Propriedade que descumpre função social não tem proteção constitucional
A propriedade rural, para cumprir sua função social, portanto, para ser constitucionalmente garantida, deve cumprir simultaneamente todos os requisitos previstos nos incisos do artigo 186 da Constituição
Uma das grandes questões trazidas pelo debate sobre a função social da propriedade está ligada à possibilidade de um instituto jurídico, sem que haja qualquer modificação da lei, mudar a própria natureza econômica. Houve inegavelmente uma mudança do substrato da propriedade, apesar das normas civis não terem se modificado, ao contrário, pois os códigos civis definem propriedade com o conceito liberal ainda hoje. O instituto jurídico da propriedade teve um rico desenvolvimento em um tempo relativamente curto, ocorrendo uma total mudança econômica e social sem que houvesse mudado consideravelmente sua definição jurídico-legislativa, ao menos sob o ângulo do direito civil[1]. Podemos perceber, assim, uma dupla possibilidade de evolução jurídica: a mudança da norma e a mudança da função. Para Karl Renner, a ciência jurídica deve estudar no presente de que modo isso ocorre, de que modo um condiciona o outro, com que regularidade ocorre.
O fato é que aos institutos jurídicos de uma época cabe cumprir funções gerais. Se considerarmos absolutamente todos os efeitos que um instituto jurídico exercita sobre a sociedade em seu complexo, as funções particulares se fundem numa única função social. Dessa maneira, podemos concluir, ainda de acordo com Karl Renner, que o direito é um todo articulado, determinado pelas exigências da sociedade, cujo ordenamento é dotado de caráter orgânico. Os institutos jurídicos, enquanto parte do todo, estão, por esse motivo, em uma relação de conexão mais ou menos estreita uns com os outros. Tais conexões não se travam apenas no complexo normativo, mas também em uma função. A natureza orgânica do ordenamento jurídico, assim, demonstra que todos os institutos do direito privado estão em conexão com o direito público, sendo que não podem ser eficazes e não podem ser compreendidos sem considerações de direito público. A propriedade é ineficaz sem o ordenamento jurídico à sua volta, sendo conformada pelas disposições de direito público[2].
Quando se fala em função social, não se está fazendo referência às limitações negativas do direito de propriedade, que atingem o exercício do direito de propriedade, não a sua substância. As transformações pelas quais passou o instituto da propriedade não se restringem ao esvaziamento dos poderes do proprietário ou à redução do volume do direito de propriedade, de acordo com as limitações legais. Se fosse assim, o conteúdo do direito de propriedade não teria sido alterado, passando a função social a ser apenas mais uma limitação. A mudança ocorrida foi de mentalidade, deixando o exercício do direito de propriedade de ser absoluto. A função social é mais do que uma limitação. Trata-se de uma concepção que se consubstancia no fundamento, razão e justificação da propriedade.
A função social da propriedade não tem inspiração socialista, antes é um conceito próprio do regime capitalista, que legitima o lucro e a propriedade privada dos bens de produção, ao configurar a execução da atividade do produtor de riquezas, dentro de certos parâmetros constitucionais, como exercida dentro do interesse geral. A função social passou a integrar o conceito de propriedade, justificando-a e legitimando-a. A função é o poder de dar à propriedade determinado destino, de vinculá-la a um objetivo. O qualificativo social indica que esse objetivo corresponde ao interesse coletivo, não ao interesse do proprietário. A função social corresponde, para Fábio Konder Comparato, a um poder-dever do proprietário, sancionável pela ordem jurídica. Desta maneira, há um condicionamento do poder a uma finalidade. A função social da propriedade impõe ao proprietário o dever de exercê-la, atuando como fonte de comportamentos positivos[3].
O artigo 186 da Constituição da República[4] especificou o sentido constitucionalmente conferido ao princípio da função social da propriedade, já previsto nos artigos 5º, XXIII e 170, III, dotando-o de conteúdo positivo mais preciso. A propriedade rural, para cumprir sua função social, portanto, para ser constitucionalmente garantida, deve cumprir simultaneamente todos os requisitos previstos nos incisos do artigo 186 da Constituição.
A utilização adequada dos recursos naturais, a preservação do meio ambiente e a observância da legislação trabalhista são, portanto, requisitos essenciais para o cumprimento da função social da propriedade. Nem poderia ser diferente, pois a valorização do trabalho humano é fundamento da ordem econômica constitucional (artigo 170, caput) e a defesa do meio ambiente é também princípio desta mesma ordem econômica (artigo 170, VI). A Constituição nada mais faz no artigo 186 que projetar espacialmente os fundamentos e princípios da ordem econômica na regulação da propriedade rural.
Deste modo, a função s...
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