Violência obstétrica: Uma realidade silenciada
Segundo o Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres, os atos caracterizadores da violência obstétrica são aqueles praticados contra a mulher no exercício de sua saúde sexual e reprodutiva, de caráter físico, psicológico, sexual, institucional, material e midiático.
No Brasil, o tema está ganhando espaço principalmente por meio das mídias sociais, bem como a atuação de Organizações não governamentais e a difusão de documentários, chamando a atenção do governo e aos entes de diversos seguimentos da sociedade para a problematização da Violência Obstétrica, porém, nada adianta se a vítima se cala e/ou não tem acesso às informações.
Apesar de não haver leis especificas para os casos de Violência Obstétrica, a legislação pátria possui mecanismos que buscam assegurar a dignidade da mulher, citando, a Lei nº 11.108/05 (Lei do Acompanhante), reafirmando pela Resolução da Diretoria Colegiada nº 36/2008 da ANVISA. Porém, ao analisarmos a referida lei, observa-se o veto do art. 19-L da PL 2915/2004[1], a saber:
“Art. 19-L O descumprimento do disposto no art. 19-J e em seu regulamento constitui crime de responsabilidade e sujeita o gestor municipal, estadual, distrital e federal do SUS às penalidades previstas na legislação.”
Infelizmente, temos a seguinte situação, a Lei institui o direito à parturiente de acompanhante de sua escolha, porém é omissa aos meios de estabelecer punição a quem impedir ou não fizer cumprir a legislação, fato este que esvazia a eficácia da legislação, entrando na seara da Violência Obstétrica.
Dentre os principais procedimentos que configuram situações de Violência Obstétrica, destacam-se a episiotomia de rotina (corte da vulva e vagina desnecessário), intervenções desnecessárias ou didáticas ferindo a intimidade da vítima, intervenções de verificação e aceleração do parto (manobra de Kristeller), falta de esclarecimento e consentimento da gestante, restrição de posição para o parto, restrição da escolha do local do parto, cirurgias cesarianas (eletivas, por conveniência do médico, por dissuasão da mulher, por coação da mulher), publicidade ou apologia da cesariana; atendimento desumano e degradante, dentre outros procedimentos que violam os direitos reprodutivos, a dignidade, e a privacidade das mulheres, bem como o total desrespeito a recomendações de órgão internacionais.
A episiotomia é um procedimento realizado rotineiramente, sem respaldo cientifico, sendo a cirurgia realizada na vulva, cortando a entrada da vagina com uma tesoura ou bisturi e por muita das vezes, sem anestesia. No Brasil, esse procedimento é a única cirurgia realizada sem o consentimento da paciente. Cabe ressaltar, o procedimento não é indicado pela Organização Mundial de Saúde como um procedimento rotineiro desde década de 80, não devendo ultrapassar a taxa de 10% dos casos[2]. Estima-se que é realizada em 94% dos partos normais no Brasil [3], podendo ser ainda mais elevada, uma vez que não há registro oficial do procedimento.
A Manobra de Kristeller é a compressão abdominal pelas mãos que envolvem o fundo do útero, sendo realizada com uma pessoa subindo em cima da barriga da mulher ou espremendo seu ventre com o peso do corpo sobre as mãos, o braço, antebraço ou joelho, esse procedimento é proscrito, não recomendado pela OMS, estando atrelada a inúmeros traumas materno-fetais.
Em relação às cirurgias cesarianas, se observa a alta incidência do número de procedimentos realizados no Brasil, sendo que na rede pública totalizam 37% e na rede privada alcançam o absurdo de 82%. A Organização Mundial de Saúde – OMS preconiza uma taxa máxima de 15%, assim como, de acordo com a UNICEF[4], as cesárias seriam necessárias apenas em situações de risco para a mãe e/ou para o bebê, de forma que uma taxa acima de 15% pode indicar um uso abusivo deste recurso, aumentando o risco de partos prematuros e de morbidade para a mãe e para o bebê.
As mulheres têm direito a uma vida sem violência e livre de discriminação[5]. A mulher deve ser respeitada em sua autonomia e dignidade humana, tendo seus direitos plenamente resguardados, tais como, o direito a informação, em receber os dados sobre o seu estado de saúde e os procedimentos indicados, em linguagem clara, bem como os riscos ou possíveis complicações e as alternativas disponíveis. A mulher tem o direito de recusar tratamentos ou procedimentos em seu corpo, o que se chama de direito à recusa informada, bem como o atendimento digno. A mulher tem direito à privacidade, ao conforto e a não ser constrangida nas consultas, nos procedimentos preventivos, cirúrgicos, terapêuticos e internações, sob o aspecto do direito humano da parturiente no que tange à sua integridade pessoal, liberdade e consciência, protegido pela Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica) de 22/11/1969, ratificada pelo Brasil em 25/09/1992[6].
Busca-se tratar da humanização da assistência à mulher, bem como de seus direitos fundamentais no ciclo gravídico-puerperal, quer seja pela realidade mostrada pelos relatos de parturientes e seus bebês, quer seja pela dificuldade de colocar-se efetivamente em prática uma política nacional atenta às recomendações e tratados internacionais dos quais o Brasil faz parte.
Daí a precisão de politicas públicas de enfrentamento à Violência Obstétrica, citando o Projeto de Lei nº 7633/2014[7] que dispõe sobre a humanização da assistência à mulher e ao neonato durante o ciclo gravídico-puerperal e dá outras providências, conceitualizando o que seria Violência Obstétrica, elencando um rol de situações caracterizadoras da violência, bem como definindo a responsabilidade criminal e cível no caso das violações aos direitos da integridade da mulher. Não obstante, é necessário mencionar ações que estão sendo realizadas em prol dessa realidade silenciada, de forma a dar voz às vítimas, quais sejam ações informativas de órgãos da Defensoria Pública [8], Ministério Público Federal [9], Seminários que debatem o tema e organizações não governamentais que buscam levar as informações mesmo não tendo legislações especificas que protegem as vítimas e responsabilizam os autores de Violências Obstétricas, resgatando a autonomia da mulher, para que a mesma tenha plena consciência dos direitos sobre o seu corpo.
Observa-se que os tipos de agressão que as mulheres têm sofrido estão intrinsecamente ligados às necessidades de discussões em que haja a efetiva informação que possibilite o profissional que lida diariamente com estes procedimentos, a enxergar que os procedimentos as quais as mulheres são submetidas podem configurar uma situação de Violência Obstétrica, transmitindo a mensagem para toda a sociedade em geral.
[1] PROJETO DE LEI Nº29155/2004 – Transformado na Lei Ordinária nº11.1088/05, disponível em: http://www.câmara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=152321. Acesso em 13/05/2015.
[2] World Health Organization (WHO). Maternal and Newborn Health/Safe Motherhood Unit of the World Health Organization, Care in Normal Birth: A practical guide. 1996:1-54.
[3] BRASIL. Ministério da Saúde; CEBRAP. Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS) 2006 – Relatório Final. Brasília, DF: MS/CEBRAP, 2008.
[4] GUIA da Gestante e do Bebê. UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância. São Paulo: Globo, 2011. Disponível em: http://www.unicef.org/brazil/pt/br_guiagestantebebe.pdf. Acesso em 12 de Maio de 2015.
[5] CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, “CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ. Disponível em: http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm. Acesso em 13/05/2015.
[6] DECRETO Nº6788/1992. Pacto de São José da Costa Rica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm. Acesso em 14/05/2015.
[7] PROJETO DE LEI76333/2014. Dispõe sobre a humanização da assistência à mulher e ao neonato durante o ciclo gravídico-puerperal. Disponível em: http://www.câmara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=617546. Acesso em 12/05/2015.
[8] DPE SP Violência Obstétrica – Você sabe o que é? Disponível em: http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/repositorio/41/violencia%20obstetrica.pdf. Acesso em 14/05/2015.
[9] MPF/SP instaura inquérito para investigar atos de violência obstétrica. Disponível em: http://www.prsp.mpf.mp.br/sala-de-imprensa/noticias_prsp/10-03-14-mpf-sp-instaura-inquerito-para-inv....
1 Comentário
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Fabíola de Carvalho, parabéns pela matéria!
Consolida todos os fatos ocorridos, que assim como a dor do parto, ficam nas minúcias do esquecimento. continuar lendo