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16 de Junho de 2024
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    A desistência da Ação Civil Pública intentada pelo Ministério Público com a intenção de impedir a ortotanásia. Eudes Quintino de Oliveira Júnior

    há 14 anos

    O Conselho Federal de Medicina, no ano de 2006, editou a Resolução nº 1805/2006, que permitia aos médicos interromper os tratamentos que prolongassem a vida do doente em estado terminal, sem condições de reversibilidade, desde que dele recebesse declaração expressa de vontade, e, na impossibilidade, de seus familiares ou representante legal. Preenchidos tais requisitos, poderia abreviar a morte e ficaria isento de eventual processo administrativo de natureza ética e até mesmo afastada sua responsabilidade criminal pelo homicídio piedoso.

    O representante do Ministério Público do Distrito Federal, responsável pela tutela dos Direitos do Cidadão, ingressou com ação civil pública e obteve a liminar suspendendo a eficácia da Resolução. A motivação residiu no fato de que estaria sendo praticada a eutanásia, que é considerada homicídio na legislação brasileira, além do que, a Resolução, na hierarquia das leis, é inferior à lei ordinária representada pelo Código Penal.

    Estabelecidos os limites da lide, a Procuradora Federal que sucedeu o autor da ação, lançou uma leitura diferenciada a respeito da res in juditium deducta e opinou para que a ação fosse julgada improcedente, pois, na realidade, não se tratava de eutanásia e sim de ortotanásia, com legitimidade plena do Conselho Federal de Medicina para legislar a respeito da matéria, com a consequente revogação da tutela antecipatória que suspendeu a vigência da Resolução.

    A Constituição Federal[ 1 ] distribui os princípios institucionais que regem o Ministério Público. O primeiro deles é o da unidade e indivisibilidade, em que cada membro é responsável pela sua atuação no campo processual e quando se manifesta fala em nome de toda a Instituição. Daí não poder cindi-la ou dividi-la, desvinculando os operadores do Parquet uns dos outros. A independência funcional, o segundo, assegura e garante a autonomia funcional limitando a subordinação somente à lei e à consciência do profissional. O corolário desse princípio vem representado pelo disposto no artigo 28 do Código de Processo Penal, na hipótese de rejeitar o juiz a proposta de arquivamento feita pelo representante do Ministério Público, encaminhará os autos ao Procurador Geral de Justiça que, por seu turno, poderá oferecer a denúncia, determinar diligências ou designar outro órgão para oferecê-la, mas jamais obrigar o responsável pelo arquivamento a ajuizar a ação penal.

    A autonomia funcional assegurada constitucionalmente permitiu que, na mesma ação, dois órgãos do Parquet, vinculados pela unidade e indivisibilidade, tivessem pretensões antagônicas. Um para invocar a tutela jurisdicional e dela obter um provimento liminar a respeito de tema polêmico, que suscita debates de várias ordens. Outro para desfazer a pretensão inicial com o intuito de demonstrar que a lide instaurada comporta julgamento desfavorável. A ação ainda não foi julgada, mas a decisão não será dada em razão da última manifestação, mas sim daquela que for mais conveniente social e juridicamente.

    Aparentemente causa estranheza o Ministério Público, como órgão de legitimação de ofício, representando interesse de significativo alcance social, possa desistir de ação que tenha intentado. As regras da obrigatoriedade e indisponibilidade da ação que vigem no processo penal, não se aplicam no âmbito da ação civil pública. Intentada a ação penal criminal de natureza pública, o dominus litis não é detentor da disponibilidade e nem mesmo poderá desistir de recurso que haja interposto. È certo que ocorreu um abrandamento da regra com a inovação introduzida pela Lei nº 9.099/1995, que permite a realização da transação penal pelo órgão acusatório estatal. A respeito da ação civil pública, com a sabedoria que lhe é peculiar, MAZZILLI ensina:

    O que sustentamos nós, é que, proposta a ação civil pública, no seu curso poderão surgir fatos que a tomem prejudicada ou pelo menos comprometida no seu êxito (a ação vem a perder o objeto, ou se afere que está insuficiente, inadequada ou erroneamente proposta). O exame de conveniência em se desistir da ação em nada viola o dever de agir do Ministério Público, que pressupõe não só a livre valoração da tutela do interesse público, como ainda, e principalmente, a valoração da existência de justa causa para propor ou prosseguir na ação. Carnelutti, com razão, asseverava que: "a valoração da conveniência do processo para a tutela do interesse público, à base da qual o Ministério Público resolve acionar, não está vinculada".[ 2 ]

    De qualquer forma, meteu-se a cunha em tema relevante não só na órbita do direito, mas também da medicina, da ética, da religião e de tantas outras. E, pela última manifestação ministerial, fica nítido que o Conselho Federal de Medicina tem legitimidade para expedir normas disciplinares a respeito das condutas médicas que tratem a respeito da terminalidade da vida.

    Tal conceituação não só revigora a Resolução questionada judicialmente, como também recepciona a Resolução nº 1931/2010 do Conselho Federal de Medicina, que cria o novo Código de Ética Médica, com vigência a partir de 13/4/2010, que, em seu artigo 41 e parágrafo único, diz textualmente:

    Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.

    Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.

    A morte é consequência da vida, é o estágio final da existência. O Estado continua sua função tuteladora e, em razão de seus compromissos éticos, sociais e legais, somente a admite com o cumprimento do ciclo natural, sem qualquer chance de permitir a interrupção precoce da vida em situação de irreversibilidade da saúde do paciente.

    A sociedade, no entanto, caminhando lado a lado com a evolução da tecnologia, com o consequente alargamento cultural de vários institutos até então não repensados, sofre uma transformação em sua própria estrutura, abre espaços para discussão e insere o tema relacionado com a morte, visto sob o prisma de sua dignidade, a mesma que foi conferida à vida. Assim, a finitude humana passa a ser motivo de questionamento.

    Os mecanismos de prolongamento da vida e da interrupção do sofrimento do paciente ocupam destaque nos debates éticos, bioéticos, envolvendo médicos, juristas, psicólogos, filósofos, religiosos e outros profissionais, que de uma forma ou outra, dedicam sua parcela de contribuição ao tema. Sem falar ainda do envolvimento popular nas camadas mais simples da sociedade, onde o assunto também é frequentado com assiduidade.

    A evolução constante da humanidade vai transformando o pensamento do homem, direcionando-o para uma nova ordem moral, social e ética. Tanto é que os conceitos vão se definindo dentro de uma estrutura dinâmica, que se movimenta em velocidade até mesmo incompatível com sua própria história. Basta ver que, a título de exemplo, até recentemente, a união entre pessoas do mesmo sexo era assunto inaceitável tanto pela tradição familiar, como pela apreciação judicial. A rápida evolução dos costumes, como um tsunami invisível, mas que deixa suas visíveis sequelas, fez com que a jurisprudência pátria acolhesse os pleitos e homologasse a união homoafetiva. Nenhum conceito é estático. Obrigatoriamente segue o dinamismo necessário para o melhor aperfeiçoamento da vida humana. O homem dita suas regras individuais e coletivas.

    Na senda desta evolução, surge agora a questão que envolve o direito de morrer com a mesma dignidade do direito de nascer. A moral e o Direito repudiam, pela sua tradição e conceituação, qualquer ato que abrevie a existência de um ser humano, mesmo que enfermo. Mas o homem, na incansável evolução, arrebenta os diques das regras consuetudinárias e ingressa no domínio da etapa final de sua vida. Quer, também em razão da autonomia adquirida por inúmeros direitos assimilados, decidir a respeito da modalidade de morte.

    Pois bem. O texto do atual Código de Ética Médica já referido repete o mesmo teor da Resolução nº 1.805/2006. Nesta linha de pensamento, obliquamente, fica permitido o procedimento ortotanásico, desde que algumas condições sejam satisfeitas:

    a) que o paciente seja acometido por doença incurável e irreversível e que se aproxima da terminalidade da vida. Apesar de todo o avanço na área médica, muitas enfermidades continuam sem qualquer chance de reversão. A constatação deve ser feita pelo profissional da saúde que esteja assistindo o doente;

    b) o profissional deixará de ministrar medicamentos para combater a doença, mas, em compensação, oferecerá os cuidados paliativos disponíveis. Não se propõe o abandono do doente, nem mesmo a interrupção abrupta de sua vida, por ação ou omissão, mas assegurar as melhores condições para que a morte seja um acontecimento natural, compatível com a dignidade humana. Numa definição lapidar a respeito de cuidados paliativos, Pessini assim se expressa:

    Em CP (cuidados paliativos), o objetivo é assegurar a melhor qualidade de vida possível. Quando o processo da doença conduz a vida para um fim natural, os doentes devem receber conforto físico, emocional e espiritual. [ 3 ]

    c) o médico, em razão da irreversibilidade da doença, deve desprezar ações terapêuticas inúteis ou obstinadas, sabendo que não conduzirão a nenhum resultado satisfatório. A praxe hospitalar, desde que haja retorno financeiro compatível, recomenda a distanásia, que vem a ser o prolongamento artificial da vida humana. O paciente fica atrelado a aparelhos que somente darão sustentação à sua vida biológica.

    O Papa João Paulo II, na Encíclica Evangelium Vitae deixou transparecer a opção da Igreja Católica pela ortotanásia, expressando-se da seguinte forma: Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado excesso terapêutico, ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se, em consciência renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes. Há, sem dúvida, a obrigação moral de se tratar e procurar curar-se, mas essa obrigação há de medir-se segundo as situações concretas, isto é, impõe-se avaliar se os meios terapêuticos à disposição são objetivamente proporcionados às perspectivas de melhoramento. A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana de fronte à morte. [ 4 ]

    A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em recente reunião de sua Comissão de Bioética, composta por cientistas, médicos, juristas e teólogos também deu seu nihil obstat para a aprovação da ortotanásia no Brasil.

    d) o médico deve acatar a declaração de vontade do paciente, se estiver em condições mentais para tanto, em caso contrário, de seu representante legal. A manifestação de vontade deve ser expressa no documento denominado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que vem a ser a concordância do paciente ou de quem o representa a respeito do procedimento médico, após tomar conhecimento de todos os benefícios e riscos que poderão ocorrer. O paciente trabalha em coautoria com o profissional da saúde. Abre-se mão do direito à vida e não da vida.

    Alguns países da Europa deram ênfase à vontade e autonomia do paciente e hoje se discute o Testamento Vital ou Testamento Biológico e ainda a Ordem de Não Reanimação. No vizinho Uruguai, o Congresso aprovou uma lei que levou o nome de Vontade Antecipada, e confere ao cidadão o direito de decidir por escrito que, em caso de doença terminal, sua vida não seja prolongada artificialmente e poderá, para tanto, nomear um procurador para cumprir sua vontade.

    O senador Gerson Camata, por sua vez (PMDB-ES), apresentou um projeto que pretende excluir a roupagem de ilicitude da ortotanásia, projeto de nº 116/00, que há nove anos tramita pelo Senado Federal e agora foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania daquela Casa. Ganha corpo e segue para a Câmara dos Deputados. O objetivo é acrescentar dois parágrafos ao artigo 121 do Código Penal, que trata a respeito da tipificação do crime de homicídio, nos seguintes termos:

    6º Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou em sua impossibilidade, de cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão.

    7º A exclusão de ilicitude a que se refere o parágrafo anterior faz referência à renúncia ao excesso terapêutico, e não se aplica se houver omissão de meios terapêuticos ordinários ou dos cuidados normais devidos a um doente, com o fim de causar-lhe a morte.

    O projeto que tramita pela Casa Legislativa define o paciente em estado terminal como sendo aquele portador de doença incurável, progressiva e em estágio avançado, com prognóstico de morte próxima. Paralelamente, institui procedimentos paliativos, mitigadores do sofrimento, com a contribuição de assistência psíquica, familiar e espiritual. O paciente em fase terminal de doença passa a ser o responsável pela autorização da ortotanásia e, na impossibilidade, seus familiares ou seu representante legal, para que o médico suspenda os procedimentos desproporcionais e extraordinários destinados a prolongar artificialmente a vida. Se o paciente, porém, quando lúcido, pronunciou-se contrariamente à ortotanásia, será respeitada sua manifestação, em razão do princípio da autonomia da vontade da pessoa humana.

    São considerações rápidas a respeito de tema que merece um debruçar social mais adequado. Afinal, a liberdade que se confere ao homem compreende o poder de decidir todos os passos de sua vida, sempre consciente, até mesmo seus últimos passos.

    Notas de Rodapé

    1. Constituição Federal, artigo 127, 1º.

    2. Mazzilli, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo : meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 8. ed. 1995, p.292.

    3. Pessini, Leocir; Barchifontaine, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética. São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Edições Loyola, 2008, p. 481.

    4. Costa AC, Martins Filho IGdaS. Encíclicas do Papa João Paulo II: o profeta do ano 2000. São Paulo: LTR Editora, 2003.

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