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17 de Junho de 2024

Não julgueis

há 9 anos

No julgueis

Por André Peixoto de Souza

Encerrada a instrução, e não havendo mais provas a produzir, os autos foram conclusos para sentença. Alguns dias depois a decisão foi publicada. Possivelmente uma das partes recorreria, e um novo ou complementar julgamento se daria.

Julgamento. Essa é a nossa lida, essa é a nossa vida. Acusamos, defendemos, opinamos, e todos os áudios, vídeos e textos reunidos num “caderno” acabam sobre a mesa do Magistrado, para… julgar: bater o martelo em favor ou desfavor de uma das partes, convencido dos argumentos e provas postos no processo físico ou eletrônico.

O Juiz, vocacionado ou não, estudou muito para acertar as questões do concurso público, e foi empossado, revestindo-se de Estado. E, sendo o Estado-Judiciário, detém poder sobre as partes conflituosas – os jurisdicionados. O Juiz tem o poder de dizer quem tem razão – tendo ou não razão – e condena, e absolve. Imparcial (?), como num passe de mágica define o futuro de pessoas (ou, melhor dizendo, a consequência de seus atos ou omissões). No Tribunal do Júri há uma leve diferença: o poder é deslocado para o povo – o “júri” – composto por cidadãos pares das próprias partes do processo: vítima/sociedade e acusado. Mas ainda assim há poder de dizer o direito, de acordo com o que se ouve (e com o que se vê) em plenário.

Seja como for, o jurisdicionado se põe diante de um trono de julgamento e “as verdades” que emanam do processo definem o seu futuro, a sua sentença, dita por um ser humano tal como ele próprio, que se encontra num patamar elevado de razão prática pois que tem o poder de decidir sobre a vida de seu par. Estado em Poder Judiciário julgando jurisdicionados… Mas, no fim, pessoas julgando… pessoas!

Sempre existiram Juízes. Mas sempre causou incômodo o ato de uma pessoa julgar [oficialmente] outra pessoa. Numa pergunta sarcástica: quem você pensa que é para me julgar? Hoje em dia, uma nomeação publicada em Diário Oficial revela tamanho poder, capaz de responder friamente a essa maldosa pergunta.

O ato de julgar e de “salvar”. Muitos se arrepiam com o termo “transformação”, pois está no centro da proposta revolucionária marxista. Não há que se arrepiar! Já estava no centro de um discurso muito mais poderoso: civilizatório e duplo-milenar! E qual é o maior poder da justiça, senão o poder de transformar os sujeitos? O (um) julgamento não merece ser friamente dirigido contra alguém que infringiu a lei. (Cabe lembrar que, muitas vezes, a lei também é tola!). Mais do que julgar e condenar, convém ensinar e salvar: trazer o jurisdicionado às boas regras da sociedade. De que adianta o ato vingativo de depositar o condenado nas fétidas escolas do crime: as penitenciárias? Isso não salva; não transforma ninguém! (e, se transforma, o faz para pior).

Pessoas que julgam podem estar distantes da realidade sofrida de quem é julgado. Senso comum: processo é sofrimento, aflição, angústia. E esse tema – pura alma humana! – não passa em branco no livro que constitui nossa cultura. O ensinamento bíblico – que, queiramos ou não, consagra a nossa civilização ocidental judaico-cristã e o nosso conjunto de valores morais, comportamentais e até mesmo jurídico-políticos –, assim se coloca, a respeito dos julgamentos humanos: Mateus 7, 1-2: Não julgueis, para que não sejais julgados. Pois com o critério com que julgardes, sereis julgados; e com a medida que usardes para medir a outros, igualmente medirão a vós. A máxima se repete em Lucas 6, 37 e 41 (Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. (…) Por que reparas no cisco que está no olho do teu irmão e não percebes o tronco que está no teu próprio olho?). Essa premissa retorna em outros inúmeros versículos do texto sagrado.

Mas o preceito-clímax de toda a exegese cristã parecer estar contido na passagem descrita por João 8, 7 (Porque insistiram na pergunta, Ele se levantou e lhes disse: ‘Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro a lhe atirar uma pedra’). A “defesa” de Cristo perante a multidão que desejava apedrejar a adúltera rendeu, na história, teses teológicas e jurídicas impecáveis. Maria Madalena era uma mulher pagã que não respeitava preceitos judaicos (a Lei de Moisés) e que por isso foi acusada pelo povo (escribas e fariseus). Mas o Juiz da ocasião – porque competente para julgar, vez que “o processo” a Ele se dirigiu (cf. João 8, 3-6)– deu a sentença salvadora, após devolver a constrangedora problemática aos seus acusadores: vai-te, e não peques mais (João 8, 11). E essa mulher se tornou um dos pilares de sustentação do cristianismo arcaico. Desprezada e marginalizada, converteu-se em sujeito ativo da história!

Seja para “retribuir”, seja para “distribuir”, a justiça que se faz pelo martelo do homem é e sempre será falha. Perfeita, jamais! Imparcialidade? Expressão de que se deve desconfiar. A história prova. E qualquer hermenêutica moderna se convence rapidamente de que não há imparcialidade no ser humano – e o Juiz não mais é uma divindade!

Quem leu até aqui fará a pergunta óbvia: mas então? Como ficamos? O que fazer? Destituir os Juízes? A resposta evidente é a de que ainda necessitamos de Juízes! Mas o argumento da resposta vem no sentido de que estamos absortos num círculo vicioso de: 1) representação política; 2) elaboração e execução de leis; 3) controle de respeito às leis e julgamento das infrações por interpretação das leis e dos fatos. No fim das contas, essa crítica – Não julgueis! – não se dirige imediatamente aos Juízes, e sim aos cidadãos que fazem leis (e que leis ruins!), ou, antes deles, àqueles que decidem a representação política (nós, eleitores!). É problema crônico e sistêmico: através das ideologias e da permanente desconfiança sobre juristas e políticos e seu pretenso poder de dizer o direito chegamos à metástase do Estado de Direito.

Fonte: Canal Ciências Criminais

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5 Comentários

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Carlos Alberto Savane
8 anos atrás

Excelente, artigo, a situação realmente está num ponto complexo.
...
E como o autor disse:
...
É problema crônico e sistêmico: através das ideologias e da permanente desconfiança sobre juristas e políticos e seu pretenso poder de dizer o direito chegamos à metástase do Estado de Direito.
...
Sds, continuar lendo

“Não julgueis segundo a aparência, mas julgai segundo a reta justiça.” (João 7:24)

Penso que este versículo bíblico é suficiente para se entender que para se fazer justiça tem que haver um julgamento:
"Fazer justiça e juízo é mais aceitável ao Senhor do que sacrifício". (Pv 21:3)

Para distinguir o certo do errado temos que fazer julgamento:
"Então voltareis e vereis a diferença entre o justo e o ímpio; entre o que serve a Deus, e o que não o serve" (Ml 3:18)

Julgar é o mesmo que formar juízo acerca de, observar, pensar, ter em conta, supor, ponderar, o mesmo que examinar, provar, avaliar:
"Amados, não creiais a todo espírito, mas provai se os espíritos são de Deus; porque já muitos falsos profetas se têm levantado no mundo." (1 João 4:1)

"E aconteceu que, no outro dia, Moisés assentou-se para julgar o povo; e o povo estava em pé diante de Moisés desde a manhã até a tarde." (Êxodo 18:13)

Se perdermos o senso critico então somos levados por todo o vento de doutrinas… exatamente o que estamos a ver: os "espertalhões" tentam calar a boca de quem diz a verdade!

Hoje é proibido proibir exatamente por causa do famoso amor de um "novo" evangelho (humano) que esta a ser apregoado.

É-nos proibido julgar, (cristãos) gratuitamente, ou seja quando avaliamos (julgamos) os erros ou maneiras dum ser humano, reparar nos defeitos do outro, ou no que veste ou come…

Julgar as pessoas, o seu coração, intenções etc. (cabe a Deus):
“E porque reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho? Ou como dirás ao teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão.” (Mt 7.3-5) continuar lendo

Daniele Précoma
8 anos atrás

André Peixoto de Souza, artigo muito bom, reverbera o que habita na minha consciência. Assim, acredito que a única solução possível entre as partes é a conciliação, não a imposta, mas sim aquela que sai da alma lavada das partes após a catarse de sentimentos, após serem ouvidas pela outra parte, terem recebido atenção à sua dor, após gerar a empatia e a sensibilidade do outro, até o arrependimento. Sei que nem sempre é possível, mas onde houver possibilidade é com isso que pretendo trabalhar, na solução, não no problema. Na evolução da forma como nós seres humanos somos capazes de resolver nossos próprios problemas, não choramingando ao Estado que não é capaz de dar conta do recado. continuar lendo

Não sou advogado; muito menos juiz, mas sou um entusiasta do direito, por isto me pergunto e pergunto. Como um juiz pode fazer justiça se as leis (em sua maioria) não são justas? Como sabemos, uns poucos legisladores têm alguma noção de lei. Pouquíssimos são os deputados ou senadores originalmente advogados, promotores ou policiais. Isto quando não se unem aos espertalhões e desonestos de plantão para elaboração de leis apenas para se beneficiarem e ao juiz o que cabe? Apenas interpretar a lei e fazê-las cumprir. Dentro das conjecturas do texto a única citação que que julguei útil, afora as citações bíblicas, apesar de saber ser utopia, foi quanto o autor escreveu: "Alguns dias depois a decisão foi publicada"... Que sonho, Sr articulista. Sabemos que vários processos relativamente simples, após conclusos para sentença ficam anos, quando não, quinquênios esperando a boa vontade do Sr Meritíssimo Juiz para dar decisão final. Muitos idosos morrem esperando tal sentença que nunca vem. Que tal, pelo menos, o CNJ, se é que tem autoridade para tal, determinar que os processos sejam, de alguma forma, priorizados quer sejam por número de páginas, valor da causa, importância para a sociedade ou, até, mesmo pela idade do ofendido (algum parâmetro haverá de ter) em leves, médios e graves e determinar ao juiz responsável um prazo para conclusão final; como é o caso dos inquéritos e outros... Com a palavra o judiciário. continuar lendo