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19 de Maio de 2024
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    Alterações na distribuição de royalties são inconstitucionais

    Publicado por Consultor Jurídico
    há 14 anos

    O presente trata-se de consulta formulada pelo estado do Rio de Janeiro, por sua procuradora-geral, Lúcia Léa Guimarães Tavares, acerca da constitucionalidade de proposta de modificação da legislação relativa ao pagamento de royalties e participações especiais decorrentes da produção de petróleo. As inovações em questão resultariam de emendas parlamentares apresentadas na Câmara dos Deputados e no Senado, a projeto de lei enviado pelo Executivo, que não cuidava desse tema específico.

    Referidas como Emenda Ibsen, na Câmara dos Deputados, e como Emenda Simon, no Senado, tais alterações retiram dos estados e dos municípios os direitos de que até então desfrutavam em razão da produção de petróleo na plataforma continental, no mar territorial e na zona econômica exclusiva, por sua condição de confrontantes com as áreas de exploração[1]. De acordo com o novo tratamento proposto, as participações ou compensações previstas no artigo 20, da Constituição Federal não mais caberão aos estados e municípios diretamente afetados pela atividade de extração petrolífera, passando a ser distribuídas, indistintamente, a todos os estados e municípios da Federação, por meio de fundos de participações[2].

    As emendas descritas acima foram apresentadas no contexto da criação de um novo março regulatório para a exploração de petróleo na camada do subsolo conhecida como pré-sal[3]. Sobre o tema, quatro projetos de lei foram remetidos ao Congresso pelo chefe do Executivo:

    o Projeto de Lei 5.938/2009, que dispõe sobre a exploração e a produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos sob o regime de partilha de produção, em áreas do pré-sal e em áreas estratégicas (...); o PL 5.939/2009, que autoriza o Poder Executivo a criar a empresa pública denominada Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. PETRO-SAL; o PL 5.940/2009, que cria o Fundo Social (FS) com a finalidade de congregar recursos decorrentes da exploração do petróleo e constituir fonte regular de recursos para a elaboração de projetos e programas nas áreas de combate à pobreza e de desenvolvimento da educação, da cultura, da ciência e tecnologia e da sustentabilidade ambiental; e o PL 5.941/2009, que pretende capitalizar a Petrobras para a nova empreitada, autorizando a União a ceder-lhe o exercício das atividades de pesquisa e lavra de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos de que trata o inciso I do artigo 177 da Constituição.

    Apensado a esses projetos, tramitava o PL 2.502/2007, que instituía os contratos de partilha para a exploração de petróleo, ao lado dos contratos de concessão, conferindo à ANP o poder de determinar os blocos que seriam objeto de cada uma dessas modalidades. Apesar de formalmente vinculada a essa última proposição, a Emenda Ibsen foi apresentada em Plenário e incorporada à redação final do PL 5.938/2009 que, uma vez aprovada, foi autuada como PL 5.938-A/2009 e seguiu para o Senado, onde passou a tramitar como o PLC 16/2010. Quando do exame de outro projeto o PLC 7/2010, relacionado ao Fundo Social o senador Pedro Simon apresentou emenda que reproduz, em essência, a Emenda Ibsen. A nova emenda acabou integrada ao projeto aprovado por aquela Casa, como uma das disposições finais e transitórias do PLC 7/2010. É ao exame da matéria de fundo, comum aos dois projetos, que se dedica o presente estudo.

    Em síntese, as propostas legislativas mencionadas pretendem alterar a fórmula de distribuição das participações devidas aos estados-membros e municípios em razão da exploração marítima de petróleo. Nos termos da Emenda Ibsen seria suprimido o pagamento de royalties e participações especiais aos estados e municípios produtores e confrontantes, não apenas em relação aos contratos futuros, mas também em relação àqueles já firmados sob a vigência da Lei 9.478/97. Esses valores seriam, então, redirecionados a dois fundos e repartidos entre todos os estados e municípios da Federação, segundo os critérios de distribuição do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Essa ideia foi mantida pela Emenda Simon, que ressalvou apenas o caso dos municípios afetados pelas operações de embarque e desembarque de petróleo e gás natural, na forma e critério estabelecidos pela ANP, conforme previsto no artigo 49, II, d, da Lei 9.478/97. Para melhor compreensão da proposta, confira-se a dicção dos dispositivos pertinentes, respectivamente, no PLC 16/2010 (Emenda Ibsen) e no PLC 7/2010 (Emenda Simon):

    Emenda Ibsen

    Artigo 45. Ressalvada a participação da União, a parcela restante dos royalties e participações especiais oriundos dos contratos de partilha de produção e de concessão de que trata a Lei 9.478, de 6 de agosto de 1997, quando a lavra ocorrer na plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, será dividida entre estados, Distrito Federal e municípios da seguinte forma: 50% para constituição de Fundo Especial a ser distribuído entre todos os estados e o Distrito Federal, de acordo com os critérios de repartição do fundo de Participação dos Estados (FPE); e 50% para constituição de Fundo Especial a ser distribuído entre todos os municípios, de acordo com os critérios de repartição do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).

    Emenda Simon

    Artigo 64. Ressalvada a participação da União, bem como a destinação prevista na alínea d do inciso II do artigo 49 da Lei 9.478, de 1997, a parcela restante dos royalties e participações especiais oriunda dos contratos de partilha de produção ou de concessão de que trata a mesma lei, quando a lavra ocorrer na plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, será dividida entre estados, Distrito Federal e municípios da seguinte forma: 50% para constituição de fundo especial a ser distribuído entre todos os estados e Distrito Federal, de acordo com os critérios de repartição do Fundo de Participação dos Estados (FPE); e 50% para constituição de fundo especial a ser distribuído entre todos os municípios, de acordo com os critérios de repartição do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).

    A relevância do tema dificilmente poderia ser subestimada. De acordo com dados divulgados pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP)[4], entre janeiro e dezembro de 2009, somente a União recebeu cerca de R$ 6,5 bilhões a título de royalties e de participações especiais. Por sua vez, aproximadamente R$ 5,8 bilhões foram repartidos entre os estados produtores. Desse valor, cerca de R$ 4,9 bilhões foram destinados ao estado do Rio de Janeiro, maior produtor nacional. Caso aprovada em definitivo a proposta legislativa que dispõe não apenas sobre os campos que venham a ser descobertos no pré-sal, mas também sobre os já licitados , estima-se que o estado sofrerá uma perda anual de pelo menos R$ 7 bilhões[5], além do previsível aumento do desemprego[6]. Diante dessa perspectiva, a preocupação com o assunto extrapolou os limites do debate parlamentar e alcançou a sociedade civil. A insatisfação popular culminou com a participação de 100 mil pessoas em uma passeata organizada pelo governo do estado e por prefeitos de municípios fluminenses[7].

    Todas essas circunstâncias demonstram o enorme impacto que a inovação, caso aprovada, produziria sobre os estados produtores e, paralelamente, questionamentos diversos têm sido suscitados acerca da constitucionalidade dessa proposta. O presente estudo será conduzido segundo o roteiro inicialmente apresentado, mas já se pode adiantar que a conclusão apurada é no sentido da invalidade da proposta de alteração legislativa. Antes de se passar à demonstração do argumento, faz-se a breve nota terminológica que se segue.

    Ao tratar dos direitos dos estados, do Distrito Federal e dos municípios em relação à exploração do petróleo, a Constituição utiliza os termos participação no resultado ou compensação financeira. Na legislação infraconstitucional em vigor, a Lei do Petróleo (Lei 9.478/1997) utiliza a expressão participações governamentais, que inclui, além do bônus de assinatura e do pagamento pela ocupação da área irrelevantes para os fins do presente estudo , os royalties que constituem a figura básica e a participação especial, devida nos casos em que o lote licitado apresente grande volume de produção ou especial rentabilidade (artigo 47). Na sistemática da Constituição e da legislação infraconstitucional como se demonstrará ao longo do presente parecer , ambas as receitas constituem uma forma de compensação aos órgãos federais, estados e municípios envolvidos na produção, em razão dos ônus e encargos dela decorrentes. Na sequência do presente estudo, por conta da referida natureza comum e seguindo a linguagem corrente fora do ambiente técnico o termo royalties será empregado em sentido genérico, englobando também as participações especiais, salvo onde a distinção tenha relevância.

    Histórico legislativo do pagamento de royalties do petróleo

    A obrigação de distribuir participações ou compensações a estados e municípios em decorrência da exploração de petróleo e gás natural existe desde o começo da indústria petrolífera no Brasil. O artigo 27 da Lei 2.004/53[8], que criou a Petrobras e dispôs sobre a Política Nacional do Petróleo, impunha à empresa estatal detentora do monopólio então existente no setor o dever de pagar indenização, correspondente a 5% sobre o valor do produto explorado, aos estados, territórios e municípios onde ocorresse a lavra de petróleo e xisto betuminoso ou a extração de gás natural[9].

    Já na década de 1980, com o início da exploração marítima do petróleo, a Lei 7.453/85 previu o pagamento de compensação também quando o óleo ou o gás natural fossem extraídos da plataforma continental. Nesse caso, o pagamento deveria ser feito não apenas aos estados e municípios confrontantes com os poços produtores, mas também aos municípios integrantes da área geoeconômica dos municípios confrontantes[10]. Posteriormente, a Lei 7.525/86 veio explicitar os conceitos de estados e municípios confrontantes e de área geoeconômica[11]. Nos termos da lei, teriam direito a royalties não apenas os municípios que possuíssem instalações relacionadas à produção e ao seu escoamento como oleodutos, gasodutos e estações de compressão e bombeio , mas também os municípios contíguos que suportassem as consequências sociais ou econômicas da produção e exploração de petróleo[12]. Duas observações parecem relevantes aqui.

    Em primeiro lugar, restava evidente da legislação que o pagamento de royalties aos estados e municípios produtores (nessa expressão já incluídos os confrontantes, como referido) não se dava por conta da propriedade do bem que já era federal , mas sim em razão dos ônus causados a alguns dos outros entes pela exploração do petróleo. Em segundo lugar, é interessante observar que a Lei 7.453/85 previa também paralela e independentemente dos pagamentos devidos aos estados e municípios produtores que 1% do valor dos produtos extraídos seria destinado a um Fundo Especial a ser distribuído entre todos os estados, territórios e municípios. Os recursos recebidos por todos os entes federativos por conta desse fundo, como se vê, em nada se relacionam seja com os valores a serem pagos aos estados e municípios produtores as duas previsões coexistem simultaneamente , seja com a circunstância de serem ou não afetados pela produção e exploração do petróleo.

    Em 1988, ganhou status constitucional o direito dos entes federativos, afetados pela exploração de petróleo, gás natural e outros recursos naturais pertencentes à União, sobre os benefícios financeiros dela advindos. Nessa linha, o artigo 20, , da Constituição Federal assegura a esses estados, Distrito Federal e municípios, nos termos da lei, a participação no resultado da exploração ou a compensação financeira por essa exploração[13]. Esse dispositivo constitucional foi regulamentado pelo artigo da Lei 7.990/89, que novamente explicitou o dever de se pagar uma compensação financeira aos estados e municípios em cujo território se fizesse a lavra, bem como àqueles confrontantes às áreas de produção marítima[14]. A lei fixou a compensação devida no montante de 5% do valor da produção, instituindo determinados critérios para a sua repartição entre os entes estatais beneficiários. Veja-se, por fim, que a Constituição nada dispôs sobre a criação de um fundo específico nessa matéria, a ser distribuído entre todos os entes federativos indistintamente. Isso não significa, por natural, que o Legislador não pudesse tratar do tema e, de fato, a Lei 7.990/89 manteve o fundo criado pela legislação anterior e destinado a todos os estados, territórios e municípios, reduzindo o valor a ele destinado, no entanto, para 0,5%.

    Os royalties devidos aos estados e municípios produtores foram contemplados também pela Lei do Petróleo (Lei 9.478, de 6 de agosto de 1997), editada na esteira da abertura do mercado levada a efeito pela EC nº 9/95. Reproduzindo a previsão tradicional, tal diploma determina o pagamento mensal de royalties aos estados produtores, fixados em montante equivalente a 10% da produção de petróleo e gás natural. Esse percentual pode ser reduzido pela ANP mediante previsão no edital de licitação do campo correspondente até o mínimo de 5%, tendo em conta os riscos geológicos, as expectativas de produção e outros fatores pertinentes. Nos termos da Lei do Petróleo, a parcela básica de 5% continua a ser distribuída segundo os critérios estipulados pela Lei 7.990/89. A repartição da parcela que exceder a 5% segue critérios próprios, definidos no artigo 49 da nova lei[15].

    Como se percebe, e a despeito de pequenas modificações, um elemento essencial permaneceu inalterado na regulamentação legislativa da matéria, desde o início da exploração do petróleo no Brasil: a existência de uma retribuição a ser paga em favor dos estados e municípios produtores a fim de compensar os ônus e riscos decorrentes da atividade de exploração, seja em terra, seja na plataforma continental (tanto assim que a Lei 2.004/53 chegava a falar em indenização). Retribuição de valor substantivo e que jamais se confundiu com a existência de um fundo geral cujos recursos seriam distribuídos por todos os entes indistintamente, sem qualquer vinculação com os impactos sofridos por conta da exploração e da produção do petróleo. Esse é um dos aspectos relevantes na determinação do sentido e alcance do artigo 20, da Constituição. A esse tema se dedica o tópico seguinte.

    Interpretação adequada do dispositivo constitucional

    A discussão quanto à validade da orientação adotada pelas emendas Ibsen e Simon depende, em grande medida, da adequada leitura do artigo 20, , da Constituição. De forma mais concreta, trata-se de saber se o dispositivo cuida do direito dos estados e municípios afetados pelo processo de extração do petróleo de receberem royalties e participações especiais ou se o dispositivo constitucional estaria atendido uma vez que a União, por meio de lei, atribuísse a todos os estados e municípios, sem diferenciação, o direito a receber royalties e participações especiais. Confira-se o teor do dispositivo:

    Artigo. 20. (...) 1º. É assegurada, nos termos da lei, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração.

    A ordem jurídica constitui um sistema, dotado de unidade e harmonia. A interpretação jurídica, por sua vez, é uma atividade racional e lógica. Para levá-la a efeito, a doutrina, nos países da tradição romano-germânica, de longa data, sistematizou quatro elementos clássicos de interpretação: gramatical, histórico, sistemático e teleológico. De acordo com o conhecimento convencional, nenhum desses elementos é absoluto nem tampouco deve ser utilizado isoladamente. A interpretação adequada é fruto da combinação e do controle recíproco entre eles.[16]Deve-se levar em conta, portanto, o texto da norma (interpretação gramatical ou semântica), aspectos do seu processo de criação (interpretação histórica), sua conexão com outras normas do sistema jurídico (interpretação sistemática) e sua finalidade (interpretação teleológica). Pois bem: na hipótese aqui examinada, todos os elementos de interpretação conduzem a uma mesma conclusão: o artigo 20, da Constituição dirige-se aos estados e municípios em cujo território se dá a exploração de petróleo ou gás natural ou que sejam afetados por essa exploração. Confira-se, a seguir, a demonstração do raciocínio.

    A interpretação gramatical consiste na atribuição de sentidos possíveis e razoáveis a um texto normativo. Ela constitui o ponto de partida e o limite das possibilidades interpretativas, que devem se situar dentro da moldura delineada pela norma. Pois bem: o 1º do artigo 20 fala em participação no resultado ou compensação financeira pela exploração de recursos no respectivo território. Na verdade, o conceito chave é o de compensação, seja pelo uso do território do estado ou do município, seja pelos danos ou ônus decorrentes da atividade. Pois bem: o que haveria para compensar em relação a uma região não envolvida nem afetada no processo de exploração? Caso todos os estados e municípios tivessem o mesmo direito, o local da atividade seria irrelevante e o emprego da palavra compensação não teria pertinência[17]. Vale dizer: o artigo 20, 1º não teria sentido nem razão de existir. Regra ancestral da interpretação jurídica é a de que a norma não traz em si termos inúteis.

    Note-se que a idéia de participação/compensação está subjacente, também, à repartição dos royalties no âmbito da administração direta da União. De fato, tanto a lei atual quanto o projeto de lei enviado pelo Executivo destinam recursos aos órgãos que são diretamente afetados pela exploração: Comando da Marinha, Ministério da Ciência e Tecnologia e Fundo de proteção ambiental[18]. Tal previsão não é afetada pelas modificações propostas pelas emendas Ibsen e Simon. É bem de ver que se a União é proprietária dos recursos minerais, só há sentido em tal vinculação específica em razão da natureza compensatória dos royalties , que se destinam aos entes estatais e aos órgãos onerados pela atividade econômica em questão. De fato, se é assim em relação ao próprio governo federal, não haveria razoabilidade em se aplicar lógica diversa aos estados e municípios.

    Em suma: a interpretação gramatical ou semântica restringe os direitos previstos no artigo 20, 1º aos estados e municípios cujos territórios são afetados pela exploração de petróleo ou gás natural. Trata-se de verdadeiro direito subjetivo constitucional ao recebimento de tais receitas[19]. A lei destinada a regulamentar o dispositivo constitucional não pode ignorar esse sentido mínimo do texto, sob pena de nulidade. Assim, a lei federal é necessária para detalhar a repartição dos recursos, mas deve obedecer à premissa estabelecida pela própria Constituição[20].

    Já a interpretação histórica leva em conta a conjuntura em que produzida a norma, os trabalhos legislativos e a intenção do constituinte ou legislador. Quando o constituinte de 1988 decidiu trazer para a Constituição a matriz da disciplina dos royalties , eles já eram tratados pela legislação ordinária desde 1953, quando promulgada a lei de criação da Petrobras. E, como se assinalou em tópico anterior, desde sempre os royalties se destinaram a compensar os estados produtores e confrontantes, no caso de exploração marítima. Ao constitucionalizar a matéria, da forma como fez, o constituinte claramente manifestou a intenção de manter o regime jurídico até então existente. Do contrário, teria feito menção expressa de que as participações e compensações passariam a ser devidas a todos os estados e municípios, diferentemente do que vigorara até então. Como não procedeu assim, resulta clara a sua intenção de chancelar o modelo que sempre fora praticado e que, aliás, continuou a ser praticado nos mais de 20 anos de vigência da Constituição de 1988[21].

    Passa-se, agora, à interpretação sistemática, pela qual a norma jurídica deve ser interpretada dentro do contexto normativo como um todo. Não se interpretam normas isoladamente, sem fazer as conexões com o ordenamento jurídico, em cujo ápice está a Constituição[22]. A Constituição tem uma unidade interna e, além disso, é responsável pela unidade geral do sistema. No ponto aqui relevante, deve-se assinalar que o artigo 20, 1º deve ser lido em conjunto com outras normas que afetam o ciclo econômico da produção do petróleo. Merece destaque, para os fins visados nesse estudo, a disciplina do imposto sobre circulação de mercadorias, especialmente o artigo 155, 2º, X, b, também da Constituição[23]. É possível afirmar que a regra geral, em relação a esse tributo, é o seu pagamento na origem, isto é, no estado onde se dá a saída da mercadoria do estabelecimento comercial[24]. Todavia, o dispositivo acima destacado cria, em relação ao petróleo e, também, à energia elétrica , uma exceção: o ICMS, nesse caso, é pago no estado de destino do produto. Como já apontou o STF, essa disciplina foi criada para beneficiar o estado de destino dos produtos em causa, ao qual caberá, em sua totalidade, o ICMS sobre eles incidente, desde a remessa até o consumo[25].

    Tal sistemática, em relação ao petróleo, se deveu ao fato de que os estados produtores, em lugar da tributação do ICMS, receberiam royalties e participações especiais, nos termos do artigo 20, 1º. Uma coisa, então, compensaria a outra. Também esse aspecto já foi abordado pelo STF. Confira-se, a propósito, o trecho abaixo transcrito, extraído do voto do ministro Nelson Jobim, que, baseado em sua atuação como deputado constituinte, explicitou a conexão necessária e deliberada entre os dois dispositivos:

    Daí por que preciso ler o 1º do artigo 20, em combinação com o inciso X do art. 155, ambos da Constituição Federal. O que se fez? Estabeleceu-se que o ICMS não incidiria sobre operações que se destinassem a outros estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos, gasosos e derivados e energia elétrica , ou seja, tirou-se da origem a incidência do ICMS. (...) Assim, decidiu-se da seguinte forma: tira-se o ICMS da origem e se dá aos estados uma compensação financeira pela perda dessa receita. Aí criou-se o 1º do artigo 20 (...) (negrito acrescentado) [26] .

    É possível cogitar que o constituinte derivado pudesse se se entendesse que isso não viola o princípio federativo, cláusula pétrea constitucional modificar tal arranjo, alterando o equilíbrio estabelecido no texto original. Mas o legislador ordinário, por certo, não pode desfazer o sistema concebido pelo constituinte para a matéria. Em suma: o artigo 20, , da Constituição Federal garante o direito de participação ou de compensação aos estados e municípios produtores. Isso não quer dizer que os demais estados-membros e municípios não possam receber qualquer parcela, mas apenas que a decisão por distribuir seria uma opção política da União, que pode repartir como quiser o seu próprio quinhão. O que ela não pode fazer é ceder o que não lhe pertence, atribuindo a outros estados e municípios aquilo que cabe apenas aos produtores.

    Por fim, cumpre abordar a interpretação teleológica, que leva em conta, sobretudo, os fins visados pela norma, o valor ou bem jurídico tutelado pelo ordenamento. Veja-se bem: o propósito subjacente ao artigo 20, 1º, como todo modelo de pagamento de royalties , está associado a compensar estados e municípios pelos impactos ambientais e socioeconômicos causados ou potencializados pela atividade petrolífera. Tal fim constitucional resulta frustrado pelo rateio linear do produto dos royalties , sem considerar os riscos e encargos dos estados confrontantes da exploração marítima do petróleo.

    Aqui se destaca, por exemplo, o aumento da demanda por serviços públicos e atividades governamentais, como distribuição de água, energia elétrica e gás natural, segurança pública, transportes, habitação, urbanismo, defesa civil, proteção ao meio ambiente, dentre outros. Da mesma forma, são evidentes os elevados impactos e riscos ambientais impostos aos estados confrontantes às áreas de produção sua existência e gravidade foram tristemente demonstradas por recente acidente de grandes proporções, ocorrido no Golfo do México. Para que se tenha uma dimensão do problema: estima-se que um vazamento similar afetaria a costa do Rio de Janeiro em apenas dois dias, gerando prejuízos materiais e imateriais incalculáveis[27]. Também esse aspecto finalístico já foi objeto de consideração expressa do STF, como se noticia a ...

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