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18 de Maio de 2024

União Poliafetiva: Um Novo Conceito Familiar

Publicado por Camila Schefer
há 6 anos

1 Introdução

  A partir da Constituição Federal de 1988 o Brasil passou a reconhecer todas as novas formas de relacionamentos familiares. Recentemente, uma nova forma de família tem tomado grande dimensão, qual seja o poliamor.

 O poliamor consiste na união que permite o envolvimento de mais de dois sujeitos, podendo, inclusive que seus membros, se consentido com os demais, possuir relacionamentos com terceiros de forma paralela.

 A presente pesquisa tem como objetivo principal a conceituação do instituto do poliamor, ou poliamorismo, com intuito de sanar qualquer eventual dúvida decorrente desta forma de relacionamento.

 Ademais, objetiva-se compreender o poliamor frente a legislação brasileira, e como o ordenamento jurídico vem tratando esta matéria nas situações práticas em que enfrentam no cotidiano.

 O estudo do poliamor se faz necessário uma vez que envolve aspectos relevantes como a dignidade da pessoa humana, a família, a afetividade, bem como a liberdade de escolha do indivíduo, partindo da primeira oficialização feita em 2012 sobre esta forma de união.

2 A evolução história da família

 Ao longo dos anos, as transformações na sociedade geraram uma sequência de normas que alteraram de modo gradativo as relações familiares. Se observarmos a evolução histórica da definição de família pelo mundo, verificaremos o quanto o conceito sofreu grande variação.

 A família, se tratava de um bem pertencente ao homem. Com o passar do tempo algumas modificações favoráveis foram feitas, como por exemplo, a criação de patrimônio para os filhos.

 Na idade média, a única forma de casamento aceita era o casamento religioso, continuando a ser exercido com grande influência o pátrio poder.

 No Brasil, a influência da família do direito romano foi grande, como também da família canônica e germânica.

 O Código Civil de 1916 trazia em seu artigo 229 que o primeiro e o principal efeito do casamento é a criação da família legítima. Desta forma, a família que se estabelecia fora do casamento era tratada como ilegítima, sendo que a legislação regulava tal situação em apenas alguns dispositivos.

 Ocorre que “os filhos que não procediam de justas núpcias, mas de relações, eram classificadas como ilegítimos e não tinham sua filiação assegurada pela lei, podendo ser naturais ou espúrios” (GONÇALVES, 2012). Quais sejam espúrios aqueles nascidos de pais impedidos de se casar, sendo reconhecidos apenas os filhos legítimos.

 Com o decorrer dos anos alguns direitos foram concedidos à concubina, sendo admitidos, por exemplo, o direito a meação dos bens adquiridos, sendo proibidos apenas no que se referia a concubina no adultério, em que o homem viva concomitantemente com a esposa e a concubina.

 Com o advento da Constituição Federal de 1988 uma nova ordem de valores, ao passo que colocou a dignidade da pessoa humana como um privilégio de todo e qualquer ser humano. Sendo assim, “as alterações pertinentes ao direito de família demonstram e ressaltam a função social da família no direito brasileiro” (GONÇALVES, 2012).

 O conceito de família vem sendo ampliado a cada dia, em situações até então não tratadas na Constituição Federal, mas em entendimento doutrinário. Assim sendo:

a) família matrimonial: decorre do casamento;

b) família informal: decorre da união estável;

c) família monoparental: constituída pelos filhos e um dos genitores;

d) família anaparental: constituída somente pelos filhos

e) família homoafetiva: constituída por pessoas do mesmo sexo;

f) família eudemonista: pelo vínculo afetivo;

Salienta-se que “com a mutação social, e a multiplicidade de relacionamentos, a norma nacional viu-se em desuso e arcaica, onde, por meio de tutela social, adotaram-se novas formas familiares” (STEFANINI; LUCA, 2016, p. 13). Dentre estas se encontra o poliamor, que será retratado de maneira mais profunda a seguir.

3 A união poliafetiva

 O poliamor trata-se da possibilidade jurídica de um relacionamento em concomitância com outros. Trata-se, portanto, de um relacionamento que permite a traição, sem que seja considerada como tal.

 Para Neto (2015, p.5) “o poliamor se trata de relação afetiva íntima entre mais de duas pessoas, que, de forma transparente, e gozando da sua autonomia da vontade, exercem seu direito de se relacionarem afetiva e sexualmente, com o intuito duradouro.”.

 A monogamia “é o padrão aceito para as relações amorosas na cultura ocidental. Geralmente é considerada traidora e infiel à pessoa que, estando com um compromisso amoroso sério com alguém, mantém relações sexuais fora do relacionamento.” (FREIRE, 2013, p. 28). Ocorre que, há pessoas que concordam em não manter a exclusividade, seja afetiva ou sexual, mantendo relacionamentos com outros, com o consentimento do parceiro. Tal situação acontece no poliamor.

 Historicamente a monogamia nunca foi regra, se tornando ainda mais infrequente a partir dos anos de 1960, onde uma nova forma de comportamento sexual foi possível, principalmente devido a movimentos hippies de liberdade e a introdução do anticoncepcional, determinando uma fase de revolução sexual. Desta maneira:

a sexualidade se torna autônoma, sendo expressa de diversas maneiras, de acordo com o propósito de cada indivíduo. A heterossexualidade deixa de ser padrão de julgamento sexual e a homossexualidade surge como um estilo de vida. (FREIRE, 2013, p.29).

 A partir de tal momento, meios alternativos de vida e de relacionamentos surgiram e as relações monogâmicas tradicionais sofreram certo abalo.

 A definição de poliamor é complexa, e por esse motivo há vários entendimentos e conceitos, num modo geral o poliamor consiste em um relacionamento simultâneo com outros, compartilha múltiplos amores com o consentimento do parceiro, é uma forma aberta de se relacionar sem traição. É sem qualquer dúvida uma definição instável.

De acordo com Lilian Ferreira (2017):

 O amor dos poliamoristas é mais parecido com o que prega o budismo. É um amor similar ao que amigos compartilham. Sem exclusividade, sem posse. A busca pela individualidade, muito em voga, é mais um impulso para esse tipo de amor. Você pode ser "apenas" você, e não tudo o que o outro espera. O ciúme, o medo da perda, em tese não existiria, já que uma pessoa não é "trocada" pela outra.

 Porém, ao passo do que se sabe, uma dúvida surge: “o sujeito casado, ou que já mantém outra união estável, que, mesmo assim, mantém um vínculo afetivo com terceira pessoa, conhecedora ou não da situação. Poderia esta "segunda união" ser reconhecida como "verdadeira" união estável, recebendo o mesmo tratamento jurídico?” (DANOSO p.2). Essa é a dúvida e a incerteza que cerca a maioria das relações poliamoristas, distanciando por vezes de se tornar uma união estável.

4 A união poliafetiva como um conceito familiar

 Diante dos modelos de vida da contemporaneidade, o reconhecimento e a regulação das uniões poliafetivas é algo que se impõe, uma vez que deve ser preservada a dignidade da pessoa humana das pessoas relacionadas e de seus respectivos filhos.

 De plano cumpre salientar que o casamento poliafetivo é possível tendo em vista a falta de vedação constitucional. Ademais, a Resolução 175 do CNJ estabelece que “é vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.”.

Para Maria Iracema de Castro Meira (2015, p.3):

 O reconhecimento da entidade familiar poliafetiva é patente no sentido da flexibilização dos relacionamentos visarem à procura das pessoas em realizar o sonho de serem felizes, com a preservação do respeito mútuo e da liberdade individual. Para tal desiderato, deve existir acima de tudo uma comunhão afetiva que proporcione aos membros de qualquer tipo de ambiente familiar, a construção de um projeto de vida em conjunto.

 A polêmica sobre o poliamor ficou em maior evidência após a oficialização de uma relação estável entre duas mulheres e um homem.

 Leandro Jonattan da Silva Sampaio, funcionário público, de 33 anos, a dona de casa Thaís Souza de Oliveira, 21 anos, e a estudante de técnica de enfermagem Yasmin Nepomuceno da Cruz, também de 21 anos, realizaram a união no 15º Ofício de Notas no Rio de Janeiro. O trio “decidiu oficializar a união para facilitar direitos que podem ter em comum, como plano de saúde” (VAZ, 2016).

  João Paulo de Sanches, presidente da Comissão de Direito de Família, dispõe que “o respeito se deve atribuir a toda e qualquer forma de constituição familiar, conforme autoriza a nossa Constituição Federal através do já consagrado Princípio da Dignidade da Pessoa Humana” (OAB/DF)

 Importa relatar que os adeptos dessa forma de relacionamento tendem à construção de uma família como qualquer outra, e não apenas o envolvimento em relações casuais.

 Em 2012 também houve a regularização de uma união estável entre um homem e duas mulheres, por meio de escritura pública, em Tupã- São Paulo. A tabeliã argumentou que:

 não havia vedação legal para a aludida lavratura e que era autorizada a isso pelos princípios constitucionais da igualdade, dignidade da pessoa humana e da liberdade para justificar a juridicidade de tal reconhecimento público. A partir desse fato, em que pese o poliamorismo já existir anteriormente. (NETO, 2015, p.3).

De acordo com Neto (2015, p.4):

 Frente a esse caso, surgem alguns questionamentos. Primeiro, em relação à real configuração e definição dessa relação afetiva disposta a constituir uma família, com todos os seus efeitos jurídicos, sucessórios, previdenciários, pessoais etc. Depois, resta saber se há e quais são os direitos em conflito no caso, analisando a legislação constitucional e civil que regula as relações pessoais e afetivas dos cidadãos.

 A atual legislação brasileira é omissa quanto a nova forma de constituição familiar, porém ao passo que a mesma se torna comum no cotidiano social, os direitos e garantias de todos os envolvidos devem ser resguardados.

 Primeiramente, é necessária uma distinção, uma vez que o poliamorismo não se confunde com as relações abertas ou o concubinato, ou seja, aqueles que não podem se casar por já haver uma relação matrimonial. Neste caso, “é indiscutível que dois casamentos não podem ser havidos como válidos, pois é vedada a bigamia, acarretando a nulidade do segundo matrimônio.” (NETO, 2015, p.11).

 Ademais, o artigo 235 caput do Código Penal dispõe ser crime para aquele que não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada.

 Não se confundindo o poliamor com qualquer destas hipóteses, e não havendo qualquer impedimento legal, não há óbices para que três pessoas possam se relacionar com o intuito de conviver e construir uma família.

 A legislação deve acompanhar as transformações sociais, de forma que seja regulamentada as novas relações humanas que vão surgindo. Na opinião de Neto (2015, p.12):

a própria essência do poliamorismo é a ciência e concordância de todos os envolvidos, a união poliafetiva, que diferentemente dos julgados noticiados nem formam dois núcleos familiares paralelos, mas apenas um núcleo familiar, essa merece tutela estatal e consequente reconhecimento jurídico, desde que presentes os elementos caracterizadores da entidade familiar.

 Em meio a todo esse contexto há posicionamentos favoráveis e contrários. Neste caso, Maria Helena Diniz e Álvaro Vilaça de Azevedo são contra a essa forma de relacionamento sob argumentação de que “qualquer união que seja subsequente à primeira é considerada concubinato, independente do sentimento familiar existente, do consentimento entre os envolvidos e do tempo da relação.” (MOREIRA).

 Porém, “a carência de jurisprudência e doutrina acerca do poliamorismo, vê- se que em primeira instância já são reconhecidas essas uniões poliafetivas. Os tribunais superiores ainda não decidiram sobre a matéria específica” (NETO, 2016.p.14) que envolve o caso.

 Trata-se de um tema que tem muito a evoluir juridicamente, com extrema atenção do Estado no que tange à sua regulamentação de maneira específica.

 Neste caso, havendo os requisitos que configurem a união estável, quais sejam a publicidade, durabilidade, continuidade e a intenção de constituir família, não importa a estrutura que a mesma tenha a afetividade a tornará uma família.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A principal problemática deste assunto se encontra na falta de regulamentação sobre os direitos e garantia dos poliamoristas. Muitas vezes, essa ausência normativa acaba por atingir de maneira prejudicial os direitos fundamentais dos membros envolvidos na família poliafetiva.

 Salienta-se que da mesma maneira que as demais entidades familiares tiveram suas devidas regulamentações, a família pautada nos princípios do poliamor também deverá ter, visto se tratar de seres humanos, que merecem ser respeitados independentes da opção que fizerem, totalmente em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

 Por fim, com a frequente transformação da sociedade o direito deve se adequar a esta inovação, e buscar da melhor maneira possível a felicidade e satisfação, concretizando os princípios constitucionais assegurando a proteção jurídica aos envolvidos.

REFERÊNCIAS

MEIRA, Maria Iracema de Castro. União poliafetiva: aplicação da teoria do poliamor e sua possibilidade jurídica. Disponível em: www.simposiodedireitouepg.com.br/2015/down.php?id=1183&q=1 Acesso em 18 de maio de 2017.

FERREIRA, Lilian. Poliamor. Disponível em: https://tab.uol.com.br/poliamor/ Acesso em 18 de maio de 2017.

MOREIRA, Thácio Fortunato. Poliamorismo nos tribunais. Disponível em: http://ambito-jurídico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=15149 Acesso em 20 maio 2017.

NETO, Deodato José Ramalho. A possibilidade do poliamorismo enquanto direito personalíssimo e a ausência de regulamentação no direito brasileiro. Revista Brasileira de Direito Civil em Perspectiva | e-ISSN: 2526-0243 | Minas Gerais | v. 1 | n. 2 | p. 90 - 105 | Jul/Dez. 2015. Disponível em: http://indexlaw.org/index.php/direitocivil/article/view/721 Acesso 20 maio 2017.

FREIRE, Sandra Elisa de Assis. Poliamor, uma forma não exclusiva de amar: correlatos valorativos e afetivos. João Pessoa, 2013. Disponível em: http://tede.biblioteca.ufpb.br:8080/handle/tede/6928 Acesso em 20 maio 2017.

STEFANINI, Marília Rulli; LUCA, Guilherme Domingos de. Um novo conceito de família: a poliafetividade. Disponível em: http://aberto.univem.edu.br/bitstream/handle/11077/1462/GT5%20E-BOOK%2019mai16.pdf?sequence=1#page=12 Acesso em 20 maio 2017

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