Uma proposta humanista para o estudo do Direito
Temos presenciado um movimento de retrocesso de direitos humanos assustador. Esse processo, contudo, não é algo que presenciamos apenas no Brasil. Xenofobia, intolerância religiosa, escravidão, racismo, exploração sexual de menores, precarização das relações de trabalho, ausência de regulação do capital financeiro e corrupção são apenas alguns fatos globais que podemos encontrar localizados em diversos países pelo mundo afora.
Apesar da característica global desses problemas, um ponto em especial nos chama a atenção no Brasil, ou seja, o fato de existir uma contradição entre essa realidade de retrocessos e a Constituição Federal de 1988. Mais que isso, além dessa contradição, o fato de existir em todas as instituições do Sistema de Justiça (sem exceção) agentes públicos empenhados em aprofundar ainda mais essa lógica de exceção.
Esse cenário é assustador, pois apenas uma coisa é certa em relação às medidas de exceção: que não sabemos quais resultados elas podem ocasionar. O Direito tem como finalidade a segurança jurídica. A exceção, por sua vez, pode tudo, menos garantir a segurança jurídica, uma vez que trabalha fora da regra. Questão que fica é a seguinte: Como contribuir para conscientizar os profissionais do Sistema de Justiça que estão em processo de formação de que o estado de exceção é uma opção equivocada e, com isso, evitar essa institucionalização da exceção que estamos vivendo hoje e que tem contribuído para o descrédito do Direito?
O professor Eduardo Carlos Bianca Bittar, no início do ano, lançou um livro que merece não apenas ampla divulgação e destaque, mas leitura atenta por professores que ministram aulas de qualquer matéria em cursos de Direito. Intitulado Introdução ao Estudo do Direito: humanismo, democracia e justiça, essa obra que acabou de sair do forno deixa claro que o Direito figura como um dos caminhos centrais para a realização da justiça e que se existe algo que pode ser colocado em questão não é o potencial emancipatório do Direito, mas o risco do seu uso em confusão com a defesa do status quo mantendo e justificando injustiças e desigualdades sociais. Nesse sentido, para o Direito o autor propõe a (…) restauração de seu sentido emancipatório (p. 572).
A obra é distribuída em 24 capítulos, cada um com um caso prático ao final. No entanto, o que mais chama a atenção é que os casos práticos, ao abordarem questões de minorias e justiça de transição (novidade em relação às obras sobre Introdução ao Estudo do Direito), fortalecem não apenas a compreensão dos assuntos expostos, mas exigem que o estudante se implique e se deixe afetar pelos problemas concretos.
A preocupação com a realidade brasileira transversaliza a obra e se concretiza na Teoria do Humanismo Realista. É nessa toada que o professor Eduardo Bittar reconhece e afirma que a formação do jurista deve se dar com base numa reflexão crítica e humanista das coisas do mundo e das coisas que circundam o universo do Direito. O autor registra a todo o momento a preocupação em dialogar com as questões sobre democracia e participação social, apoiando a Teoria do Humanismo Realista sobre a democracia deliberativa e afirmando que para alcançar novos patamares civilizatórios com os instrumentos do direito moderno é necessário a renovação dos horizontes e dos instrumentos da democracia moderna.
Ponto importante da Teoria do Humanismo Realista é que ela (…) não se oferece à crítica do lugar do Direito, mas subsidia o Direito a ser mais crítico e revisor de suas próprias práticas, exercendo antes de tudo a autocinsciência epistemológica (p.43). ‘Humanista’ na medida em que se volta aos desvios históricos da modernidade e às patologias sociais que obscureceram o ser humano no espaço da razão e ‘realista’ na medida em que se concentra nas condições reais de justiça, a teoria desenvolvida pelo autor subsidia o conhecimento complexo exigido do jurista diante da necessidade de cercar a positividade, enquanto traço da universalidade do Direito, (…) com o que é da esfera antropológica, sociológica, política, social, econômica e cultural, em seus traços, características, desafios e arranjos locais – enquanto traço de sua contextualidade (p.46). Tarefa árdua, porém fundamental, considerando as mudanças que impactaram o Direito nos últimos tempos e a crise de legitimidade por que passam as instituições do Sistema de Justiça.
Outro ponto da obra que merece destaque e que fornece subsídios importantíssimos aos profissionais que em breve estarão ocupando as instituições do Sistema de Justiça é o capítulo que trata das fontes do Direito. Bittar fornece à Teoria do Direito um tópico sem precedentes em obras da mesma dimensão a respeito dos costumes comunitários como fontes do Direito, acolhendo e sistematizando demandas históricas de grupos massacrados por uma concepção eurocêntrica de juridicidade imposta em sociedades pluriculturais, como a brasileira.
Trata-se de uma consideração imprescindível para a formação de excelência de profissionais do sistema de justiça que vão atuar num mundo globalizado. Saber que os costumes comunitários também são fontes do Direito permite que o estudante compreenda não apenas a experiência proposta em 2015 pelo Tribunal de Justiça de Roraima de um júri composto exclusivamente por indígenas em Raposa Serra do Sol[1], mas que compreenda também que num país vizinho, como é o caso da Bolívia, existe uma Constituição (2009) que reconhece uma jurisdição indígena originária em seu artigo 190.
A compreensão do Direito como o resultado de fontes sociais e jurídicas corresponde, ademais, à indivisibilidade dos direitos humanos. Dalmo de Abreu Dallari, explica a indivisibilidade dos direitos humanos afirmando que não existe respeito à pessoa humana e ao direito de ser pessoa se não for respeitada, em todos os momentos, em todos os lugares e em todas as situações a integridade física, psíquica e moral da pessoa[2]. A pessoa concreta é aquela compreendida em sua integralidade num mundo da vida também concreto.
Apostar na formação dos profissionais do Sistema de Justiça como momento crucial para a propagação dos valores da segurança jurídica, da democracia, do humanismo e do republicanismo é fundamental para superarmos este momento lamentável de retrocessos. Conhecer, divulgar e estudar as obras jurídicas que reconhecem e afirmam de forma realista a realidade e os problemas do Brasil é um passo importante para essa empreitada de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, I, da Constituição de 1988).
Pedro Pulzatto Peruzzo éprofessor pesquisador da Faculdade de Direito da PUC – Campinas.
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