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3 de Maio de 2024
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    Assombração Tributária II - URV e Autovinculação

    Publicado por Direito do Estado
    há 14 anos

    Retorno ao tema da cobrança pelo Fisco Federal de valores de imposto de renda supostamente devidos por membros do Ministério Público da Bahia pelo recebimento, em 2004, 2005 e 2006, de vantagem indenizatória prevista na Lei Complementar Estadual n. 20/2003, instituída para ressarcir perdas decorrentes da conversão da remuneração de cruzeiro real para Unidade Real de Valor - URV. A questão interessa também à magistratura estadual, pois vantagem idêntica foi deferida a esses agentes pela Lei nº 8.730/2003.

    No texto anterior, enfatizei que a Lei Complementar n. 20/2003 atribuiu expressamente natureza indenizatória à referida vantagem, afastando o cabimento de imposto de renda. Por isso, o MP Estadual não promoveu a retenção do tributo no pagamento da vantagem. Os membros do Ministério Público, em absoluta boa-fé, apresentaram suas declarações de rendimentos em sintonia com os informes anuais recebidos do órgão estadual. O Fisco Federal, entretanto, a partir de 2009, surpreendeu a todos, passando a cobrar e assombrar diversos membros do Ministério Público, atribuindo-lhes a infração tributária de classificar indevidamente a vantagem recebida como indenizatória, incluindo na cobrança, além do valor principal, juros de 40%, correção monetária e multa proporcional de 75%.

    Na primeira oportunidade, enfatizei apenas uma questão constitucional e Federativa grave: a própria incompetência do Fisco Federal para cobrar tributo sobre a renda que supõe deveria ter sido retido no âmbito do Estado-Membro. É que o imposto de renda, nos termos do art. 157, I, da Constituição da República, embora tributo de competência normativa federal, quando relativo a pagamentos promovidos pelo Estado, simplesmente é tributo que pertence ao Estado, sendo a União parte ilegítima para promover-lhe a cobrança ou integrar, como sujeito passivo, demandas relativas à forma de retenção do tributo pelo Estado-Membro. A ausência de retenção de imposto sobre a referida indenização não autoriza a União a reclamar para si competência para cobrar tributo que desde a origem não lhe pertence. Mais estranho ainda é a União incluir esses supostos créditos em programas federais de recuperação fiscal (REFIS), com abatimento de valores de multa ou juros, pois esses valores não lhe pertencem! Não pode a União arvorar-se em gestora dos créditos tributários estaduais ou apropriar-se desses valores. O interesse da União nasce apenas no que exceder o montante objeto da retenção na fonte, pois todo o valor apurado com a retenção pertence integralmente ao Estado-Membro (CF,art. 157, I) ou ao Município (CF, art. 158, I). É o entendimento da doutrina mais autorizada e de numerosas decisões do Superior Tribunal de Justiça (CC nº 10.108-SP; RMS n.º 10.044/RJ; Resp n.º 296.899/MG; EDcl no RMS n.º 5.779/RJ ; AgRg no Ag n.º 356.587/MG ; REsp n.º 477.520/MG; AgRg no REsp n.º 710.439/MG ;REsp 874.759/SE). Mas não voltarei a este tema, pois ainda alimento a esperança de que o Estado da Bahia atue, por seus órgãos, e reivindique a própria competência para tratar do assunto, sem omitir-se nesta questão sensível, que agride a Federação.

    Destaco hoje outro aspecto da questão, ainda ausente do debate que tem sido ventilado pelas partes envolvidas: a manifesta incoerência do Fisco Federal na abordagem do problema, que se revela pelo tratamento desigualitário de situações idênticas e por alterações imotivadas no seu padrão decisório ao longo do tempo. Essas alterações violam o princípio da boa-fé e da igualdade dos contribuintes, pois estes possuem direito a uma atuação coerente da autoridade fazendária, que se autovincula aos seus próprios precedentes.

    Entre esses precedentes está o entendimento do Fisco Federal de que é incompetente para afastar a incidência de lei em sentido estrito, isto é, para reconhecer a inconstitucionalidade de ato normativo primário (Súmula 02 do Primeiro Conselho de Contribuintes, “verbis”: “O Primeiro Conselho de Contribuintes não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária”). O entendimento adotado é o de que a lei se presume constitucional perante os órgãos administrativos fazendários, não cabendo a estes o controle de constitucionalidade das leis. Embora a tese seja equivocada, pois, como dizia Frederico Marques, a “lei inconstitucional é inconstitucional para todos os Poderes e não apenas para o judiciário”, esse entendimento tem sido reiteradamente invocado pelo Fisco Federal para impor aos contribuintes o pagamento de tributos calçados em leis manifestamente inconstitucionais. De forma coerente, não pode agora o Fisco Federal, no caso da Bahia, afirmar administrativamente que a Lei Complementar 20/2003 é inconstitucional, para justificar a cobrança de imposto de renda não retido na fonte, sem que a presunção de constitucionalidade da referida lei formal tenha sido previamente afastada pelo Poder Judiciário, consoante exige o seu próprio entendimento sumulado. Atuar de forma diversa atenta contra a própria segurança jurídica, por traduzir atuação caprichosa, incoerente, contrária aos padrões éticos da boa-fé e da igualdade.

    Outro precedente é a Súmula nº 34, de 16/09/2008, da Advocacia Geral da União, segundo a qual: “Não estão sujeitos à repetição os valores recebidos de boa-fé pelo servidor público, em decorrência de errônea ou inadequada interpretação da lei por parte da Administração Pública”. Nas autuações, o Fisco Federal declara que não houve dolo por parte dos membros do Ministério Público da Bahia na “classificação indevida de valores como não tributáveis”, pois as declarações de renda foram prestadas “a partir de informações fornecidas pela fonte pagadora”. Se foi assim, deve-se reconhecer a aplicabilidade direta da Súmula n. 34, da AGU, ao caso da Bahia. Se houve algum erro de interpretação da competência estadual, o que se afirma apenas para argumentar, este erro foi da fonte pagadora, não do contribuinte. A conduta do contribuinte, no caso, foi completamente vinculada, faltando-lhe autonomia para classificar os valores percebidos diversamente da classificação dada pela fonte pagadora.

    Ora, é elementar princípio de direito que onde falta autonomia, falta responsabilidade, por ser inexigível conduta diversa. Se não há autonomia, não há culpa nem reprovação possível; logo, não pode haver multa proporcional de 75%, sanção tributária, ou atribuição de infração ao contribuinte.

    Por fim, cabe invocar o Parecer PGFN 2716/2007, de 14 de novembro de 2007, que afastou expressamente a incidência de imposto de renda sobre vantagem idêntica percebida pelos membros do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, estendendo a estes o tratamento que o Fisco Federal havia conferido aos Procuradores da República (Parecer PGFN 923/2003). No parecer 2716/2007, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional reconhece o caráter unitário e nacional do Ministério Público brasileiro e a legitimidade da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro para produzir a Lei Estadual n. 4.433, de 2004, que previu abano-pecuniário indenizatório para os membros do Ministério Público do Rio de Janeiro na conversão do padrão monetário (URV), invocando o brocado latino segundo o qual “onde existe a mesma razão (da lei) deve prevalecer a mesma regra de direito”.

    Ocorre que, à semelhança do estabelecido como critério de interpretação para o Ministério Público do Rio de Janeiro, também na Bahia houve aprovação de lei formal para o reconhecimento da vantagem provisória equivalente, exatamente a citada Lei Complementar 20/2003. O Parecer PGFN/CAT n. 2716/2007 adotou o critério interpretativo adequado, reconhecendo ao legislador estadual competência para dispor sobre o regime de retribuição e ressarcimento dos seus agentes, com repercussão econômica sobre a base de incidência do tributo, mas sem dispor sobre a própria regra matriz desse tributo, de competência normativa federal.

    Segundo a Nota Cosit n. 177, de 10 de junho de 2008, da Secretaria da Receita Federal do Brasil, é possível cogitar de aplicação da mesma linha interpretativa adotada no Parecer PGFN/CAT n. 2716/2007 “aos Ministérios Públicos dos demais entes federados”, sendo necessário “examinar cada caso em si” (fls. 04). Essa providência ainda não ocorreu, talvez por deficiência dos próprios órgãos estaduais, que ainda não formularam consultas formais à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional sobre o assunto, invocando os precedentes referidos.

    Esses precedentes não podem ser desconsiderados. Produzem autovinculação, pois o contribuinte tem direito a não ser tratado de forma menos favorável do que foram tratados outros contribuintes em casos idênticos. A Administração tributária deve proceder com lealdade e com fidelidade aos seus próprios precedentes. Não pode atuar de forma caprichosa, errática, discriminatória, afastando a tributação para alguns e reclamando para outros, em situação equivalente. Não pode afastar a tributação no plano federal e a exigir no plano estadual. Nem tratar diferentemente agentes de Estados distintos, quando estiver diante de situações idênticas. A autovinculação completa a legalidade e é reclamada por princípios constitucionais e exigências éticas inafastáveis no Estado de Direito. Espera-se que em algum momento de nossa história essas normas e valores não precisem mais ser exigidas e reclamadas com veemência, mas cumpridas voluntariamente e adotadas autonomamente pelos próprios agentes do Fisco. Neste dia a assombração tributária desaparecerá.

    Paulo Modesto

    Professor de Direito Administrativo da UFBA. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público. Promotor de Justiça do Estado da Bahia e Presidente da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Editor do site www.direitodoestado.com.br

    Jornal A Tarde, 14/12/2009 (Judiciárias, p. 4).

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/assombracao-tributaria-ii-urv-e-autovinculacao/2037186

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