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16 de Junho de 2024

Considerações sobre os toques de recolher na pandemia do novo coronavírus e entendimento do STF

há 3 anos

Equipe da Guarda Civil durante fiscalizao em Campo Grande Foto Arquivo

Fonte: Campo Grande News, 2020[1].

Disclaimer: Este é meu primeiro artigo aqui no site, recém bacharel em direito e inscrito na OAB/SC, decidi começar a publicar aqui na plataforma alguns artigos que eu sentir vontade. Friso que este artigo pode acabar sendo mais opinativo que científico, mas não vou deixar de colocar o máximo de conteúdo possível sobre o tema. Algumas citações vão ter datas de acesso antigas, pois estou utilizando de alguns trabalhos e artigos que fiz durante a faculdade. Já adianto minhas desculpas se eu acabar escrevendo alguma besteira.

INTRODUÇÃO

Desde que foi reconhecida a pandemia do novo coronavírus no país[2], começou o debate a respeito de formas de combatê-la, além de vacinas é claro, por medidas sanitárias que pudessem reduzir o contágio entre a população, como lockdowns, restrições do direito de locomoção com barreiras em entrada de cidades e toques de recolher (que não deixa de ser uma restrição ao direito de locomoção, mas no sentido temporal).

A fim de regulamentar e prever toda essa questão, foi publicada a Lei nº 13.979/2020[3], tendo inclusive já sofrida várias alterações e seus dispositivos por vezes ainda são debatidos.

Dentre alguns debates, houve o questionamento a respeito da autoridade responsável pela adoção de medidas sanitárias, se ficaria a critério exclusivo da Presidência da República ou se era possível autoridades locais adotarem algumas medidas, sendo esse debate já superado pela ADPF nº 672, que reconheceu a competência concorrente dos Estados, Distrito Federal e suplementação pelos municípios para a “adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia”[4].

Após a ADPF nº 672, por óbvio se intensificaram medidas adotadas pelos membros da federação, entre essas medidas nos últimos meses o toque de recolher, tendo nesta semana iniciado o debate a respeito disso no STF, com as ações movidas pelo PTB em ADPF[5] e o Presidente da República em ADI[6].

Neste sentido, percebe-se que o debate vem se tornando cada vez mais relevante, tanto pelos decretos existentes, como pelo questionamento feito por meio do controle concentrado de constitucionalidade.

O TOQUE DE RECOLHER É LEGAL?

A imagem no início do artigo foi colocada ali para chamar a atenção dos leitores, é claro. Nela vemos a guarda municipal policiando as ruas de Campo Grande/MS para evitar que os moradores circulem nas ruas após o horário previsto no toque de recolher.

A notícia é de dezembro de 2020 (e não informa o número do decreto), mas no site do Estado do Mato Grosso do Sul é possível encontrar a informação de havia um decreto vigente até 12/03/2021[7], este foi o Decreto nº 15.619, de 24 de fevereiro de 2021 que prorrogou o Decreto nº 15.577, de 6 de janeiro de 2021.

Como o objetivo deste artigo é falar a respeito do toque de recolher de maneira abtrata, não vou analisar este ou outro decreto, vou colocar as normas e decisões a respeito do caso e vou deixar a conclusão para vocês.

A respeito do direito de locomoção, a CRFB/88 prevê que é possível a restrição desse direito em caso de Estado de Defesa e Estado de Sítio[8]. Em ambos os casos, tal medida não seria suficiente para enfrentar o novo coronavírus, pois ambos os institutos para este caso têm prazo de validade e como vimos a epidemia já está aí a 1 (um) ano no país e no mundo.

Assim fica a dúvida, é possível limitar esse direito por meio de lei?

Sobre o artigo , inciso XV, da CRFB/88, Moraes (2019)[9] explica que a liberdade de locomoção é uma “norma constitucional de eficácia contida, cuja lei ordinária pode delimitar a amplitude, por meio de requisitos de forma e fundo, nunca, obviamente, de previsões arbitrárias”, reforçando ainda que o legislativo pode estabelecer regras referente à circulação das pessoas no âmbito interno.

A respeito de medidas que envolvam a defesa e proteção saúde da população o artigo 24, da CRFB/88, dispõe que a União, os Estados e o Distrito Federal concorrem na legislação sobre o tema, dispondo ainda o artigo 30 que compete aos municípios legislarem sobre assuntos de interesse local.

Mas o que o STF disse sobre tudo isso até agora? Em relação as medidas sanitárias aplicadas na pandemia, houveram várias ações.

Como já mencionado, na ADPF nº 672, o STF reconheceu a competência concorrente para “adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, tais como, a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, [...] restrições [...] à circulação de pessoas” [10], ou seja, ratificando o artigo 24, da CRFB/88. No entanto, sobre toque de recolher especificamente, não foi objeto dessa ADPF, mas em 17/04/2020, houve o debate sobre toque de recolher na Suspensão de Liminar n.º 1.315 do STF.

Naquele caso o município de Umuarama/PR havia editado um toque de recolher, que em sede de habeas corpus fora suspenso pelo TJPR e dessa suspensão houve recurso até o STF.

No STF, o Excelentíssimo Ministro Dias Toffoli (na época presidente do Tribunal) não derrubou a liminar sob o argumento de que a restrição intermunicipal decretada, estava em desacordo com a Lei nº 13.979/2020, pois não estava respaldada em recomendação técnica da Anvisa e, portanto, só o fato de existir a pandemia não era suficiente para restringir a locomoção de pessoas [11]. Neste caso, houve interpretação literal ao § 6º-B, incisos I e II do artigo , da Lei n.º 13.979/2020 que dispõe que:

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas:
VI – restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, de:
b) locomoção interestadual e intermunicipal;
§ 6º-B. As medidas previstas no inciso VI do caput deste artigo deverão ser precedidas de recomendação técnica e fundamentada: (Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020)
I – da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em relação à entrada e saída do País e à locomoção interestadual; ou (Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020)
II – do respectivo órgão estadual de vigilância sanitária, em relação à locomoção intermunicipal.

Mesmo que tenha sido uma decisão monocrática, já temos a posição de um dos ministros.

Em Umuarama/PR, o Ministro não disse que era ilegal a restrição de locomoção, mas que somente não estava respaldada na Anvisa.

Importante destacar, que como está disposto na Lei nº 13.979/2020, é permitida a restrição intermunicipal, sem em nenhum momento citar a intramunicipal.

Em que pese haja a diferença entre 'inter' e 'intra', não fora questionada na Suspensão Liminar.

Sobre respaldo da Anvisa nas medidas, houve também questionamento no STF (após essa decisão inclusive), na ADI Nº 6.343 [12], tendo decidido em 06/05/2020, que:

i) suspender parcialmente, sem redução de texto, o disposto no art. 3º, VI, b, e §§ 6º e 7º, II, a fim de excluir estados e municípios da necessidade de autorização ou observância ao ente federal; e ii) conferir interpretação conforme aos referidos dispositivos no sentido de que as medidas neles previstas devem ser precedidas de recomendação técnica e fundamentada, devendo ainda ser resguardada a locomoção dos produtos e serviços essenciais definidos por decreto da respectiva autoridade federativa, sempre respeitadas as definições no âmbito da competência constitucional de cada ente federativo [...]

Ou seja, segundo o STF, as medidas sanitárias tem que ser precedidas de recomendações técnicas, não necessariamente da Anvisa, mas pode ser da autoridade local, ou seja, todos os atos devem ser vinculados e não discricionário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A própria CRFB/88, no art. , inciso XV, dispõe que é livre a locomoção nos termos da lei.

O Poder Legislativo editou a Lei nº 13.979/2020 que dispõe sobre retrição na circulação de pessoas, sendo ela considerada válida pelo STF.

Assim, desde que cumpridos os requisitos da Lei, vemos que é possível a limitação do direito de locomoção, no entanto, sempre tal ato deve seguir com recomendação técnica da autoridade sanitária.

No caso de Umuarama, foi uma decisão isolada que não deixa de validar o disposto na lei.

Ao meu ver, como na Lei nº 13.979/2020 cita apenas restrição intermunicipal e interestadual, não seria possível limitar a intramunicipal, como n ocaso de Umuarama, porém em consonância com a lei, seria válida as outras restrições como intermunicipal e interestadual.

Por fim, eu particularmente acredito que o toque de recolher, embora com boas intenções, não surta o efeito esperado, pois as aglomerações efetivamente ocorrem no âmbito privado, com festas particulares, independentemente da hora que se possa circular na rua.

REFERÊNCIAS

[1] KEMPFER, Ângela. Quem descumprir toque de recolher "será fichado", avisa Secretaria de Segurança. Campo Grande News: 15 dez. 2020. Disponível: https://www.campograndenews.com.br/brasil/cidades/quem-descumprir-toque-de-recolher-sera-fichado-avi... Acesso em: 23 mar. 2021.

[2] BRASIL. Congresso Nacional. Decreto Legislativo nº 06, de 2020. Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Portaria/DLG6-2020.htm. Acesso em: 23 mar. 2021.

[3] BRASIL. Presidência da República. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm. Acesso em: 23 mar. 2021.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental n.º 672. Origem: Distrito Federal – DF. Requerente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados Do Brasil – CFOAB. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Data do Julgamento: 08 abr. 2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF672liminar.pdf. Acesso em: 09 nov. 2020.

[5] MIGALHAS. STF: PTB contesta decretação de lockdown e toque de recolher no país. Migalhas: 17 mar. 2021. https://www.migalhas.com.br/quentes/341939/stf-ptb-contesta-decretacao-de-lockdownetoque-de-recolh...

[6] MIGALHAS. Bolsonaro vai ao STF contra toque de recolher de governadores. Migalhas: 19 mar. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/342088/bolsonaro-vai-ao-stf-contra-toque-de-recolher-de-governad... Acesso em: 23 mar. 2021.

7. CHAVES, Bruno. Governo prorroga toque de recolher e restrições seguem até 12 de março. Disponível em: http://www.ms.gov.br/governo-prorroga-toque-de-recolhererestricoes-seguem-ate-dia-12-de-marco/. Acesso em: 23 mar. 2021.

[8] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 23 mar. 2021.

[9] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 35. ed. São Paulo: Atlas, 2019. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597020915/. Acesso em: 10 out. 2020.

[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental n.º 672. Origem: Distrito Federal – DF. Requerente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados Do Brasil – CFOAB. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Data do Julgamento: 08 abr. 2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF672liminar.pdf. Acesso em: 09 nov. 2020.

[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de liminar n.º 1.315. Origem: Umuarama – PR. Requerente: Município de Umuarama. Relator: Ministro Dias Toffoli. Data do Julgamento: 17 abr. 2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaPresidenciaStf/anexo/SL1315.pdf. Acesso em 19 out. 2020.

[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade n.º 6343. Origem: Distrito Federal – DF. Requerente: Rede Sustentabilidade - REDE. Relator: Ministro Marco Aurélio. Data do Julgamento: 06 maio 2020. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadTexto.asp?id=5077227&ext=RTF. Acesso em: 09 nov. 2020.

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1 Comentário

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Elaine Martins
3 anos atrás

Excelente considerações! continuar lendo