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27 de Maio de 2024
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    Prisão civil: Ingo Sarlet, Gilmar Mendes, Häberle e o Estado Humanista de Direito

    há 15 anos

    LUIZ FLÁVIO GOMES ( www.blogdolfg.com.br )

    Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

    Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Prisão civil: Ingo Sarlet, Gilmar Mendes, Häberle e o Estado Humanista de Direito. Disponível em http://www.lfg.com.br 22 junho. 2009.

    Assista aos Comentários do Prof. Luiz Flávio. Clique Aqui

    A notícia (Conjur, Lilian Matsuura, 11.06.09): "O Supremo Tribunal Federal foi contraditório ao definir que a prisão de depositário infiel é ilegal". A possibilidade de prisão no caso de prisão por dívida está expressamente prevista no inciso LXVII , do artigo da Constituição Federal . No entanto, os ministros preferiram aplicar a proibição prevista em tratados internacionais de Direitos Humanos, como o Pacto de São José da Costa Rica, colocando-os acima da própria Constituição .

    A contradição, de acordo com a tese defendida pelo constitucionalista Ingo Wolfgang Sarlet , em palestra no XXIX Congresso Brasileiro de Direito Constitucional, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, em São Paulo, está no fato de que o Supremo declarou os tratados internacionais ratificados pelo Brasil têm hierarquia supralegal. Isto é, estão acima da legislação infraconstitucional e abaixo da Constituição Federal .

    Ingo Sarlet é coordenador de pós-graduação em Direito e professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Doutor em Direito pela Ludwig Maximillians Universität München (Alemanha), tem cursos e pesquisas na Alemanha e nos Estados Unidos. Atua especialmente nas áreas de Direito Constitucional e Teoria dos Direitos Fundamentais, tendo como principal linha de pesquisa a eficácia e efetividade dos direitos fundamentais no direito público e privado.

    "A prevalência da Constituição possibilitaria a prisão. Nesse caso, o Supremo está afirmando a supraconstitucionalidade dos tratados", afirma o professor da PUC-RS, ao qualificar a decisão como"perigosa". Para Sarlet, impedir o legislador ordinário de criar qualquer prisão de depositário infiel significa esvaziar o mandamento constitucional. O Supremo teria feito isso ao entender que, como o dispositivo constitucional que prevê a prisão do depositário infiel exige regulamentação por lei, essa lei não pode ser feita por força do tratado internacional. Sarlet, como o Supremo, considera que os tratados de Direitos Humanos estão no mesmo nível que a Constituição .

    Ingo Sarlet explica que considerar supralegal os pactos internacionais foi uma decisão de política judiciária, pragmática, para impedir o alargamento da competência do Supremo. Apenas os ministros Celso de Mello e Ellen Gracie votaram pela elevação dos tratados à hierarquia constitucional.

    De forma indireta o próprio presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, reconhece essa possibilidade. "Eu mesmo estimulei a abertura dessa discussão, mas as consequências práticas da equiparação vão nos levar para uma situação de revogação de normas constitucionais pela assinatura de tratados", disse o ministro durante o julgamento do Habeas Corpus 87.585, sobre prisão de depositário infiel, que aconteceu em dezembro de 2008.

    Posição do Min. Gilmar Mendes: Estado Constitucional Cooperativo

    Em artigo publicado pela Consultor Jurídico , em abril de 2009, o ministro Gilmar Mendes explica o seu posicionamento, com argumentos diversos do apresentado pelo constitucionalista Ingo Sarlet. Segundo ele, até 2008, o Supremo entendia que os tratados internacionais encaixavam-se no mesmo nível hierárquico das leis ordinárias. No julgamento de dois Recursos Extraordinários (RE 349.703 e RE 466.343), a corte concluiu "completamente defasada" essa jurisprudência.

    "Não se pode perder de vista que, hoje, vivemos em um 'Estado Constitucional Cooperativo', identificado pelo professor alemão Peter Häberle como aquele que não mais se apresenta como um Estado Constitucional voltado para si mesmo, mas que se disponibiliza como referência para os outros Estados Constitucionais membros de uma comunidade, e no qual ganha relevo o papel dos direitos humanos e fundamentais", escreveu.

    A tendência, afirma, é o enfraquecimento dos limites entre interno e o externo, através dos quais prevalece o direito comunitário sobre o direito interno. "Nesse contexto, mesmo conscientes de que os motivos que conduzem à concepção de um Estado Constitucional Cooperativo são complexos, é preciso reconhecer os aspectos sociológico-econômico e ideal-moral como os mais evidentes", diz o ministro, com base no que pensou Peter Häberle.

    Essa seria uma forma de dar máxima eficácia às normas constitucionais que protegem a cooperação internacional e para a proteção dos direitos humanos como garantia da dignidade da pessoa humana.

    Nossa posição: lendo a respeitada opinião do eminente Professor Ingor Sarlet fiquei com a impressão de que ele ainda não mergulhou na terceira onda do Estado de Direito, centrado na sua internacionalização. A primeira onda (século XIX) vem marcada pelo Estado de Direito legalista; a segunda é o Estado de Direito constitucionalista (nascido depois da Segunda Guerra Mundial, no nosso entorno cultural); a terceira configura o Estado de Direito internacionalista (que nasceu em 1945 com a Carta da ONU). As duas últimas ondas têm como parâmetro referencial a positivação, o gozo e a efetivação dos direitos humanos fundamentais e das suas garantias. A nossa síntese (Estado Humanista de Direito) abarca tanto a onda constitucionalista como a internacionalista.

    A prisão civil do depositário infiel pode ser citada como exemplo de conflito entre um tratado de direitos humanos e a Constituição brasileira . O art. 7º, 7, da CADH (assim como o art. 11 do PIDCP) só permite a prisão civil do alimentante (cf . GOMES, L.F. e MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Comentários à convenção americana sobre direitos humanos, 2. ed., São Paulo: RT, 2009, p. 49 e ss). A CF , art. , inc. LXVII , prevê a prisão civil do alimentante e do depositário infiel. Como se vê, o conflito entre os tratados internacionais e a CF é patente.

    O Min. Gilmar Mendes (no RE 466.343-SP) firmou o entendimento de que tais tratados internacionais possuem, em regra, valor s (no Brasil) upralegal. Ou seja: valem mais do que a lei ordinária e menos que a Constituição Federal . Essa hoje é a posição majoritária no STF.

    Quando há conflito entre a lei ordinária e o tratado internacional de direitos humanos, desde que este seja mais favorável, vale o tratado (que conta com primazia, seja em razão da sua posição hierárquica superior, seja em razão do princípio pro homine). Pouco importa se o direito ordinário é precedente ou posterior ao tratado. Em ambas as hipóteses, desde que conflitante com o DIDH, afasta-se a sua aplicabilidade (sua validade). O tratado possui "eficácia paralisante" da norma ordinária em sentido contrário.

    A incompatibilidade vertical material descendente (entre o DIDH e o direito interno) resolve-se em favor da norma hierarquicamente superior (norma internacional), que produz "efeito paralisante" da eficácia da norma inferior (Gilmar Mendes). Não a revoga (tecnicamente), apenas paralisa o seu efeito prático (ou seja: sua validade). No caso da prisão civil do depositário infiel, todas as normas internas (anteriores ou posteriores à CADH) perderam sua eficácia prática (isto é, sua validade). Alguns votos (no STF) chegaram a mencionar a palavra revogação (cf . RE 466.343-SP e HC 87.585-TO). Tecnicamente não é bem isso (na prática, entretanto, equivale a isso). A norma inválida não pode ter eficácia (aplicabilidade), logo, equivale a ter sido revogada.

    Situação diversa: e quando os tratados internacionais conflitam com a Constituição brasileira , isto é, o que acontece quando a incompatibilidade vertical material (ascendente) ocorrer entre o DIDH e a CF? Qual norma prepondera? Como podemos dirimir esse conflito?

    Há três clássicos critérios de solução das antinomias normativas. São eles: (a) hierárquico: norma superior revoga a inferior; (b) especialidade: lei especial derroga a lei geral; (c) posterioridade ou critério cronológico: lei posterior revoga a anterior. O conflito entre normas de direitos humanos, em regra, segue também o critério da hierarquia. Ou seja: em princípio vale a regra constitucional (superior), em detrimento da regra internacional (inferior). Essa é a regra geral, que fica excepcionada quando a norma internacional é mais favorável.

    O Professor Ingor Sarlet defendeu sua posição de acordo com a regra geral (em atenção ao princípio hierárquico). Ocorre que em matéria de direitos humanos (ou seja: no Estado Humanista de Direito) essa regra cede diante de várias outras.

    Por quê? Porque em matéria de direitos humanos o critério da hierarquia não é absoluto e deve ser conjugado com outros critérios, destacando-se: (a) o da vedação do retrocesso, ou seja, uma norma nova não pode retroceder ou diminuir direitos conquistados em norma anterior (fala-se aqui em efeito cliquê da lei anterior mais protetiva); (b) princípio "pro homine" (que conduz ao diálogo entre as várias fontes normativas). As fontes dialogam (ou seja: admitem duas lógicas).

    Nesse sentido é a tese de doutoramento de Valerio Mazzuoli, sustentada na UFRS (em novembro de 2008), onde ficou proclamado o seguinte: "Similarmente ao que já existe em outras disciplinas (como no Direito do Trabalho, que conhece o princípio da primazia da norma mais favorável ao trabalhador), aqui se trata"de que a norma de direitos humanos que melhor proteja a pessoa prevaleça sobre outra de igual, inferior ou até mesmo de hierarquia superior e seja aplicada naquilo que for mais protetora do direito ou dos direitos fundamentais do ser humano"[ 1 ] . Isto significa, como destaca Humberto Henderson, que" a tradicional regra da hierarquia cederia frente ao caráter mais favorável de outra norma, mesmo que de hierarquia inferior, no caso em que melhor proteja o ser humano "[ 2 ] . Nem se diga que haveria um problema de" ilegalidade "em se aplicar uma norma inferior em detrimento de outra hierarquicamente superior, pois é a própria norma superior (v.g., a norma convencional em causa, na sua" cláusula de diálogo "; ou até mesmo a norma constitucional, como o art. , inc. II , da Constituição brasileira de 1988, que expressamente consagra o princípio internacional pro homine) que exige que se aplique, no caso concreto, a norma mais favorável ao ser humano. Tal pode se dar, segundo Henderson," entre duas normas de fonte internacional ou uma norma internacional com uma nacional, em virtude do que consagram os próprios tratados internacionais de direitos humanos "[ 3 ].

    No seu (didático) voto (HC 87.585-TO) o Min. Celso de Mello dividiu o Direito Internacional em dois blocos: (a) tratados de direitos humanos e (b) outros tratados internacionais (mercantil, v.g.). Os primeiros contariam (de acordo com sua visão) com status constitucional. Os segundos não (valem como lei ordinária, salvo disposição em sentido contrário).

    No que diz respeito aos primeiros (tratados de direitos humanos) uma outra fundamental distinção foi feita (por ele): (a) o tratado não restringe nem elimina qualquer direito ou garantia previsto na CF brasileira (explicita-o ou amplia o seu exercício); (b) o tratado conflita com a CF (o tratado restringe ou suprime ou impõe modificação gravosa ou elimina um direito ou garantia constitucional).

    Quando o tratado é mais protetivo (que o direito interno), a validade da norma internacional é indiscutível (porque ela está complementando a CF , especificando um direito ou garantia ou ampliando o seu exercício). Nesse sentido : RHC 79.785 , rel. Min. Sepúlveda Pertence (assim como voto do Min. Celso de Mello no RE 466.343-SP e no HC 87.585-TO). Todas as normas internacionais que especificam ou ampliam o exercício de um direito ou garantia constitucional passam a compor (de acordo com a visão do Min. Celso de Mello) o chamado" bloco de constitucionalidade "(que é a somatória daquilo que se adiciona à Constituição , em razão dos seus valores e princípios).

    Na segunda hipótese (o tratado restringe ou suprime ou impõe modificação gravosa ou elimina um direito ou garantia constitucional ou, ainda, é mais aberto ou mais flexível que o direito interno) ficou proclamada (no voto do Min. Celso de Mello) a primazia da CF .

    Eis um exemplo: prisão civil do alimentante. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7º, 7) diz que ninguém deve ser detido por dívidas e que este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. Note-se que a exigência feita diz respeito à autoridade judiciária competente. Na Constituição brasileira (art. 5º, inc. LXVII), além desse requisito (que vem contemplado no inc. LXI), aparecem dois outros: (a) inadimplemento voluntário e (b) inescusável de obrigação alimentícia. Como se vê, a CF brasileira é muito mais exigente (logo, nesse ponto, mais favorável ao ius libertatis). Nessa parte ela prepondera sobre a Convenção Americana. No que diz respeito à prisão do depositário infiel, é a Convenção que prepondera sobre a Constituição brasileira . Ou seja: sempre deve ter incidência a norma mais favorável. Aplica-se sempre a norma mais favorável ao exercício do direito ou da garantia.

    Nossa posição: dentro do Estado Humanista de Direito o conflito entre um tratado internacional de direitos humanos e a CF deve ser resolvido pela lógica e orientação dada pelo princípio pro homine. Há três clássicos critérios de solução das antinomias normativas (hierárquico -norma superior revoga a inferior-, especialidade - lei especial derroga a lei geral - e cronológico ou posterioridade - lei posterior revoga a anterior). Vale, em princípio, o critério hierárquico (a Constituição está acima dos tratados, consoante a decisão do STF - RE 466.343-SP e HC 87.585-TO).

    Mas esse critério não é intransigente (não é absoluto). Porque em matéria de direitos humanos valem também outros critérios, destacando-se: (a) o da vedação do retrocesso, ou seja, uma norma nova não pode retroceder ou diminuir direitos conquistados em norma anterior (fala-se aqui em efeito cliquê da lei anterior mais protetiva); (b) princípio" pro homine "(que conduz ao diálogo entre as várias fontes normativas). Como diz Valerio Mazzuoli, as fontes dialogam (admitem duas lógicas).

    O Min. Celso de Mello a esse princípio (expressamente) não faz nenhuma referência. Mas é exatamente ele que está brilhando (como nunca) nas lições do Ministro.

    No plano material, quando se analisa o Direito dos Direitos Humanos, os três ordenamentos jurídicos que o contempla (CF , DIDH e legislação ordinária) caracterizam-se por possuir, entre eles, vasos comunicantes (ou seja: eles se retroalimentam e se complementam - eles" dialogam ").

    Em outras palavras, no plano material devemos partir da hierarquia entre as normas de Direitos Humanos, mas ela não é inflexível (absoluta). Por quê? Porque por força do princípio ou regra pro homine sempre será aplicável (no caso concreto) a que mais amplia o gozo de um direito ou de uma liberdade ou de uma garantia. Materialmente falando, portanto, não é o status ou posição hierárquica da norma que vale sempre, sim, o seu conteúdo (porque irá preponderar a que mais amplia o exercício do direito ou da garantia).

    Conclusão: no Estado Humanista de Direito (que é a soma do Estado constitucional com o Estado internacional de Direito) quando os tratados ampliam o exercício de um direito ou garantia, são eles que terão incidência (paralisando-se a eficácia normativa da regra interna em sentido contrário). Não se trata de" revogação ", sim, de invalidade. Todas as regras no Brasil sobre prisão civil do depositário infiel são inválidas, porque conflitantes com a CADH (art. 7º, 7) e o PIDCP (art. 11). O Direito internacional dos direitos humanos, favorável ao ser humano, possui eficácia paralisante (invalidante) das normas internas em sentido contrário. De outro lado, quando o DIDH conflita com a CF brasileira, restringindo o alcance de algum direito ou garantia, vale a CF. Prepondera, como se vê, sempre, o direito mais favorável (a norma mais favorável). Essa é a lógica (dialogal ou dialógica) do princípio" pro homine ". E trata-se de um diálogo de transigência (Valerio Mazzuoli), isto é, a CF transige diante do texto internacional mais favorável (por força do art. , § 2º , da CF).

    1. HENDERSON, Humberto. Los tratados internacionales de derechos humanos en el orden interno: la importancia del principio pro homine, cit., p. 93. No mesmo sentido, v. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, Direitos humanos, Constituição e os tratados internacionais: estudo analítico da situação e aplicação do tratado na ordem jurídica brasileira, São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, pp. 272-286.

    2. HENDERSON, Humberto. Los tratados internacionales de derechos humanos en el orden interno: la importancia del principio pro homine, cit., p. 93.

    3. HENDERSON, Humberto. Idem, ibidem.

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