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3 de Maio de 2024

Desconsideração da personalidade jurídica: quando os sócios devem responder pelas dívidas da empresa?

Publicado por Bruno Figueiredo
ano passado

Você já ouviu falar sobre algum empresário que teve de desembolsar valores de seu próprio patrimônio para cobrir dívidas da empresa?

Por que isso aconteceu? A empresa não deveria proteger o patrimônio pessoal dos seus sócios?

São dúvidas como essas que responderemos hoje! Por isso, acompanhe o artigo para entender melhor sobre essas situações atípicas, e como proteger seu patrimônio de situações como essas!

Começando pelo início: personalidade jurídica

Para a construção de qualquer imóvel, é importante iniciarmos pela sua fundação, e, por isso, é importante primeiramente entendermos o que é a personalidade jurídica.

Personalidade jurídica é a capacidade de uma pessoa física ou jurídica (como uma empresa, associação ou fundação) ser reconhecida como sujeito de direitos e obrigações juridicamente, e possuir patrimônio próprio.

Em se tratando das pessoas jurídicas, podemos dizer que é a própria capacidade de elas existirem de modo independente das pessoas físicas que a compõem, ou seja, de que ela exista de modo dissociado aos seus sócios.

Vamos ver um exemplo, para entender melhor?

João é o único sócio da empresa “João Distribuidora de Refrigerantes”.

Caso essa empresa possua personalidade jurídica, ela poderá, em seu próprio nome, contrair obrigações (empréstimos, financiamentos, etc), porém, caso ela não tenha personalidade jurídica, ela será interpretada como uma “extensão de João”.

Nesse último caso, João teria de contrair todas as obrigações em seu nome, já que a empresa não possui essa capacidade.

E a partir de quando uma sociedade, empresária ou não, terá uma personalidade jurídica?

A sociedade passará a ter sua própria personalidade jurídica quando houver o registro dos documentos de sua constituição de registro competente.

No caso das sociedades não empresárias, como as associações e cooperativas, por exemplo, o registro deve ser realizado no Registro Civil de Pessoas Jurídicas (“Cartório de Pessoas Jurídicas”).

Já nos casos das sociedades empresárias, o registro deve ser realizado perante a Junta Comercial do estado em que se localiza o estabelecimento.

CNPJ e personalidade jurídica

“E o CNPJ? O que ele tem a ver com a personalidade jurídica de uma empresa?”

Essa pergunta, que é recorrente - diga-se, possui uma resposta simples: quase nada!

O CNPJ, apesar de ser muito confundido com a personalidade jurídica das empresas, não guarda muita relação com esse instituto.

Isso porque, o CNPJ tem como função, tão somente, servir como um cadastro fiscal de uma pessoa jurídica.

Assim, é possível que uma empresa que tem seu CNPJ regular, não detenha a personalidade jurídica!

O principal exemplo disso são os Empresários Individuais (EI)!

Apesar de possuírem número de CNPJ para atuarem comercialmente, os EIs não contam com personalidade jurídica própria, e, portanto, não possuem um patrimônio autônomo.

No caso dos EIs, os bens voltados à prestação de seus serviços são tidos como seus bens pessoais, e não como um patrimônio próprio da atividade empresarial, como ocorre, por exemplo, nas empresas limitadas (LTDA).

Portanto, nesse caso, o CNPJ serve apenas como um mecanismo de controle fiscal e administrativo da atividade desenvolvida pelo EI.

Autonomia no patrimônio e a desconsideração da personalidade jurídica

Como mencionado, uma das características da personalidade jurídica, é a possibilidade de que exista um patrimônio próprio para a empresa, separado do patrimônio pessoal de seus sócios.

Como bem sabemos, a atividade empresarial é repleta de riscos econômicos que podem acabar com anos de trabalho e dedicação de empresários e colaboradores. E para piorar, muitas das vezes, esses riscos podem ser acarretados por fatores externos à empresa, como mudanças de mercado, ou crises financeiras sistêmicas.

E aqui passamos à principal preocupação com relação à desconsideração da personalidade jurídica.

Nessas situações, nas quais a empresa possua um patrimônio próprio e se veja devendo a terceiros, a regra é que os sócios não deverão arcar com seus bens pessoais.

Contudo, essa regra admite algumas exceções, a fim de que, mesmo possuindo um patrimônio próprio, a personalidade jurídica da empresa possa ser desconsiderada, a os sócios sejam obrigados a honrar as dívidas do negócio com os seus bens pessoais.

E como é de se esperar, o instituto jurídico que é responsável por isso, é a desconsideração da personalidade jurídica.

Hipóteses da desconsideração da personalidade jurídica

O Código Civil prevê que a personalidade jurídica pode ser desconsiderada sempre que houver abuso na sua utilização, ou seja, quando a personalidade jurídica seja utilizada para fins imorais, e/ou ilegais.

O artigo 50 deste Código prevê que:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

Conforme podemos verificar, o artigo menciona duas hipóteses que serão consideradas como abuso da personalidade jurídica: o desvio de finalidade e a confusão patrimonial.

O desvio de finalidade, como o parágrafo primeiro do artigo explica, é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

Um exemplo de desvio de finalidade seria uma empresa “de fachada”, utilizada apenas para negociar e receber pagamentos por falsas franquias.

É bom destacar, inclusive, que este se trata de um exemplo real! Diversas pessoas já foram vítimas de “empresas” criadas por pessoas mal intencionadas, que venderam falsas franquias, e depois fugiram com os valores recebidos.

Em um recente caso, divulgado em 16/02/2023, no portal do G1, foi apurado que uma dos golpistas já estaria até mesmo em outro país, Portugal. Se você se interessar, o link da matéria está ao final do artigo.

Por outro lado, como vimos, a desconsideração da personalidade jurídica também pode ser decretada caso seja constatado o abuso em decorrência da confusão patrimonial.

E assim como a primeira hipótese, o Código Civil também descreve a definição de “confusão patrimonial”.

Conforme descrito no artigo 50, parágrafo segundo:

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e
III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

Assim, a confusão patrimonial pode ser entendida como a inexistência de separação, na prática, entre o patrimônio dos sócios e da empresa.

Dois possíveis exemplos de situações são quando o sócio realiza, de modo reiterado, o pagamento de suas contas pessoais com as receitas da empresa, ou realiza a transferência de um carro da empresa para o seu patrimônio pessoal sem qualquer tipo de contraprestação.

Mas, cuidado! Apesar de o exemplo acima mencionar duas situações em que a ordem de transferência dos bens/valores é “empresa ➡️ sócio”, a personalidade jurídica também pode ser desconsiderada em operações nas quais a ordem seja inversa, ou seja, “sócio ➡️ empresa”.

É a chamada desconsideração inversa da personalidade jurídica!

Essas situações são caracterizadas quando é comprovado que o sócio, para não pagar suas próprias dívidas, transfere seus bens para uma empresa, sem que haja qualquer contrapartida, apenas para ocultar seu patrimônio pessoal.

“Certo, entendi o que é a desconsideração da personalidade jurídica, mas quais as consequências diretas dela?”

Na prática: como acontece a desconsideração de uma personalidade jurídica

Certo, agora que compreendemos o que é a desconsideração da personalidade jurídica, que tal conferirmos qual o trâmite para que ela seja decretada?

A desconsideração da personalidade jurídica é invocada, na maior parte das vezes, em processos judiciais que já se encontram em fase de cumprimento de sentença/execução, ou seja, em um momento que já exista uma ordem judicial determinando o pagamento de determinados valores à outra parte da ação.

Isso porque, a parte vencedora empregará os meios necessários para fazer com que os valores devidos pela outra parte sejam pagos, e, infelizmente, nesse momento pode descobrir que a empresa executada está realizando atos imorais a fim de ocultar seu patrimônio, para não quitar a condenação judicial estipulada.

Dessa forma, tomando conhecimento disso, a parte que busca seu pagamento, chamada de exequente, apresentará, em seu processo judicial, um incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Esse incidente é, em resumo, um pedido para que o juiz determine a desconsideração da personalidade jurídica da empresa devedora (executada), fazendo com que a dívida seja exigida, também, dos sócios dela.

Nesse momento, a parte exequente (credora) deverá apresentar provas de existência de uma confusão patrimonial ou abuso de direito da personalidade jurídica, além de apresentar dados dos sócios que devem ser arrolados no processo como devedores.

Após receber esse pedido (incidente), o juiz determinará a intimação dos sócios mencionados, a fim de que eles, caso queiram, ofereçam sua defesa.

Nessa defesa, os sócios poderão apresentar documentos, demonstrar fatos, e produzir provas de que suas operações com a empresa estão dentro da legalidade, e que, portanto, não se enquadram nas hipóteses de desconstituição da personalidade jurídica.

Após isso, o juiz decidirá sobre o pedido realizado.

Caso o juiz entenda por acolher os argumentos e provas apresentados pelos sócios, ele rejeitará o pedido realizado pela empresa credora, determinando que a execução siga sem que os patrimônio dos sócios sejam executados.

Por outro lado, contudo, caso ele entenda que a parte credora na ação tem razão, ou seja, de que há um abuso de personalidade praticado pela empresa, ou que existe confusão patrimonial, ele determinará a desconsideração da personalidade jurídica, e os sócios serão arrolados como partes devedora na ação.

Assim, todas as medidas de execução judicial, como busca de valores depositados em bancos, veículos, imóveis, por exemplo, poderão ser tomadas em face do patrimônio pessoal dos sócios.

Mas, cuidado! Caso a dívida da empresa seja de origem trabalhista, ou então, originada de uma relação de consumo, a situação pode ser bem diferente!

Dívidas de origem trabalhista e consumidora

Até então foi explicado que para que a personalidade jurídica seja desconsiderada, é necessário que se demonstre o abuso na utilização dessa personalidade jurídica, ou ainda, a confusão patrimonial entre o patrimônio empresarial e pessoal dos sócios, correto?

Isso é o que chamamos, no Direito, de teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica. Ela é a regra!

Contudo, como toda regra tem suas exceções, a desconsideração da personalidade jurídica também possui as suas particularidades.

Caso a dívida exigida seja originada de uma relação trabalhista, ou relação de consumo, o empregado ou consumidor não necessitará demonstrar nenhum dos requisitos mencionados anteriormente (abuso da personalidade jurídica, ou confusão patrimonial)!

Isso porque, é unânime entre os Tribunais e juristas, de que, em razão de o trabalhador e o consumidor serem partes hipossuficientes em ações, ou seja, possuírem menos recursos (técnicos e econômicos) que uma empresa, eles não necessitam demonstrar a ocorrência dessas situações mencionadas pelo Código Civil.

Essa é a chamada teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica.

Nessas duas hipóteses, basta que as medidas de execução contra a empresa não tenham surtido retorno para que o trabalhador, ou o consumidor peça ao juiz a desconsideração da personalidade jurídica.

Dica especial

Como prometido, vamos à nossa dica especial.

Desconsideração da personalidade jurídica e dívidas tem tudo a ver, não é mesmo?

Sabe o que mais tem a ver com dívidas e ações judiciais? A Americanas!

Isso porque, a empresa Americanas apresentou, em janeiro de 2023, um pedido de recuperação judicial, após descobrir um passivo inicial de 43 bilhões de reais em seus balanços.

E pensando em descomplicar um pouco esse outro tema, a recuperação judicial, preparamos um e-book sobre como funciona um processo de recuperação judicial.

Caso você tenha interesse, você pode acessá-lo gratuitamente através do meu site clicando aqui.

Espero que o artigo tenha sido esclarecedor e proveitoso!

Se você tiver alguma dúvida, ou precisar de auxílio jurídico sobre qualquer questão empresarial entre em contato comigo através do meu site, ou escaneando o código QR presente no rodapé abaixo!

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Até a próxima!


Referências:

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.

G1 Campinas e Região. Polícia Civil cumpre mandados contra quadrilha suspeita de negociar falsas franquias de marcas famosas em SP. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2023/02/16/policia-civil-cumpre-mandados-contra-quad.... Acesso em: 08 mar. 2023.

  • Sobre o autorEspecialista em Advocacia Empresarial, pela PUC Minas.
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