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17 de Junho de 2024
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    OAB repete 1964 e se torna a coveira da democracia

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    A Ordem dos Advogados do Brasil apresentou nesta segunda-feira pedido de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff. No afã de cavar seu espaço nos livros de história, apresentou uma denúncia de 40 páginas cuja epígrafe invoca um trecho da peça que defenestrou Fernando Collor da Presidência da República.

    Sabe-se que o impeachment de Collor foi obra também da OAB. Arrogando-se de uma espécie de legitimação histórica e moral, Cláudio Lamachia, atual presidente da Ordem, ancorou-se no capital político construído por Marcello Lavenére, então presidente e signatário da acusação contra Collor, para resgatar o protagonismo de uma época onde o prestígio da Ordem foi fundamental para a legitimação do processo como um todo.

    Lavanére, entretanto, para o profundo descontentamento de Lamachia, ainda está na ativa; lúcido e provocador, vem se mostrando uma verdadeira pedra no sapato do atual mandatário e suas vãs aspirações em entrar para a história pela janela do oportunismo. Não foram poucas as vezes que o ex-presidente declarou à imprensa que, diferentemente de vinte anos atrás, não há nada que incrimine a presidenta Dilma, afirmando ainda que a conjuntura do início da década retrasada possuía uma atmosfera totalmente diferente de agora. Fazendo uso do direito à voz no Conselho Federal, rechaçou com vigor o impeachment e tachou de golpistas os conselheiros que avalizaram a aventura antidemocrática capitaneada por Lamachia. E não esteve sozinho. Da galeria de ex-presidentes somaram-se a ele valorosas dissidências como Cezar Britto e José Roberto Batochio.

    Lamachia, a propósito, aderiu com entusiasmo à retórica vacilante do impeachment. Em recente entrevista à Folha de S. Paulo, afirmou que não poderia se tratar de golpe em razão do Supremo Tribunal Federal ter regulamentado o seu rito. Talvez seja ele um entusiasta ainda maior de ativismos judiciais, uma vez que o STF foi provocado não para analisar o mérito do impedimento, mas sim para se manifestar a respeito de questões procedimentais. Não poderia, portanto, afirmar que deixaria de decidir acerca de uma questão formal e ritualística sob a alegação de não ver fundamento constitucional para o pedido de impeachment – até em razão de não haver qualquer requerimento nesse sentido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 378 ajuizada pelo PC do B.

    Em outra lambança, Lamachia não conseguiu ser claro em entrevista concedida à BBC quanto ao específico crime de responsabilidade que a presidenta teria cometido. Além de não apontá-lo, veio com um petardo que garantiu seu lugar no rol napoleônico dos besteiróis que, afora tempos de crise e oportunismo, não são ditos sequer via sussurros: é pelo “conjunto da obra” que Dilma estaria sendo processada, com todas as infinitas interpretações que pode ser dada a esta afirmação.

    A primeira e mais elementar lição do direito penal é que acusações genéricas, tais quais estas, que são feitas pelo “conjunto da obra”, são ineptas por violarem o direito ao contraditório e à ampla defesa, havendo expressa designação legal de que denúncias assim devem ser rejeitadas (artigo 41 do Código de Processo Penal). Se alguém vai se defender de alguma acusação precisa, no mínimo, saber com detalhes do que está sendo acusado. Lamachia, contudo, não viu problemas em se alicerçar “na vida, no universo e tudo mais” para imputar à presidenta Dilma um crime de responsabilidade que nem ele soube apontar.

    Ademais, o nível panfletário que tomou conta das discussões tanto do Conselho Federal como nas seccionais foi sublimado de maneira fiel nesse atabalhoado pedido impeachment, que traça um paralelo entre as delações de Delcídio e Cerveró, passando pelas chamadas pedaladas fiscais e descambando nas renúncias fiscais feitas pelo governo em favor da FIFA por ocasião da Copa do Mundo de 2014.

    Em relação a este último ponto, a peça dedica cinco páginas a uma pavoneada demonstração de conhecimento sobre leis e disposições orçamentárias para no fim descobrir a roda: sim, foi um erro político crasso o governo ter abraçado à narrativa dos megaeventos internacionais levada à frente pela FIFA. Mas não se trata de crime. As isenções fiscais, como a própria petição reconhece, são uma previsão da Lei nº 12.350/2010, a Lei Geral da Copa, e já são objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Procuradoria-Geral da República. Houve sim o desrespeito à legislação orçamentária (e isso foi amiúde denunciado à época), mas não há tipificação penal da matéria. Elencar isto como razão para o impeachment é de um misto constrangedor de ignorância e irresponsabilidade.

    Ainda, são evidentes os esforços em conferir uma moldura penal às pedaladas por meio do abraço desesperado à reprodução abstrata do artigo 85 da Constituição e das disposições da Lei nº 1.079/50 somadas a conceitos genéricos tais quais os de “probidade administrativa”, “atentado à Constituição” e “desrespeito à lei orçamentária” sem haver, contudo, a indicação de um tipo penal específico que por meio do simples exercício mecânico de subsunção do fato à norma ou até mesmo de uma interpretação sem requintes preveja a conduta como crime. Inexiste in dubio pro societate (postulado contrário ao in dubio pro reo) em estados democráticos de direito, o que acarreta na inexistência de tipificação abstrata em normas penais – e eis outra lição elementar que Lamachia parece ter esquecido: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Ainda neste ponto, a denúncia chega a qualificar a CPMF como “malsinada”, isso um dia após o presidente ter dito que o posicionamento da OAB seria técnico e sobretudo alheio a qualquer dimensão política (como se fosse possível escapar dela).

    A fundamentação do impeachment demonstrou também uma preocupante simpatia com aquela que é uma das mais controversas características do juiz Sérgio Moro: a tara ensandecida por prisões sumárias e antecipações de culpa. A Lei nº 12.850/2013, que regulamenta as delações premiadas, coloca em seu artigo , § 16º, que o juízo de valor feito sobre as colaborações deve levar em consideração o conjunto probatório, de maneira que é obrigatória sua confirmação no decorrer do processo por meio de outras provas. Caso contrário, a prova não se sustenta como fundamento condenatório.

    O combate contra juízos sumários de condenação, desrespeito ao contraditório, linchamentos morais e flexibilização da presunção de inocência deveria ser uma das reservas morais dos grandes embates da advocacia. Não há como se entrincheirar na defesa e ser a favor da renúncia ou diminuição de garantias constitucionais de cidadãos e cidadãs e potenciais clientes. A OAB, todavia, último bastião contra os frequentes arroubos absolutistas do Estado, resolveu agir com um preocupante casuísmo ao alicerçar o pedido de impeachment nas delações de Cerveró e Delcídio, feitas em processos ainda em curso cuja produção de provas está longe de ser exaurida.

    A postura vacilante do atual presidente em defender o impeachment conforme o roteiro de chavões midiáticos evidencia o açodamento com que foi construído o posicionamento da Ordem sobre o assunto. Ao procurar dividir a pá com os musos do impeachment Michel Temer e Eduardo Cunha – que em declaração recente à Folha de S. Paulo, tachou a Ordem de retardatária e disse que não vai dividir pá nenhuma -, a OAB aspira posar enquanto cava, de forma destrambelhada, a cova da democracia e assim garante o lugar de Cláudio Lamachia na história - mas não nos mesmos capítulos que Evandro Lins e Silva e Sobral Pinto, monstros sagrados da advocacia que se posicionaram de forma intransigente em defesa da democracia no decorrer dos anos de chumbo, mas sim nos rodapés onde se encontram nomes como Povina Cavalcanti, presidente da Ordem em 1964 quando a mesma, docilmente, aderiu ao golpe “em defesa da ordem jurídica e da Constituição”.

    Gustavo Henrique Freire Barbosa é Advogado e professor substituto na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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