidade, execução e ações, foram criados guia de procedimentos, explicando o funcionamento e procedimentos a serem adotados.

    Lê-se no art. 110." O PPCAAM será coordenado pela Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos. "

    O PPCAAM será executado, prioritariamente, por meio de acordos de cooperação firmados entre a União, os Estados e o Distrito Federal.(BRASIL, 2018,art. 112)
    Para a execução do PPCAAM, poderão ser celebrados acordos de cooperação técnica, convênios, ajustes, termos de fomento ou termos de colaboração ou outras formas de descentralização de recursos legalmente constituídas, entre a União, os Estados, o Distrito Federal, os órgãos da administração pública federal e as entidades públicas ou privadas, sob a supervisão da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos.(BRASIL,2018,§ 1º)

    Porém, existem muitos desafios para a efetivação da execução desse programa e um deles, é ir ao encontro de crianças e adolescentes que estão precisando do acesso ao programa, sofrem exploração sexual, violência intrafamiliar, ou estão envolvidas com tráfico de drogas (são as que mais sofrem ameaças de morte), mas desconhecem a sua existência. O decreto 9.579/2018, ao incluir a Defensoria Pública como Porta de Entrada do PPCAAM, possibilita o encontro de perfil de pessoas em situação de risco e vulnerabilidade social que necessitam do acesso ao programa com uma instituição promovedora de direitos humanos.

    De acordo com o art. 117, a Defensoria Pública tem direito de solicitar a inclusão desses indivíduos ameaçados de morte no PPCAAM, tornando-se, assim, uma “ponte de ouro” à efetivação do Programa. Além disso, conforme o art. 113 parágrafo 1º ela pode compor o conselho gestor do PPCAAM.

    São atribuições dos conselhos gestores,

    I- acompanhar, avaliar e zelar pela qualidade do programa;
    II-garantir a continuidade do PPCAAM;
    III- propor ações de atendimento e de inclusão social aos protegidos, por intermédio da cooperação com instituições públicas e privadas responsáveis pela garantia dos direitos previstos na Lei nº 8.069, de 1990 - Estatuto da Criança e Adolescente; e
    IV- garantir o sigilo dos dados e das informações sobre os protegidos.(BRASIL,2018,art. 115).

    Sem dúvida, o fato de a Defensoria poder solicitar a inclusão no programa e poder fazer parte do conselho gestor facilita a articulação do PPCAAM com o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente e a intersetorialidade na articulação de saberes e ações eficazes na prevenção, coibição da letalidade infanto-juvenil.

    Esse Sistema é uma rede de proteção interinstitucional que promove a efetivação dos direitos infanto-juvenis sob a luz da normativa internacional e nacional que tutelam sobre esses direitos. Essa “ponte de ouro”, torna-se um excelente instrumento para implementar de forma efetiva o PPCAAM no país e estabelece uma política articulada com as esferas de promoção, defesa e controle social dos direitos infanto-juvenis. Sendo uma estratégia para tornar visível “os três grandes direitos que definiram a democracia desde a sua origem, a igualdade, a liberdade e a participação nas decisões” (CHAUI, 2019, p. 276).

    A Defensoria Pública na prestação da assistência jurídica aos assistidos poderá identificar casos de urgência e gravidade de ameaça que necessitam da proteção imediata antes mesmo da conclusão do processo de pré-avaliação da equipe técnica do PPCAAM e já acionar órgãos de segurança pública para garantir a incolumidade física de pessoas ameaçadas durante o período de análise.

    Nos casos de procedimento para apuração de ato infracional, a presença do Defensor Público possibilita orientação ao adolescente sobre a existência do PPCAAM, o sigilo dos dados e informações, estabelecer vínculo de confiança capaz de aproximar os que precisam de ajuda com a instituição capacitada para acolher e dar efetividade ao programa. Sem dúvida, a figura de um defensor proporciona ao adolescente um sentimento de tranquilidade, confiança, capaz de quebrar o silêncio ocasionado pelo medo. O encontro do defensor público com o adolescente passa a ser uma estratégia de enfrentamento da letalidade, dá oportunidade para ele falar sobre a ameaça que sofre de traficantes, milícias e crime organizado.

    Essa “ponte de ouro” propicia a atuação do defensor na preservação de direitos de pessoas que muitas vezes sofre algum tipo de violência durante a abordagem policial, mas, por medo, se calam, por não ter em quem confiar, acreditar, relatar a opressão sofrida. Sob o olhar da proteção integral e combate à letalidade infanto-juvenil é imprescindível a presença de um defensor público no procedimento para apuração de ato infracional. Em situações emergenciais de necessidade de proteção imediata para garantir a incolumidade física e psicológica do adolescente, o defensor pode informar ao juiz a situação de risco, o que possibilita o juiz atuar de forma mais correta na decisão a ser tomada para garantir a proteção integral do adolescente infrator.

    No enfrentamento da letalidade infanto-juvenil precisamos dessa Intersetorialidade (articulação de saberes/ações) para dar efetividade ao PPCAAM. Com certeza, a inclusão da Defensoria Pública como “porta de entrada” do programa é um grande avanço, incentiva a atuação Proativa da instituição provedora de transformações sociais na era dos direitos e pode funcionar como um importante recurso para agilizar, expandir e aprimorar o atendimento.

    Mas, apesar de muitas conquistas no direito da infância e juventude nesses 31 anos de ECA, no combate à violência, em especial, contra vítimas da discriminação histórica e mais vulneráveis na sociedade, ainda estamos caminhando em passos lentos e míopes na criação de políticas públicas, ações ao enfrentamento da letalidade desses indivíduos. Portanto, concordamos com Bobbio (1992, p. 17): “a urgência a que temos que enfrentar não é o problema do fundamento dos direitos, mas garanti-los.”

    Referências

    ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1997.

    __. Sobre a violência. Trad. André Duarte. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

    BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Trad. Carlos N. Coutinho. Rio de Janeiro: Campus,1992.

    BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.069, de 13 de jul. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm Acesso em: 20/7/2021.

    __. Constituição da Republica Federativa do Brasil, de 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/constituição.htm. Acesso em: 20/7/2021.

    __. Estatuto da Juventude, Lei n.12.852, de 5 ago. 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br Acesso em: 15/07/2021.

    __. Decreto 9.579, 22 de nov. 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Decreto/D9579.htm#art126. Acesso em: 5/7/2021.

    __. Guia de Procedimentos PPCAAM. Disponível em: https://justiça.sp.gov.br/wp-content/uploads/2017/07/guia_de_procedimentos_ppcaam_sdh_2010.pdf Acesso em: 5/7/2021.

    CHAUI, M. Sobre a violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

    PPCAAM. Governo Federal. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/criancaeadolescente/acoeseprogramas/programa-de-p.... Acesso em: 15/6/2021.

    Programa de Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte em São Paulo - PPCAAM. Disponível em: https://justiça.sp.gov.br/index.php/coordenacoeseprogramas/programa-de-protecaoacriancaseadolescentes-ameacados-de-morte-em-são-paulo-ppcam/. Acesso em: 5/6/2021.

    BRASIL. Lei Complementar n.80, de 12 de jan. de 1994. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp80.htm. Acesso em: 5/6/2021.

    UNICEF. Convenção sobre os direitos da criança. Disponível em: ttps://www.unicef.org/brazil/os-direitos-das-criancasedos-adolescentesepor-que-eles-são-importantes Acesso em: 9/6/2021.

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