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16 de Junho de 2024
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    Lei da Mordaça : Inconstitucionalidade

    há 14 anos

    Por Fernando Capez*

    Com o intuito de tornar expressa a responsabilidade de membros do Ministério Público que ingressam com “ações temerárias”, ou com “manifesta intenção de promoção pessoal” ou “visando perseguição política”, o Projeto de Lei n. 265
    /2007, apelidado de “Lei da Mordaça”, de autoria do deputado Paulo Maluf, propôs algumas modificações nas Leis n. 4.717, de 29 de junho de 1965; 7347, de 24 de julho de 1985 e 8.429, de 2 junho de 1992.

    Chama-nos especial a atenção a alteração sugerida no art. 19 da Lei de Improbidade, ao prever a configuração de crime no oferecimento de representação por ato de improbidade ou a propositura de ação contra agente público ou terceiro beneficiário, quando o autor o sabe inocente ou pratica o ato de maneira temerária , cuja pena é de detenção de seis a dez meses e multa.

    Muito embora a Lei 8.429/92 já contemplasse aludida penalidade, houve ampliação do dispositivo legal, de molde a considerar também criminosa a propositura de ação ou representação, pelo Promotor ou Procurador, quando reputada temerária .

    Tal expressão equívoca e genérica compactuar-se-ia com o perfil do Estado Democrático de Direito, delineado pela Constituição da República, do qual emana o princípio da reserva legal?

    Indubitavelmente, estamos diante de uma estarrecedora violação ao sobredito princípio, uma vez que este impõe que a descrição da conduta criminosa seja detalhada e específica, não se coadunando com típicos genéricos, demasiadamente abrangentes. O deletério processo de generalização estabelece-se com a utilização de expressões vagas e sentido equívoco, capazes de alcançar qualquer comportamento humano e, por conseguinte, aptas a promover a mais completa subversão no sistema de garantias da legalidade. De nada adiantaria exigir a prévia definição da conduta na Lei se fosse permitida a utilização de termos muito amplos. A garantia, nesses casos, seria meramente formal, pois, como tudo pode ser enquadrado na definição legal, a insegurança jurídica e social seria tão grande como se lei nenhuma existisse.

    É o que ocorre com o emprego da expressão “de maneira temerária”. Trata-se de verdadeira carta branca conferida aos processados por ato de improbidade visando à punição dos Promotores e Procuradores, sob o vago argumento da temeridade da ação, quando, na realidade, sabemos que o Parquet está autorizado a propô-la, mesmo não havendo um juízo de certeza, em decorrência do velho brocardo jurídico, in dubio pro societate .

    Por força dessa vagueza conceitual, que abarca uma série infindável de condutas, sem nenhum limite material, o preceito legal deve ser considerado inconstitucional.

    No entanto, a grave violação à ordem jurídica não pára por aí.

    A situação gera, ainda, um maior estarrecimento quando se constata que o alvo da Lei é atingir e engessar a atuação de uma instituição que tem como missão constitucional precípua zelar pela ordem democrática.

    Com efeito. O art. da CF consagrou o perfil político-constitucional do Estado brasileiro como o de um Estado Democrático de Direito, no qual há um compromisso normativo com a igualdade social, material, real e não apenas formal, como no positivismo que dominou todo o século XIX. Dentre os objetivos fundamentais da Carta Magna está o da eliminação das desigualdades sociais, erradicação da pobreza e da marginalização (CF, art. , III). No art. 37, caput , o Texto Magno garante a todos o direito a uma administração pública proba, assegurando os princípios da eficiência, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, dentre outros, dado que o rol não é taxativo. Esse mesmo artigo, em seu § 4º, determina o rigoroso combate à improbidade administrativa, a qual, não raro, vem acompanhada de crimes contra o patrimônio público.

    Dentro desse cenário, o Ministério Público surge como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (CF, art. 127). O caráter permanente e a natureza de suas funções levam à conclusão de que se trata de um dos pilares do Estado Democrático de Direito, em cuja atuação independente repousam as esperanças de uma sociedade justa e igualitária.

    Desse modo, toda e qualquer interpretação relacionada ao exercício da atividade ministerial deve ter como premissa a necessidade de que tal instituição possa cumprir seu papel da maneira mais abrangente possível.

    Não é por outra razão que seus membros podem ser classificados como agentes políticos e têm plena liberdade funcional para atuar, desempenhando suas funções com prerrogativas e responsabilidades próprias, estabelecidas na Constituição e em leis especiais (leis orgânicas). Encontra-se, portanto, o Parquet num regime jurídico distinto de responsabilidade, dado o importante papel que lhe foi conferido pela própria Constituição da República.

    Nesse contexto, punir criminalmente aquilo que se considera genérica e subjetivamente como a propositura de ações temerárias constitui grave inibição ao dever constitucional do Ministério Público de zelar pela ordem democrática. Sendo os olhos e o longa manus da sociedade, suas ações não podem ser arbitrariamente engessadas, sob pena de se estar cerceando e cegando a própria coletividade, situação esta só compactuada pelos regimes ditatoriais.

    Um Ministério Público acuado e constrangido, em sua atuação, representa a ruptura de uma das vigas mestras na qual se escora o Estado Democrático de Direito, pois somente instituições independentes podem validamente cumprir a sua missão constitucional de zelar pelo bem comum.

    *Fernando Capez - é Procurador de Justiça licenciado e Deputado Estadual. Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela USP e doutor pela PUC/SP. Professor da Escola Superior do Ministério Público e de Cursos Preparatórios para Carreiras Jurídicas. Autor de várias obras jurídicas. www.fernandocapez.com.br - http://twitter.com/FernandoCapez







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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/lei-da-mordaca-inconstitucionalidade/2149591

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