Página 852 da Caderno Jurisdicional das Comarcas do Diário de Justiça do Estado de Santa Catarina (DJSC) de 3 de Outubro de 2019

Aqui, ela deve ser entendida não em acepções estritas ligadas ao interesse de agir, ou à exigência de um substrato probatório mínimo para a deflagração da ação penal, ou à aferição de uma tipicidade aparente, ou, ainda, a uma quarta condição da ação. Ela aparece, em rigor, como uma espécie de controle processual ao caráter fragmentário da intervenção penal (cf. Aury Lopes Jr. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pág. 341. Volume I) e ao custo-benefício da referida intervenção. (b) Criminalização da posse: considerações preliminares. Houve um tempo em que entendia, em síntese, que: (...) Após detida reflexão, tem-se que a criminalização da posse de drogas para consumo pessoal (art. 28 da Lei n. 11.343/06) constitui opção política que conflita com o direito fundamental à liberdade de ser, viver e autodeterminar-se (art. , caput, da CF). E a inconstitucionalidade material, no exercício da jurisdição difusa (cf. Paulo Roberto de Figueiredo Dantas. Direito Processual Constitucional. Atlas ed., 2010), deve ser declarada. (...) O uso de drogas sujeita-se ao livre arbítrio, isto é, à capacidade humana de livre escolha entre o certo e o errado, dentro da subjetividade de tais conceitos. O usuário limita-se a praticar autolesão, degradandose em sua integridade física e psicológica, mas não comete, apenas com tal conduta, ato ilícito prejudicial à convivência em sociedade. Caso venha, com a atitude relacionada à dependência, a malferir objetividades jurídicas de terceiros, autoriza-se a atuação do Estado em outras áreas, inclusive criminais, se for o caso, para ocupar-se do crime porventura praticado ou disponibilizar o adequado tratamento. (...) Enquanto os efeitos do uso adstringem-se à esfera da individualidade, inexiste base para a intervenção criminal do Estado, por ausência de conduta que adentre nos limites da alteridade lesiva. Ao ser humano é permitido autolesar-se, mutilar-se e mesmo intentar suicídio sem que tais fatos tenham repercussão jurídico-criminal, preservando-se a escolha individual. O Estado nunca foi proprietário do corpo e da mente humanas para defendê-los das opções do próprio titular, tampouco deve ocupar papeis paternalistas (cf. Jürgen Habermas. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola. 2002). E a criminalização da posse de drogas acaba, reflexamente, por escamotear tais pretensões, suprimindo o direito constitucional à liberdade de ser/viver (art. , caput, da CF). (...) O argumento, por outro lado, de que a opção política (art. 28 da Lei n. 11.343/08) preserva a saúde pública encerra um paralogismo, a saber, um erro de lógica (cf. Manuel Atienza. Curso de argumentación jurídica. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 116). A saúde pública é preservada com a disponibilização de tratamento pelo Estado ao usuário, como direito social a ser garantido, e, com frequência, alvo de proteção insuficiente na sociologia contemporânea. Restringir a liberdade para preservar a saúde coletiva é subverter de tal lógica, dado que o consumo pessoal não lesa terceiros. Da premissa, enfim, não se infere a conclusão, seja por técnicas dedutivas ou indutivas, não resistindo tal fundamento a análises falsificacionistas. Além disso, todos os Direitos Fundamentais, entre eles individuais e sociais, como visto, devem coexistir em lugar de se excluírem. Por fim, a alegação de que o consumo incentiva o narcotráfico e, por isso, repercute na saúde pública pretende apenar também o usuário, mesmo que remotamente, pelo tráfico futuro, esquecendo-se que nenhuma pena passará da pessoa do autor de determinado delito (art. , LIV, da CF). Além disso, a tese fecha os olhos à problemática do uso de drogas ao longo da história humana, na ilusão de eliminá-la, pretendendo-se atribuir um papel meramente simbólico (cf. Marcelo Neves. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 29) à legislação penal. (...) Tais considerações não significam o apanágio de discursos liberais de justiça (cf., por exemplo, John Rawls. Uma Teoria de Justiça, 1971), tampouco a teorias menos sofisticadas como a do “Direito achado na rua”, mas a mera defesa de limites contra a ingerência excessiva do Direito Penal, desvirtuado em veículo de moralidade, nas esferas de expressão de individualidade que não lesam terceiros, defendendo-se a necessidade de uma correlativa coordenação entre normatividade e vida, os planos do dever-ser e do ser. O rio, porém, corre, a alma é filosoficamente como o fogo e as pessoas mudam (cf. Heráclito de Éfeso). Hoje tenho dúvidas sobre o acerto da posição firmada noutras jurisdições. Mas mantenho-a, no resultado, acrescendo fundamentos diversos. (c) Visão pragmática da função jurisdicional. A Ciência Jurídica depara-se, em um cenário de fragilização dos pontos-chave do Positivismo Jurídico (cf. Orlando Luiz Zanon Júnior. Teoria complexa do direito. 2 ed., rev. ampl. Curitiba: Prismas, 2014), com um desafio da reconstrução. Para tanto existem, basicamente, compreensões substancialistas (cf. Ronald Dworkin. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2011. Título original: Taking Rights Seriously), procedimentalistas (cf. John Hart Ely. Democracia de Desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. Tradução de Juliana Lemos. São Paulo: Martins Fontes, 2010) e pragmatistas (cf. Richard A Posner. Direito, pragmatismo e democracia. Tradução de Teresa Dias Carneiro. Rio de Janeiro: Forense, 2010), as quais, embora sejam distintas em seus núcleos, não se mostram em tudo excludentes A visão pragmática, fundamental para que o sistema jurídico esteja afinado com a realidade contemporânea, assume destaque no presente caso. Para efeito dela, o pragmatismo não deve ser apreendido num sentido filosófico, mas numa acepção cotidiana que implica adotar, em análise racional, uma visão prática voltada para os melhores resultados e consequências (cf. Richard A Posner. Direito, pragmatismo e democracia. Tradução de Teresa Dias Carneiro. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 38-43). O pragmatismo toma de empréstimo a lógica econômica do custo-benefício. Como teoria normativa que visa guiar o comportamento judicial, a corrente pretende deixar em segundo plano princípios fixos, âncoras morais e slogans jurídicos, para incorporar ares racionais e empiricistas (cf. Richard A Posner. Direito, pragmatismo e democracia. Tradução de Teresa Dias Carneiro. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 47). A adjudicação pragmática, em tal contexto, busca sempre fazer o melhor que pode em termos de resultados para o caso e para o futuro, sem estar vinculada a opções políticas ou precedentes que outros oficiais adotaram no passado, mas apenas usando as leis e os precedentes como fontes potenciais de informações pouco limitadoras (cf. Richard A Posner. Pragmatic adjudication. Cardozo Law Review. Chicago. v. 18. págs. 01-20. 1996). Posto isso, o custo-benefício do processamento, à luz do sistema brasileiro e dentro da realidade local, é deficitário. Os resultados processuais são quase nulos. Em contrapartida, o número significativo de ocorrências consome elevados esforços forenses, que poderiam ser otimizados para ações penais relevantes, causando externalidades negativas. Note-se que, em sede de Termos Circunstanciados (TCs), eventual aplicação de transação penal (art. 76 da Lei n. 9.099/95) não gera consequências jurídicas, dado que, na atual compreensão, é possível renová-la em se tratando de posse de drogas para consumo (cf. Enunciado n. 115 do FONAJE, XXVII Encontro, Salvador/BA). Além disso, o caráter terapêutico das palestras educativas porventura aplicadas, embora possa existir em alguma medida, também não aparece como justificativa suficiente para a tramitação, dado que a educação acerca do uso de drogas deve ser realizada preferencialmente de modo preventivo e espalhado na sociedade (art. 19, I a XIII, da Lei n. 11.343/06), previamente ao consumo, e não quando este já é uma realidade. Nesse último caso caso, aliás, eventual conscientização depende da adesão voluntária do usuário, o que pode ocorrer em outras esferas, mostrando-se pouco produtiva quando imposta em procedimentos penais desacompanhados, paradoxalmente, de consequências no campo criminal. Por outro lado, caso superada a fase inicial e seja proposta a ação penal, esta igualmente se revela antieconômica. A natureza das sanções é ainda menos compatível com os ônus do processamento do alto número de ocorrências, que desvia a atenção devida a causas relevantes Em ambas as situações (TCs e ações penais), envida-se trabalho, mais ou menos específico, dos serventuários do Cartório, dos Oficiais de Justiça, dos Juízes, dos Promotores de Justiça e dos Defensores, em regra Públicos, além dos servidores da Central de Penas e Medidas Alternativas (CPMA). Há ainda os custos inerentes ao processo. Ocupam-se pautas,

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