Tributação por analogia: o caso do ICMS sobre afretamento de navios
Não cabe à administração fazendária desconsiderar negócios jurídicos unicamente por interesse arrecadatório, sem respeitar os efeitos contratuais, a pretexto de tributar por analogias, e ainda mais quando estes correspondem a conceitos usados expressamente pela Constituição para designar competências, como é o caso dos termos “serviço” e “transporte”. Veda-o a distribuição constitucional de competências e o próprio teor do artigo 110, do CTN. Como se não bastasse, o próprio CTN veda o recurso à analogia para esse fim (artigo 108, parágrafo 1º).
O serviço de transporte marítimo não se confunde com o afretamento por tempo (TCP), e tampouco este equivale a um simples contrato de locação do navio. O fretamento de navios, especialmente na modalidade “por tempo”, perfaz-se numa unidade complexa e autônoma, em tudo distinta de simples locação ou de contrato de transporte. Sua peculiaridade consiste em atribuir a posse direta da embarcação exclusivamente ao afretador, para que este possa fazer uso da gestão comercial do espaço naval, para o transporte de bens, ao qual se agrega uma série de serviços, como tripulação, manutenção do equipamento, sistema de comunicação, armação, eficiência técnica das máquinas, documentação, formalizações burocráticas e pagamento de tributos relativos à navegação, responsabilidades civis, e outros, todos a título de gestão náutica, de responsabilidade do fretador (proprietário), mas sem que este interfira de algum modo sobre o emprego da embarcação ou no seu uso.
Temos visto, porém, diversos acórdãos dos tribunais de Justiça e dos tribunais superiores a negarem procedência aos recursos fazendários, para afastar tanto a incidência do ISS sobre os serviços, quanto o ICMS sobre supostos transportes decorrentes dos fretamentos marítimos, diante da profunda diferença jurídica entre os contratos, como virá demonstrado.
Fretamento marítimo é espécie de Contrato de Utilização de Navio, logo, não é “contrato de transporte”, pois não tem como objeto o deslocamento de pessoas ou de bens de um ponto a outro, dentro de prévias e determinadas condições e mediante remuneração própria (“frete” — freight), mas, sim, aquele que tem por objeto o uso, gozo e fruição do navio, com ou sem o conjunto de serviços a este inerentes, para efetuar determinada atividade náutica, em troca de certa contraprestação, em tudo diversa daquel’outra, que é o “frete” (hire), mesmo que aqui no Brasil a terminologia não os diferencie apropriadamente[1].
Assim, no “fretamento a casco nu” (bareboat charter — BCP), caberá ao afretador a obrigação de armá-lo e tripulá-lo, com gestão náutica e comercial por sua conta; mas também o navio lhe poderá ser entregue armado e equipado pelo fretador, como se vê nas modalidades “por tempo” (time charter — TCP) ou “por viagem” (voyage charter), cuja diferenciação recairá apenas na forma de aproveitamento da gestão náutica e comercial, exercida conjuntamente pelo fretador, no caso do fretamento por viagem, ou separadamente, no fretamento por tempo, ou seja, entre fretador (gestão náutica) e afretador (gestão comercial).
O contrato de fretamento por tempo (time charter party — TCP) caracteriza-se pela colocação de navio e seus serviços, sob gestão náutica do fretador, ou seja, armado, equipado e em condição de navegabilidade, à disposição do afretador, para que esta assuma a gestão comercial do espaço naval por tempo determinado, mediante retribuição financeira, que é o frete (hire). A “causa” do fretamento aparta-se, assim, daquela obrigação de “fazer” do contrato de transporte para assumir autonomia negocial sobre típica obrigação de “dar”.
Nesse particular, explicita Pontes de Miranda o que se deve entender por contrato de transporte e sua causa jurídica:
“Contrato de transporte é o contrato pelo qual alguém se vincula; mediante retribuição, a transferir de um lugar para outra pessoa ou bens. Há prestação de obra, que é transladação. O que importa é o resultado. (...) Pressupõe-se que o transportador tenha todos os meios para chegar ao fim, que se quer”[2].
Quem faz fretamento TCP de suas embarcações não quer prestar serviço de transporte. O seu fim econômico consiste em atribuir a terceiro espaço naval para que este possa fazer, em seu favor ou a título de prestação mercantil, atos de transporte de bens, mercadorias, valores ou pessoas. É a disponibilidade do “espaço naval” em favor de outrem, por período certo de tempo e a título oneroso, para livre gestão comercial da embarcação, que faz a principal diferença do “fretamento” em relação a outros contratos[3].
Conforme prescreve o artigo 730 do atual Código Civil, “pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para o outro, pessoas ou coisas”. Todo contrato típico de transporte tem como fim deslocar bens ou pessoas de um a outro p...
Ver notícia na íntegra em Consultor Jurídico
0 Comentários
Faça um comentário construtivo para esse documento.