Defensorar é também incentivar a outros caminhos judiciais
A sobrecarga do sistema Judiciário é denunciada diuturnamente. A cultura desenfreada da litigância judicial exacerbada – apre (e) ndida muitas vezes nos bancos de faculdade –, é uma das mais culpadas pelo excesso de demandas apresentadas ao Poder Judiciário. E qual seria o papel da Defensoria Pública nesse contexto?
Pois bem, ser Defensor Público significa – hoje mais que antes –, ser “expressão e instrumento do regime democrático” (Constituição, art. 134), implicando isso em um envolvimento e interesse maior com a 3ª (terceira) onda de acesso à Justiça, na qual a consensualidade, a desjudicialização e os métodos menos formais de solução de litígios ganham força e espaço – para maiores detalhes vide “Acesso à Justiça” de Mauro Cappelletti e Bryant Garth.
Com efeito, essa é a dicção da LC n. 80/1994 (Lei Orgânica da Defensoria Pública): “art. 4º II – promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos;”.
Ademais, o acesso à Justiça via defensor público deve representar a solidificação da ideia de que “todo poder emana do povo” (art. 1º, parágrafo único, Constituição), incluindo aí o poder de solucionar conflitos democraticamente, dispensando, sempre que possível, uma solução adjudicada.
Ora, se “defensorar” significa ser “expressão e instrumento do regime democrático” isso significará também que o defensor público – enquanto órgão do Sistema de Justiça –, possui o dever de primar por soluções não heterocompositivas (como a solução judiciária e por arbitragem). Isso porque defensorar é de fato um instrumento democrático quando estimula a capacidade do cidadão de solucionar seus problemas através do diálogo, emancipando-o da dependência de terceiros para tal mister. Sim, a assistência defensorial deve emancipar o cidadão e não torná-lo refém de autoridades públicas para solucionar seus problemas pessoais. E o povo brasileiro está pronto para receber tal estímulo, conforme breve relato narrado a seguir.
Em determinada ocasião, dois cidadãos de pouco estudo (com ensino fundamental incompleto) discutiam sobre o “pedaço” de uma pequena propriedade. Era uma briga feroz, envolta de histórico de violências e ameaças. Um dizia ser seu o “caminho” disputado e o outro negava, afirmando que o tal “pedaço” fazia parte de sua propriedade. Então, um deles procurou a Defensoria Pública – recém instalada na comarca, já por força da EC n. 80/2014 –, e o segundo litigante foi notificado para comparecer em audiência defensorial pacificadora (ADP). Eis os passos seguidos:
1 – A oitiva atenta e interessada dos envolvidos: Cada um dos interessados em litígio pode falar. E um reclamou do outro, como era de se esperar. Um deles afirmou até que o segundo lhe fizera “macumba”. O clima esquentou em alguns momentos do diálogo – foi preciso intervir. Mas foi completado o sadio ciclo de desabafo social e psicológico.
2 – A admoestação respeitosa: Foi dito aos participantes da audiência defensorial que “cidadãos civilizados geralmente resolvem seus problemas dialogando”. O que foi suficiente naquela ocasião para enfraquecer o espírito beligerante até então dominante naquele ambiente.
3 – A educação em direitos (LC n. 80/1994, 4º, inciso III): Nesse momento, após alguns copos com água e mais calmos, os cidadãos em litígio ouviram atentamente o defensor público que em uma simples explicação – desenhada em papel de rascunho na folha ofício –, dizia-lhes o que seria “servidão de passagem” e quais os direitos que isso envolvia.
A conscientização dos limites e fronteiras do seu próprio direito tornou os cidadãos envolvidos cientes também de seus deveres. E o desfecho foi natural: uma solução debatida e construída democraticamente – sem qualquer imposição, naturalmente de vocação menos democrática. Acordo firmado a partir das observações de ambos e devidamente referendado pelo defensor público. Passou-se mais de um ano e não houve qualquer reiteração do litígio ou animosidade.
Certamente, um cidadão emancipado e educado é cidadão com menor propensão à litigância. Nesse contexto, a função da Defensoria Pública é exatamente a de auxiliar na emancipação democrática dos cidadãos, mormente o necessitado.
O Novo Código de Processo Civil (art. 784, V) reitera o CPC-1973 (art. 585, II) no que se refere à função defensorial de referendar as transações realizadas pelos interessantes perante o Estado Defensor. É preciso explorar cada vez mais tal possibilidade, pois quando bem aplicada estimulará a cidadania, a prevenção de novos litígios, a emancipação do cidadão e o reforço à cultura da solução democraticamente construída para os litígios. Consequentemente, diminuir-se-á a sobrecarga judiciária e, no futuro, da própria Defensoria Pública, uma vez que cidadãos conscientes e democraticamente amadurecidos por educação em direitos possuem maior chance de resolver seus problemas por si.
Enfim, antes da busca de qualquer outro “meio heterocompositivo não obrigatório”, defensorar é a procura pela Justiça consensual democraticamente construída, a única realmente capaz de emancipar o cidadão com a retomada do seu poder de definir seus próprios caminhos, educando-o e conscientizando-o de seus direitos.
Maurilio Casas Maia é Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-Graduado lato sensu em Direito Público: Constitucional e Administrativo; Direitos Civil e Processual Civil. Professor de carreira da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Defensor Público (DPE-AM). Email: mauriliocasasmaia@gmail.com A Foto é da Página SP Invisível que pode ser melhor conhecida clicando aqui.
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