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4 de Maio de 2024

Uma malandragem chamada condução coercitiva

há 7 anos

Uma malandragem chamada conduo coercitiva

Por Douglas Rodrigues da Silva

São seis horas da manhã. Dia atípico. Ouço ruídos fortes vindos do lado externo da minha casa. Não consigo distinguir bem do que se trata, mas posso afirmar que não havia ouvido nada parecido anteriormente. Luzes no quintal e reflexos na cortina. O que será que é justo às seis horas da manhã?

O sol sequer nasceu. Toques fortes na campainha sucedem meus questionamentos pessoais. Delegado da Polícia Federal e um mandado? Parece que determinaram minha condução coercitiva, mesmo que eu nunca tenha sido intimado por nenhuma autoridade, seja judicial ou policial, num momento pretérito.

A alegoria que expusemos nas linhas acima poderia muito bem se encaixar numa obra literária, mas, infelizmente, ela reflete a dura e triste realidade em que o processo penal está se transformando. O “fenômeno” da condução coercitiva, instituto então esquecido em páginas amareladas do velho código de processo penal, aquele mesmo de 1941, retorna com todo vigor e vitalidade em pleno século XXI.

A condução coercitiva é um instituto previsto, dentre outras passagens, no artigo 260 do Código de Processo Penal. Mas, como dito, o referido artigo não é o único local onde podemos encontrá-la.

Nunca é demais lembrar que o código prevê diversas hipóteses em que o juiz poderá conduzir alguém à sua presença, podendo ser o “conduzido” um perito, uma testemunha ou qualquer pessoa necessária para realização de determinado ato do juízo.

Porém o artigo 260 tem suma importância quando falamos do atual fenômeno do processo penal consistente na condução coercitiva do possível acusado – sim, possível, porque ela tem sido usada com o fim de conduzir investigados, pessoas que não foram denunciadas.

Pois bem.

O instituto em comento foi inserido na legislação brasileira em 1941, época em que o CPP foi promulgado pelo então presidente Getúlio Vargas, e desde então nunca teve sua redação alterada, mas desde 1988, pouca importância se deu a ele, já que pelo contexto em que foi concebido jamais poderia ser recebido pela atual Constituição Federal. Além disso, o seu uso era quase incomum.

E realmente o seu uso “era quase incomum”. Mas a frase no tempo pretérito já não se adéqua aos tempos atuais.

Desde o advento das midiáticas operações policiais destes tempos de “pós-verdade”, o manejo da condução coercitiva se tornou algo corriqueiro e tem se apresentado como regra nesse tipo de ação.

O Ministério Público e o Judiciário viram no artigo 260 do CPP a sua nova “menina dos olhos” e, por conseguinte, não mediram esforços na sua utilização. O requerimento de condução coercitiva, a propósito, tem se mostrado muito mais interessante aos anseios acusatórios do que a própria prisão cautelar.

Vejamos.

A condução coercitiva, como concebida no código original, era utilizada quando o acusado – o que pressupõe a existência de uma peça acusatória e de um processo penal instaurado –, após intimado (comunicado pelo juízo em ato anterior), recusava-se a comparecer ao ato designado, o qual tinha na sua presença figura elementar, caso, por exemplo, do interrogatório.

Como consequência, o juiz ordenava que o acusado fosse “gentilmente buscado” onde quer que estivesse.

Entretanto, tudo isso foi criado quando o Brasil vivia o auge de 1941, tempos em que o legislador pátrio buscava inspiração nos “liberais” (é ironia, por favor) italianos fascistas que conceberam o Código de Processo Penal do Governo de Benito Mussolini (um “exemplo” de respeito às liberdades individuais).

Se pensarmos o instituto num contexto ditatorial, com bastante reservas, até podemos enxergar uma lógica nele (com bastante reservas, repita-se).

Ora, se a legislação toda era amparada na arbitrariedade, nada impediria que o juiz mandasse buscar o acusado para interrogá-lo – até porque, nessa época, dificilmente se concederia o direito ao silêncio; o mais provável é que houvesse um “incentivo” para o réu falar.

Mas isso, caros leitores, em 1941, tempos do “pau, cacete e polícia” e muita arbitrariedade. O que faz soar até estranho que, em 2017, aparecessem vozes em defesa dessa obra processual vetusta.

Eis que, em tempos de “paladinos da justiça”, a condução coercitiva ressurgiu, mas agora na sua “versão 2.0”: revivida, moderna e seguindo arbitrária – e talvez até mais.

Vejam só.

O Ministério Público e o Judiciário perceberam na condução coercitiva uma chance de fazer uma prisão, com todo seu espetáculo, sem efetivamente realizar uma prisão.

Eles observaram que a condução coercitiva poderia ser “melhor” adequada aos seus interesses ao passo que não traria o problema da prisão cautelar ilegal, como também atuaria como espécie de “poder geral de cautela”.

Não entenderam?

Funciona assim: o MP percebe que não tem como justificar, nem mesmo da maneira absurda que costumam fazer noutros casos (clamor social, risco de reiteração, ordem pública etc.), um pedido de prisão cautelar durante uma investigação, até porque uma prisão ilegal chamaria a atenção da comunidade jurídica e talvez gerasse um sentimento de “antipatia” no investigado.

Porém acredita que a liberdade do investigado, ainda que por algumas horas, seria prejudicial à “linha investigativa”.

O que fazer? Pedir a condução coercitiva, é claro, até porque, nos tempos atuais, ela nada mais é do que uma “prisão para averiguação”.

Com efeito, o investigado, às seis horas da manhã, será surpreendido pela polícia em sua casa e, do jeito que estiver (o que inclui estar de pijama), será encaminhado à autoridade policial ou ao Ministério Público para prestar declarações. Não haverá tempo para procurar advogados, não haverá tempo para comunicar-se com outras pessoas. Ele será surpreendido pela “doce e suave” inquisição do Estado.

A medida, segundo alguns promotores, seria uma forma de impedir que os investigados fossem instruídos por outros envolvidos ou advogados (direito de defesa? Tolice), tendo suas declarações viciadas ou “preparadas”.

Como também serviria como forma de preservação da “prova”, já que não daria tempo para o investigado se desfazer de nada. Seria uma medida geral de cautela.

Bonito, não? Pois é, o problema é que nada disso está previsto em lei, tampouco é autorizado pela Constituição (lembram dela?).

Em primeiro lugar, cabe destacar que o investigado continua mantendo seu direito ao silêncio, o que, inclusive, abarca o fato de não ser obrigado a comparecer à presença da autoridade policial ou Ministério Público para prestar qualquer esclarecimento.

Aliás, ao contrário de 1941, hoje em dia não se obriga nem mesmo o réu a comparecer em seu interrogatório, já que este tem natureza precípua de ato de defesa. Então por que levá-lo num camburão ao delegado ou ao promotor, quando nem processo há? Pelo show, é claro.

Em segundo lugar, se o Ministério Público quiser realmente preservar a prova, a lei lhe faculta requerer a busca e apreensão de coisas, a qual tem justamente o fim de impedir a ocultação ou destruição de elementos informativos imprescindíveis à instrução preliminar, sem mencionar que não ultrapassa a esfera das garantias individuais do cidadão.

Em terceiro lugar, não precisamos nem falar (e realmente acredito nisso) que já está evidente que o juiz criminal não possui poder geral de cautela. O processo penal é violação de liberdade, logo a restrição deve vir da lei, não da cabeça do julgador.

A medida, portanto, tem fim meramente intimidatório e de violação de garantias. Nada mais.

E, o que é pior, a interpretação dada ao artigo 260 do CPP atualmente é até mais teratológica do que aquela de 1941.

Lembremos que, em 1941, a lei apenas permitia a condução de pessoas que estivessem formalmente acusadas e que se recusassem a comparecer voluntariamente ao ato judicial para o qual já haviam sido intimadas anteriormente.

Por incrível que pareça, o “Estado Novo” exigia o cumprimento de requisitos mais rigorosos que nosso “Estado Democrático de Direito”. Mas, mesmo assim, essa redação original do CPP não foi recepcionada pela CF de 1988, já que o réu não pode ser impelido a falar – isso é uma faculdade sua.

De outra face, a condução coercitiva do século XXI sequer tem sido determinada no âmbito do processo penal.

Manda-se conduzir sem sequer existir uma denúncia e, mais grave, sem a parte ter sido sequer chamada, alguma vez, para comparecer numa delegacia de polícia ou sede do Ministério Público.

Então fica a pergunta, por que alguém pensa que a “versão 2.0” das conduções coercitivas deveria resistir ao primeiro confronto com as diretrizes constitucionais?

Parece-nos patente que a condução coercitiva, se muito, poderia ser manejada para casos em que houvesse recusa de comparecimento de testemunhas e peritos ao ato judicial, principalmente em virtude de seus deveres de dizer a verdade.

Mas agora pensá-la como maneira de impelir o acusado a comparecer diante de um delegado ou promotor para falar, quando nem mesmo a lei lhe obriga a isso, se configura como medida de extrema afronta aos ditames mínimos de respeito às garantias individuais estampadas na Constituição.

Claro está que a condução coercitiva, como prevista no artigo 260 do CPP, não foi recepcionada pela CF de 1988 sob qualquer ótica que se enxergue. Não merece acolhida sob a égide da interpretação de 1941 e muito menos merece prosperar com a nova roupagem que lhe deram os novos “defensores da sociedade”.

A condução coercitiva, dentro do sistema processual atual, nada mais é do que uma malandragem, uma deslealdade acusatória, que nunca poderia ter ressuscitado, nem mesmo com o esforço messiânico dos seus mais novos admiradores.

Fonte: Canal Ciências Criminais

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37 Comentários

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O trabalho padece de sérios problemas de metodologia científica, não se compreendendo como foi aceito para publicação.

A existência de claro viés, o que inviabiliza a visão verdadeiramente ciêntifica sobre o tema, é clara assombração por todo o trabalho.

A título meramente elucidativo, o leitor pode ver próprio título, ou, talvez, o trecho "Desde o advento das midiáticas operações policiais destes tempos de “pós-verdade” [...]", em que resta patente a presença inadequada do juízo de valor do autor sobre operações policiais, sua natureza, o fato de o autor acreditar que não haja preocupação com a elucidação dos fatos (pós-verdade) e a utilização da expressão "midiáticas", cunhada por um réu (Lula) em, até agora, cinco ações penais, o que traz a defesa de interesses políticos para um trabalho que, a rigor, deveria focar exclusivamente no Direito. Ou escolher outro trecho: o trabalho está realmente profícuo em impropriedades metodológicas, como raramente se vê, servindo inclusive de ótimo material para uso exemplificativo em aulas de metodologia dadas no doutorado.

Necessário elevar urgentemente o padrão de análise do que será publicado por V.Sas., assim como também é necessário que potenciais autores evoluam e amadureçam na autocrítica e estudem técnicas de redação, metodologia científica, aprendam a estabelecer objetivos etc. A lista,com base neste exemplo, mostra-se longa. continuar lendo

Sério! Onde você estava congelado quando iniciou-se as conduções midiáticas coercitivas? No estado que tem as instituições mais corrupto do país - SP- quantas conduções coercitivas do PSDB existiram em ralação à Merenda, Metrô, aliás todos os negócios envolvendo a Bonbardier e a EMTU? Quantas conduções produziram o livro com provas cabais "A privataria Tucana" (não se trata de convicções, são provas!): A única instituição livre de corrupção é aquela que não foi investigada, ou estrategicamente poupada de investigações, como no caso do PSDB. continuar lendo

Nobres colegas, acredito que o colega Geraldo Luiz dos Santos Lima Filho foi generoso nas criticas. Dito isto. Pois bem. A condução coercitiva é legitimada no Código de Processo Penal nos artigos: 201 § 1º, 218, 260 e 278, destaca-se, no texto, artigo: 260 do CPP, no caso é deferida pelo magistrado. A medida consiste nas providências necessárias para o esclarecimento de um delito, a condução coercitiva prevê a competência do agente policial de conduzir pessoas para prestar depoimentos, respeitando-se suas garantias legais e constitucionais. Portanto, não é uma medida inconstitucional, caso fosse, haveria decisões dos Tribunais considerando-a inconstitucional, pois a maioria dos conduzidos foram figurões da sociedade e da política brasileira. Todo esse burburinho em relação à condução coercitiva, só começou a partir da condução do Lula, antes, ninguém contestava. É óbvio que o texto publicado possui viés político, pois o alvo são em sua maioria pessoas de um certo partido de duas letras, envolvidas em corrupção, ou seja, assalto aos cofres públicos. Quem disse que os diretos dos conduzidos são violados, não há obstáculo para o conduzido fazer uso do seu direito constitucional do silêncio. Ademais, esta medida se tornou notória na operação lava jato para evitar que provas fossem destruídas e ainda para evitar que o conduzido adquira um script do advogado de defesa. Busca-se neste caso, a verdade real. Basta o conduzido fazer uso do seu direito constitucional de não produzir provas contra ele, ficando em silêncio. Ninguém poderá obriga-lo a falar. Ademais, este ato não poderá ser usado em face do conduzido. Para encerrar faço uso de um clichê: PT saudações ao autor do texto. continuar lendo

Dr. Euclides, o senhor já prestou depoimentos perante um policial federal? continuar lendo

Nobre colega Jackson Fernandes, não estou sendo obtuso, nunca prestei depoimentos na PF, pois nunca me envolvi em ilícitos, nem como testemunha, contudo, já acompanhei muitos dos meus clientes para depor na PF e quando alguns deles estava na figura de indiciado, determinava que ficassem em silêncio e ponto final, o delegado não podia fazer nada, espero que esteja satisfeito com a resposta, apesar de se encontrar um pouco atrasada. continuar lendo

Publicação confusa, desordenada e de cunho político. continuar lendo

É muito bom estarmos diante de opiniões divergentes, mesmo que por questões políticas.
Todavia, não se encontra em nosso ordenamento jurídico fundamentação para tal tipo de providência Judicial da forma como está sendo tomada.
O Estado deve investigar para prender e preservar o direito a ampla defesa e ao contraditório, bem como o principio da inocência do investigado que não está obrigado, por nosso direito, a produzir provas contrárias a sua defesa.
Aqueles que hoje violam a lei para beneficiar serão os mesmos que a violarão pra prejudicar.
Democracia presume-se o estrito cumprimento das leis que são oriundas da vontade popular.
Parabéns pelo texto.
Boa reflexão!
Jorge Meyer. continuar lendo

Interessante, não!

Pela condução coercitiva, a legislação da era Vargas é truculenta autoritária, ditatorial, etc...

Mas graças à maravilhosa, moderna e funcional CLT, o mesmo Vargas é o "pai dos pobres".

Va entender... continuar lendo

Por favor Norberto vai estudar história!!!!!! Getúlio Vargas foi um herói para uma geração de brasileiros que eram tratados como escravos por seus "empregadores". Minha avó nascida em 1898 contava histórias horrendas sobre como os trabalhadores eram tratados. Não havia qualquer regulamentação mínima. Infelizmente pessoas como o senhor patrocinam um retrocesso como jamais visto. Só tivemos 50 anos de democracia em uma História de 500 anos e é assustador que em pleno século 21 o Brasil caminhe para a era pré industrialização!!!!!!! continuar lendo

Sra. Cristina, por favor, se alguém precisa estudar história é a senhora. Getúlio Vargas foi o mais violento ditador que o Brasil já teve, o homem era de uma truculência ímpar com seus adversários políticos, tendo sido responsável pela morte e desaparecimento de vários deles, isto sem falar nas medidas legais absolutamente autoritárias que tomou ao longo da vida. continuar lendo

Sr Rafael agora é o senhor que precisa estudar história. Não precisa ir muito longe . Só uma "olhadinha" na Wikipédia. Foi ditador, foi eleito por voto indireto e foi eleito por voto direto. Se o senhor é um operador do direito deveria saber que ele é responsável pelo arcabouço da nossa CF. Responsável pela CF/34. Muito interessante a leitura comparativa. Já a fiz há muitos anos quando prestei um concurso e por pura curiosidade. O olhar "com antolhos" (por falta de expressão melhor, sem ofensas) nos impede de ver ao redor, condição máxima de nosso campo de visão. O Sarney é um crápula mas sempre terá o mérito de ter conseguido implantar o nosso sistema de vacinação, único no mundo em um país de dimensões continentais. O Collor, outro canalha, criou o sistema de controle bancário, o senhor lembra das filas de 8 hs para se cadastrar??? Agora é pior porque um Temer não tem nada mesmo que se coloque uma lupa e se agregue uma visão de 360 graus, só retrocesso, só destruição... continuar lendo