Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
29 de Maio de 2024
    Adicione tópicos

    Responsabilidade dos sócios

    Publicado por Expresso da Notícia
    há 17 anos

    Dizem que a lei não é para ser lida, mas para ser entendida. Não se trata de desprestigiar a interpretação literal, que tem seu valor e sua razão de ser, e da qual não se pode afastar, porque é a primeira e fundamental premissa de qualquer raciocínio, pois não se conseguirá entender a lei, sem que sua leitura seja feita. O certo, porém, é, como diz JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, que “do exame literal do texto não resulta a solução de todos os problemas de interpretação” (O Direito – Introdução e Teoria Geral, Lisboa, Gulbenkian, 3a edição, 1987, p. 312), de modo a se precisar ir um pouco além.

    Não se reclama, de outro lado, que o entendimento da leitura se dê pela via da busca da vontade do legislador, pois, de longa data, firmou-se que a norma – e não só ela, mas qualquer texto literário – pede uma interpretação objetiva, desprezando-se o que teria sido o intento de seu autor, para se perquirir o que o texto representa em si, indo-se em busca do seu espírito. Essas premissas revelam-se pertinentes, de vez que existem dispositivos legais que só lidos podem conduzir a resultados absurdos, muito distantes do sentido e da razão de ser do preceito.

    Tomem-se como exemplo dois artigos de enorme alcance e de uso diuturno, um ainda em vigor, outro já não mais, porém, há pouco, aplicado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. O art. 50 do CC permite a desconsideração da pessoa jurídica, nos casos de abuso de sua personalidade ou confusão patrimonial, de modo a que se possa estender aos sócios os efeitos de certas obrigações. Por sua vez, o art. 10 do Decreto 3708 /19 coloca o sócio como responsável pessoal por obrigações contraídas em nome da sociedade, se agir com excesso de mandato ou com violação à lei ou ao contrato. As duas disposições reconhecem que a ficção da pessoa jurídica não é absoluta e cede diante da fraude, da afronta à lei, revelando quem por detrás da sociedade está. Mas cede a favor de quem?

    A resposta a essa indagação não prescinde, logicamente, da literalidade do preceito, mas requer que se alcance a finalidade que com ela se pretende atingir ou, na expressão de ASCENÇÃO, “o para quê duma lei”, sem o que não se detém a chave da exegese (p. 326).

    Dois acórdãos viram-se diante dessa questão, mas não entenderam de modo igual a razão de existir de cada uma das regras, chegando a conclusões radicalmente diversas.

    O STJ, julgando o recurso especial nº 35281, de Minas Gerais, deparou com a penhora de imóvel residencial pertencente a uma sociedade integrada por membros de uma mesma família (empresa familiar), no qual os sócios residiam. Esses, buscando safarem-se da constrição judicial, invocaram a desconsideração da personalidade jurídica, não logrando êxito, pois bem se entendeu que o instituto volta-se a beneficiar credores e não a proteger os sócios (Rel. RUY ROSADO DE AGUIAR, Revista do Superior Tribunal de Justiça, 73/261).

    A confusão patrimonial entre sócios e sociedade permitiria a invocação da regra, até porque essa desordem expõe os bens, deixando-os em evidência, a ponto de revelar a quem se prestam e, portanto, seus verdadeiros proprietários. Ocorre, porém, que a suposta literalidade não indica a razão de ser do preceito, dado ter sido direcionado em mão única, ou seja, não para desdizer o que revela o contrato social, mas para não deixar credores lesados por conta do artificialismo que o contrato é capaz de criar. Tanto é assim que a desconsideração da personalidade jurídica é exceção, que só encontra seu pressuposto diante do uso indevido e abusivo da pessoa jurídica, de modo que, se abuso não houver, a sociedade permanece como responsável única por suas obrigações.

    Não permitiria outra conclusão demanda entre sócias de sociedade que cessou suas atividades, ajustando-se essas, voluntariamente e por escrito, sobre a divisão das pendências. Ocorre que o Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão relatado por ENIO ZULIANI (apelação n. 218077-4/0, julg. 01.06.06), afastou a eficácia de documento, no qual uma das sócias se reconhecia devedora da outra, a pretexto de que não se declara a responsabilidade do sócio sem prévio exame das circunstâncias que justificariam romper a autonomia patrimonial que separa, do patrimônio da sociedade, os bens do sócio.

    Negou, com isso, força ao acordo firmado entre as partes sobre a divisão das dívidas da sociedade de que ambas faziam parte, porque o art. 10 do Decreto 3708 /19 só admite a responsabilidade pessoal dos sócios nas hipóteses de fraude aos objetivos sociais, navegando nas mesmas águas, segundo o acórdão, o art. 50 do CC , que cuida da desconsideração da pessoa jurídica.

    Totalmente equivocada a aplicação desses preceitos para a solução do caso. A finalidade do art. 10 da antiga Lei das Sociedades por Quotas também é de proteção a terceiros, credores da sociedade, pondo-se, tanto quanto o art. 50 do CC , no sentido de ampliar a garantia de terceiros que com a sociedade contratam, pois dá a eles a possibilidade de avançar, se fraude, excesso, desrespeito à lei ou ao contrato houver, sobre o patrimônio do sócio, em sendo insuficiente o da sociedade.

    Evidente que nenhum desses dois artigos limita a responsabilidade de um sócio perante o outro, muito menos ainda se presta como óbice a que os sócios, de comum acordo, deliberem sobre essa responsabilidade entre eles, mesmo porque podem e até puderam ajustar-se constituindo a sociedade. A existência de pacto entre os sócios acerca do assunto impede que qualquer deles venha a invocar a regra para livrar-se de sua responsabilidade, pois estaria postulando contra fato próprio, o que é mais grave em se atinando que a norma é de ordem pública, só enquanto voltada a garantir terceiros, não sendo válido qualquer ajuste que exclua, se ocorrentes as hipóteses de sua aplicação, a sua incidência em favor daqueles. Todavia, sequer é de se questionar sobre sua natureza jurídica entre os sócios, de vez que sua finalidade não a criou para tanto.

    Nem se acordo entre os sócios inexistisse, a invocação do preceito seria válida, dado que, segundo o art. 1007 do CC , que hoje rege a matéria, o sócio teria obrigação de participar das perdas sociais, ainda que não houvesse atos abusivos, fraudulentos, ofensivos ao contrato ou à lei, ou seja, ainda que mácula alguma se revelasse.

    CARLOS MAXIMILIANO, escorado nos velhos Estatutos da Universidade de Coimbra, deixa claro que a essência da interpretação há de ser teleológica, de modo que “o hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática” (Hermenêutica e aplicação do Direito, Rio de Janeiro, Forense, 19ª edição, 2002, n. 161, p. 124). Essa lição convida o intérprete a, antes de ler as normas, selecionar aquelas que tratam da questão a ser enfrentada, de modo a não se seduzir com a literalidade de algo que, se vier a ser introduzido em ambiente para o qual não foi concebido, encarnará o personagem de elefante em loja de cristais.

    *Clito Fornaciari Júnior, mestre em Direito pela PUCSP, é advogado em São Paulo.

    • Publicações8583
    • Seguidores176
    Detalhes da publicação
    • Tipo do documentoNotícia
    • Visualizações74
    De onde vêm as informações do Jusbrasil?
    Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/responsabilidade-dos-socios/136098

    0 Comentários

    Faça um comentário construtivo para esse documento.

    Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)