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5 de Maio de 2024
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    As duas infâncias do Código de Menores de 1979

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Foto: FEBEM, 1999/Sebastião Salgado.

    Esta colunista que vos fala completará 40 anos em 2018: a informação é relevante porque, tendo nascido em 1978, contabilizo na minha biografia-cidadã dois generais na presidência, uma eleição indireta, dois impeachments e um sem-número de mudanças de moeda.

    Ainda, tendo nascido em 1978, completei doze anos em 1990, o que significa que me tornei legalmente adolescente exatamente no ano em que essa faixa etária foi, pela primeira vez, reconhecida como categoria jurídica no Brasil: foi somente com a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 que a lei passou a classificar as pessoas com menos de dezoito anos em “crianças” (com idade de zero a doze anos incompletos) e “adolescentes” (a partir dos doze anos completos, até se completarem os dezoito anos).

    Por isso me lembro bem de como era comum na minha infância classe-média nos anos 1980 que os adultos ameaçassem qualquer vestígio de mau comportamento e birras em geral afirmando que “na próxima eu te mando pra FEBEM”.

    Os mais afeitos a detalhes prosseguiam nos contando que, lá chegando, nossos cabelos seriam raspados pra não dar piolho, e que a gente ia apanhar todo dia para aprender a se comportar.

    Minha “infância classe-média” foi bem distante da “infância da FEBEM”, cujos reais detalhes somente vim a saber muitos anos mais tarde por força do trabalho na área de Direitos Humanos. Como é possível então que o senso comum tivesse uma opinião tão marcante sobre essa instituição? O que isso nos revela sobre a FEBEM e a legislação que a alicerçava?

    Essas breves menções autobiográficas servem para introduzir este novo texto da série A herança legal das ditaduras: nossas cicatrizes jurídicas, na qual comento textos da legislação produzida durante os muitos períodos autoritários da história do Brasil, para demonstrar o quanto as normas punitivas ainda em aplicação refletem contextos não democráticos.

    Hoje falarei do Código de Menores de 1979, que, excepcionando um pouco os outros textos da série, já não está em vigor – foi expressamente revogado em 1990 com a publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Porém, mesmo já extirpado do ordenamento jurídico, suas raízes ainda encontram adubo no nosso fértil solo autoritário, e muito da chamada “mentalidade menorista” e da “doutrina da situação irregular” ainda podem ser identificada em situações contemporâneas.

    A “mentalidade menorista” faz referência a um modo de pensar crianças e adolescentes nos termos em que estes eram pensados quando a eles se fazia referência como “menores”, termo empregado nas duas legislações anteriores destinadas a essa faixa etária, quais sejam, o Código de Menores de 1927, e o Código de Menores de 1979.

    O Código de Menores de 1979 entrou em vigor nos últimos anos da ditadura militar, e pretendia ser mais um exemplo do rigor autoritário dos ditadores militares[1]. O texto adotou a denominada doutrina da “situação irregular”, que dispunha “sobre a assistência, proteção e vigilância” a menores “de até dezoito anos de idade”, que se encontrassem “em situação irregular”.

    A Constituição de 1967 (vigente à época do Código de Menores de 1979) não previa quaisquer direitos para crianças e adolescentes, restringindo-se a determinar a instituição por lei de “assistência à maternidade, à infância e à adolescência”, adotando fundamento expressamente assistencialista, e não de juridicização de direitos fundamentais.

    A doutrina da situação irregular classificava crianças e adolescentes não como pessoas sujeitos de Direito, mas sim como objetos de tutela e intervenção dos adultos, o que deveria ocorrer em caso de se encontrar o menor de 18 anos na mencionada “situação irregular”, definida pelo art. do antigo Código de Menores como a “privação de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória”; “submissão a maus tratos ou castigos imoderados”; exposição a “perigo moral”; “privação de representação ou assistência legal”; e ainda incluindo o desvio de conduta “em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária” e a prática de infração penal.

    Em outras palavras, a doutrina adotada na legislação anterior colocava sob a mesma categoria jurídica de “situação irregular” duas situações distintas, as quais o Estatuto da Criança e do Adolescente viria a diferenciar, denominando-as como “situação de risco” e “prática de ato infracional”. Além de não estabelecer essa diferenciação (e, consequentemente, não designar medidas jurídicas específicas e individualizadas para cada um dos casos), o Código de Menores continha formulações vagas e carregadas de conotação moral, tais como o “perigo moral” e o “desvio de conduta”, que seriam definidas ao sabor do julgador.

    Não é preciso elaborar um raciocínio muito sofisticado para identificar as duas infâncias estabelecidas pelo Código de Menores: uma “regular”, e outra, “irregular”.

    A “regular”é a regra, e por isso dispensada sua descrição como antônimo da lei: desnecessário dizer que as crianças consideradas a salvo do “perigo moral” e cuja conduta não é desviante são aquelas que não passam por qualquer “privação de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória”. E a lei estabelecia então que somente aquelas em situação irregular estarão sob vigilância do Estado[2] .

    O Título VII da Constituição Federal dispõe sobre a Ordem Social, e seu Capítulo VII contém os dispositivos sobre a família, a criança, o adolescente e o idoso.

    Os artigos 227 a 229, CF tratam dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes e os correspondentes deveres da família, sociedade e Estado. Assim, os direitos contidos no ECA são fundamentais e todos têm correspondência ou fundamento constitucional.

    Além disso, ao reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de Direito, a Constituição lhes confere a titularidade de direitos fundamentais, entre eles a igualdade: não há mais que se fazer distinção de tratamento jurídico entre filhos “legítimos” e “ilegítimos”, ou entre “menores em situação irregular” e os “regulares”.

    Por isso me parece inconcebível que, passados 28 anos da publicação do ECA, haja crianças a quem a Justiça se faça de cega e permita nascer e crescer em celas de penitenciárias e delegacias, ou outras cuja mãe em fase de amamentação não é considerada “indispensável” a seus filhos, a ponto de justificar que se conceda seu direito legal a prisão domiciliar.

    É essa “outra infância” que simboliza a FEBEM, com seu farto histórico de maus-tratos e tortura. É por essa carga simbólica que querer vender uma camiseta pretensamente (?) cômica (?) com esse tema não tem graça: ainda tem muita gente vestindo a camisa dessa “outra infância”, e, definitivamente, isso não tem graça nenhuma.

    Maíra Zapater é Doutora em Direito pela USP e graduada em Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, Professora e pesquisadora. Autora do blog deunatv.

    [1] Gutemberg Alexandrino Rodrigues afirma que o Código pode ser considerado como “propaganda política do regime (…)”, e que simbolizava “a ideia de uma nação forte, preconizada pelos militares”(p. 20). Em: Os filhos do mundo: a face oculta da menoridade (1964-1979); Monografias IBCCrim, volume 17, 2001.

    [2] Nos termos textuais do artigo do Código de Menores: Art. 1º Este Código dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a menores: I – até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular.

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