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6 de Maio de 2024

Casa de prostituição: o crime do art. 229 do código penal

Publicado por Renato Marcão
há 13 anos

A prostituição, como é voz corrente, talvez seja a mais antiga das profissões.[1]

Prestar favores sexuais; mercadejar o corpo e distribuir os prazeres da carne pode constituir opção para alguns e destino para outros.

Manter estabelecimento em que ocorra exploração sexual, conforme a lei penal vigente, constitui crime que está previsto no art. 229 do Código Penal, grafado nos seguintes termos: “Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.

Antes da vigência da Lei 12.015/2009, o artigo 229 se referia de forma expressa à conduta consistente em “manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso (...)”, havendo perfeita correlação com o nomem juris emprestado à tipificação em testilha pelo Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).

Hoje, mesmo se referindo o dispositivo a “estabelecimento em que ocorra exploração sexual”, quer nos parecer que a denominação jurídica do tipo, que persiste, não exigia mesmo ser alterada.

Muito embora o legislador tenha optado por uma linguagem mais atualizada para compor o preceito primário, em verdade e em última análise está a se referir, ainda, aos locais em que exercitada a prostituição ou outra forma de exploração sexual, daí não ser de todo desajustada a manutenção do nomemjuris – casa de prostituição -, como designativo do tipo, pois assim serevelam os “estabelecimentos” que à prática proscrita se destinam/dedicam.

A prostituição, a seu turno, acompanha a história da humanidade e é citada até mesmo em passagens bíblicas, como dão mostras, por exemplo, escritos do Novo Testamento a respeito de Maria Madalena, sobre “Sodoma e Gomorra” etc.

Não se trata de, ao contrário do que disse Nelson Hungria, [2] até certo ponto, constituir um mal necessário, por revelar uma função preventiva na entrosagem da máquina social.

Vencido o tempo das reflexões lançadas pelo admirável penalista, já não podemos concordar com suas afirmações no sentido de que – “sem querer fazer-lhe elogio” -, ressalvava cautelosamente, constitui a prostituição “uma válvula de escapamento à pressão de irrecusável instinto, que jamais de apaziguou na fórmula social da monogamia, e reclama satisfação antesmesmo que o homem atinja a idade civil do casamento ou a suficiente aptidão para assumir os encargos da formação de um lar. Anular o meretrício, se isso fora possível, seria inquestionavelmente orientar a imoralidade para o recesso dos lares e fazer referver a libido para a prática de todos os crimes sociais”.[3]

O modelo social dos dias que correm não mais se ajusta ao pensamento exposto, que em verdade buscava salvaguardar a família e a sociedade dos malefícios que a ausência de opção para os reclamos que a satisfação da libido exige, por vezes arriscam e até insistem em proporcionar.

Os sistemas parciais[4] que integram a sociedade contemporânea prescindem de tais favores para seu fortalecimento.

A realidade atual tornou superada a visão poética e por vezes romântica que enxergava nos prostíbulos o primeiro acesso para a prática da masculinidade sexual; para a iniciação da virilidade explícita melhor protagonizada por célebres e prometidas mercadoras do amor.

As sessões de iniciação tantas vezes patrocinadas por algum familiar próximo, que com alguma satisfação se dispunha a levar o jovem de escassa penugem para o congresso carnal com prostitutas experimentadas já não encontra correspondência no presente. Tais entrevistas de amor, que de amor nada tinham, se tornaram estampa fora de moda para o tecido social hodierno.

Onde remanescem, as denominadas “zona de meretrício” se tornaram opção de abrigo para criminosos e ponto de frequência para alguns poucos, não mais desfrutando das conotações edo colorido de que no passado se impregnara.

Mas a prostituição, livre pelas ruas ou confinada em estabelecimentos luxuosos, jamais deixou de existir. Ao contrário, aproveitando-se do desejo atávico de desafogo da sexualidade, se expande como “negócio lucrativo” e se moderniza com oferta qualificada de “peças e serviços”, como se faz explícito em todos os meios de informação.

Ignorada, tolerada, regulamentada ou proibida, também disse Nelson Hungria, [5] a prostituição “sempre existiu e há de existir sempre”.

Conformemo-nos.

Em si considerada, contudo, a prostituição não configura ilícito penal. E nem poderia, por recair tal conduta dentro de limites amparados pelo livre arbítrio.

Não bastasse a real impossibilidade de se punir criminalmentea livre disposição dos impulsos sexuais na forma acima preconizada; de se tentar frear no campo penal a assegurada possibilidade de se distribuir favores sexuais a quem desejar e na forma que se pretender, mediante consenso, há ainda que se ressaltar a inviabilidade de se pretender a moralização do homem pela via coercitiva do jus puniendi.

Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli proferem valiosa lição a respeito quando asseveram: “Sob nenhum ponto de vista a moral em sentido estrito pode ser considerada um bem jurídico. A ‘moral pública’ é um sentimento de pudor, que se supõe ter o direito de tê-la, e que é bom que a população a tenha, mas se alguém carece de tal sentimento, não se pode obrigar a que o tenha, nem que se comporte como se o tivesse, na medida em que não lesionem o sentimento daqueles que o têm”.[6]

Tratando da racionalidade ética na legislação penal, José Luis Díez Ripollés traz importante lição, que seguramente comporta destaque neste ponto das reflexões atuais, e o faz nos seguintes termos: “A identificação daquilo cuja danosidade social afeta de modo grave os pressupostos imprescindíveis à convivência externa precisa de um ponto de referência. Essa referência é obtida através da remição ao interesse público. Com isso se quer dizer que os comportamentos ante os quais deve intervir o Direito Penal devem afetar as necessidades do sistema social em seu conjunto”.[7]

Segundo o escólio de Claus Roxin, [8] “o legislador não possui competência para, em absoluto, castigar pela sua imoralidade condutas não lesivas de bens jurídicos”. E segue: “A moral, ainda que amiúde se suponha o contrário, não é nenhum bem jurídico – no sentido em que temos precisado tal conceito, deduzindo-o do fim do direito penal. Se uma acção não afecta o âmbito de liberdade de ninguém, nem tão-pouco pode escandalizar directamente os sentimentos de algum espectador porque é mantida oculta na esfera privada, a sua punição deixa de ter um fim de proteção no sentido atrás exposto. Evitar condutas meramente imorais não constitui tarefa do direito penal”.[9]

Disso decorre afirmarmos ser destoante e ilógica a opção do legislador ao insistir em manter no sistema penal vigente o disposto no art. 229 do Código Penal, quando não se tem por criminosa a prática da prostituição nem assim pode ser considerada toda e qualquer exploração sexual.[10]

A propósito, diz André Estefam: “Com o advento da Constituição Federal e a alteração do valor protegido nos arts. 213 a 234, que passam a ser crimes contra a ‘dignidade sexual’, não mais se justifica a própria subsistência do tipo penal. Num Estado Democrático de Direito, calcado nadignidade da pessoa humana, que pressupõe a liberdade de autodeterminação, não se pode considerar criminosa uma atividade que, em seu bojo, não envolve práticas ilícitas (somente imorais)”.[11]

Bem por isso o acerto das oportunas observações lançadas por Guilherme de Souza Nucci quando revela sua indignação nos seguintes termos: “Em lugar de descriminalizar o óbvio, eliminando do cenário do Código Penal o art. 229, altera-se uma expressão por outra análoga, gerando a expectativa de aplicação da norma, o que fatalmente, não ocorrerá. Se a prostituição tanto incomoda, somente para argumentar, crie-se o tipo penal apropriado, criminalizando-a. Somente assim teria sentido buscar a punição por quem a pratica ou quem mantém lugar destinado à prática desse crime. Porém, não constituindo delito, de nada importa existir uma infração penal, pretendendo punir o dono de um lugar onde ocorra ato não criminoso. Se a prostituição é prática imoral, lembremos que a corrupção também é, aliás, além de imoral é crime. E não consta existir tipo penal punindo quem mantenha estabelecimento onde ocorra corrupção”.[12]

Há que se buscar um sistema de regulamentação criminal menos hipócrita possível, onde não exista espaço para a proteção de valores puramente morais, [13] sem que isso traduza qualquer aplauso ou condescendência em relação a condutas marcadas por revelado desprezo à moral vigorante.

Discorrendo sobre aos critérios de legitimação da criminalização, Jorge de Figueiredo Dias e Manoel Costa Andrade ensinam: “Segundo o entendimento unânime, só assumem dignidade penal as condutas que lesem bens jurídicos ou, noutros termos, que sejam socialmente danosas. Segundo, por exemplo, a sugestiva formulação de Morris e Hawkins, ‘a função primordial do direito criminal é proteger as pessoas e os bens (...). Sempre que o direito criminal invade as esferas da moralidade ou do bem-estar social, ultrapassa os seus próprios limites em detrimento das suas tarefas primordiais (...). Pelo menos do ponto de vista do direito criminal, a todos os homens assiste o inalienável direito de irem para o inferno à sua própria maneira, contanto que não lesem diretamente”.[14]

Como se vê, errou o legislador ao manter a tipificação penal em comento.


[1] Renato Marcão e Plínio Gentil, Crimes Contra a Dignidade Sexual, São Paulo, Saraiva, 2011.

[2]Comentários ao Código Penal, 3. Ed., Rio de Janeiro, Forense, 1956, v. VIII, p. 268.

[3] Comentários aoCódigo Penall, 3. Ed., Rio de Janeiro, Forense, 1956, v. VIII, p. 268.

[4] Niklas Luhmann, Sociologia do Direito I, Rio de Janeiro, Biblioteca Tempo Universitário, tradução de Gustavo Bayer, 1983, p. 168.

[5] Comentários aoCódigo Penall, 3. Ed., Rio de Janeiro, Forense, 1956, v. VIII, p. 274.[6] Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 467.

[7] A racionalidade das leis penais, São Paulo, Revista dos Tribunais, tradução de Luiz Regis Prado, 2005, p. 153.

[8] Problemas fundamentais de Direito Penal, Lisboa, Vega, tradução de Ana Paula dos SantosLuís Natscheradetz, 1986, p. 29/30.

[9] Luiz Flávio Gomes tratou da matéria com profundidade em seus livros: Norma e bem jurídico no Direito Penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, Série “As Ciências Criminais no século XXI”, v. 5, 2002; e, Princípio da ofensividade no Direito Penal, São Paulo, Revistados Tribunais, Série “As Ciências Criminais no século XXI”, v. 6, 2002

[10] No mesmo sentido apreendido por Guilherme de Souza Nucci, in, Crimes contra a dignidade sexual, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009, p. 80.

[11] Crimes sexuais, São Paulo, Saraiva, 2009, p. 118.

[12] Crimes contra a dignidade sexual, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009, p. 80.

[13] Sobre a matéria, conferir o excelente livro de Alice Bianchini: Pressupostos materiais mínimos da tutela penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, Série “As Ciências Criminais no século XXI”, v. 7, 2002.

[14] Criminologia – O homem delinquente e a sociedade criminógena, 2ª reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 405/406.

Direito Penal - Execução Penal - v.9

Renato Marcão

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Temos,assim sendo estabelecido ou comércio cobrando impostos por pessoa.
Eu vejo dessa forma.
Por ter passado humilhação sem ser prostituta,e vindo de um relacionamento abusivo.
Alguns anos uma juíza arquivou calúnia defamaçao e ameaça por falta de pagamento.
Humilharam e ameaçaram a mim e a meu filho.
Em Águas de Lindóia no Bairro do Jardim Europa.
Arquivamento por falta de provas ,sobre mim sim e quem assim o fez as ameaças e as calúnias.Fica aqui o meu apelo e indignação por tamanho descaso da leis em nosso país. continuar lendo