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Julgamento Antecipado no Processo Penal - Ed. 2022

Julgamento Antecipado no Processo Penal - Ed. 2022

2. Disponibilidade do Ministério Público Sobre a Pretensão Processual Penal

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Sumário:

2.1.Pretensão punitiva e irrelevância da lide no processo penal

A evolução da sociedade e a mudança da forma de organização do Estado geraram uma transformação da subjetivação do Direito Penal, isto é, da relação jurídica que se estabelece entre aquele que comete um crime com o responsável pela sua punição. 1 A jurisdição passou a ser uma atividade substitutiva daquela anteriormente exercida pela vítima ou os membros da comunidade, na medida em que o Estado assumiu uma função que naturalmente não lhe pertencia. 2

Proibida a efetivação da justiça penal direta e individualmente, seja pelas vítimas dos crimes ou outros membros da sociedade, o Estado ficou com o monopólio de prestação desse poder soberano. Ademais, o Estado incorporou o dever de sua realização, assim como o exercício dessa atividade, realizada por meio do processo (DINAMARCO; LOPES; 2019, p. 77).

Assim, a jurisdição penal configura tanto um poder, em razão da exclusividade da competência de impor a pena a quem cometeu um crime, como um dever, uma vez que, ao assumir com privatividade essa função, o Estado não pode dela se eximir ou deixar de cumpri-la. Além disso, a jurisdição pode ser representada por meio do processo em que é prestada, o qual constitui a atividade de sua operacionalização e concretização. 3

Embora o Estado seja o único legitimado a prestar a jurisdição, a qual é uma atividade “intransferível, indelegável e não suscetível de ser compartilhada por uma pluralidade de titulares” (MOLINA; GOMES, 2012, p. 232), há uma divisão de responsabilidades entre seus órgãos para seu exercício.

Enquanto cabe ao Legislativo definir o que é crime e fixar as regras processuais, o Ministério Público exerce privativamente a ação penal pública. Por seu turno, o Poder Judiciário detém exclusivamente o processo de aplicação e imposição das penas, mas compartilha com o Executivo a administração de sua execução.

Essa divisão de funções limita a legitimidade punitiva do Estado, na medida em que evita o arbítrio na prestação da jurisdição. Gera um controle por meio do mecanismo de freios e contrapesos, com alternância do responsável pelo exercício de tarefas imprescindíveis e que constituem requisitos para as subsequentes, fazendo com que todo o poder não fique exclusivamente com o mesmo órgão. Cuida-se de consequência lógica da adoção do sistema republicano, em que o maior valor é a harmonia nas relações institucionais ( CF , art. 2 .º).

Com a assunção do monopólio do Estado na prestação da jurisdição penal, aquela relação jurídica material, surgida entre autor e vítima/lesado em virtude da prática de conduta definida em lei como crime, passa a não ser suficiente à imposição da respectiva pena. Torna-se imprescindível, então, o surgimento de outra relação jurídica, agora processual, a qual é distinta da material, embora seja uma consequência dela. 4

Em outras palavras, o fato criminoso gera uma relação jurídica material-penal entre seu autor e vítima/lesado. 5 No entanto, para a imposição da respectiva sanção criminal, há necessidade de outra relação jurídica ser criada, agora processual, do Ministério Público em face do Estado-juiz, 6 uma vez que a pena somente pode ser fixada após o decurso de um processo penal. 7 Quer dizer, a aplicação de uma pena “deve resultar de um pronunciamento judicial, concretizado em processo timbrado pelo due process of law ” (TUCCI, 2011, p. 28).

Não há como ser imposta pena diretamente, pois a efetivação da jurisdição estatal reclama a existência de um processo. Trata-se da imprescindibilidade de jurisdicionalização da pena – nulla poena sine iudicio , 8 segundo a qual qualquer sanção de natureza penal deve ser aplicada pelos órgãos jurisdicionais e por meio de um instrumento necessário e adequado, que é o processo. 9

Daí dizer que não pode o Estado autoexecutar uma pena, pois sua imposição é uma atividade de “coação indireta” (TUCCI, 2011, p. 28). Apesar de a jurisdição penal ser uma expressão do poder soberano estatal, regras materiais e processuais cuidam desde aquilo que pode ser criminalizado até a forma como deve ocorrer a respectiva responsabilização. 10 Essa limitação do poder de punir decorre do Estado de Direito, em que os órgãos públicos se submetem às próprias leis que criam e aplicam ( CF , art. 1 .º, caput). 11

Portanto, o processo penal não é apenas um meio de imposição de uma pena, tampouco um mero instrumento de defesa do imputado. Cuida-se de limite ao próprio poder de punir do Estado, como exigência de observância de procedimentos legais de imposição da pena, na qualidade de proteções em face de abusos por parte de agentes públicos. 12

Isso posto, pode-se concluir que, em primeiro lugar, há uma pretensão punitiva abstrata social, decorrente do desvalor que a comunidade tem com relação a determinada conduta, definindo-a em lei como crime. 13 Depois, com a adesão do fato praticado à norma penal, a pretensão punitiva se torna concreta e surge uma relação jurídica entre o autor do crime e a respectiva vítima/lesado. 14

Assim, da prática de uma conduta penalmente típica, antijurídica, culpável e punível 15 , surge, para o Estado, uma pretensão punitiva concreta, a qual somente pode ser aplicada por meio de um processo penal e pelo exercício da atividade jurisdicional do Estado-Poder Judiciário, 16 mediante provocação privativa pelo Estado-Ministério Público. 17

Embora concreta, essa pretensão punitiva decorrente do cometimento da infração penal é apenas extraprocessual, ou seja, a “exigência de subordinação do interesse alheio ao próprio” não é efetiva, tampouco autoaplicável. 18

Portanto, a pretensão punitiva do Estado, de impor ao responsável por um crime a respectiva sanção penal cominada em lei, não pode ser fixada direta e imediatamente ao suposto responsável pelo crime, uma vez que “não pode haver uma pena sem sentença, pela simples e voluntária submissão do réu, [...] pois o poder de penar somente se realiza no processo penal, por exigência do princípio da necessidade” (LOPES JR., 2007, p. 84).

Nesse sentido, como “não há solução penal fora da jurisdição oficial”, a estrita legalidade penal e a estrita jurisdicionalidade penal são garantias penais e processuais, entre as quais “há uma correlação biunívoca e necessária, a qual é reflexo do nexo específico entre lei e processo, em matéria penal” (GIACOMOLLI, 2006, p. 55). 19

Além de a conduta praticada pelo agente precisar estar definida em lei como crime, a pretensão punitiva só pode ser exercida ao final de um processo, diante da garantia do devido processo legal ( CF , art. 5 .º, LIV), isto é, para punir, é imprescindível tanto criminalizar como processar, porquanto nulla poena sine judicio ( CF , art. 5 .º, XXXV).

Logo, no processo penal, a pretensão punitiva concreta e extraprocessual é sempre insatisfeita. Ainda que o infrator queira se submeter à pena, o processo é imprescindível, na medida em que o Estado não pode autoaplicar a norma penal, mesmo com a concordância de quem cometeu o delito. 20

O processo penal é necessário à imposição de uma sanção – nulla poena sine judicio , 21 pois consagra interesses de alta relevância social (liberdade vs. segurança), que só podem ser restringidos mediante pronunciamento judicial. Essa indispensabilidade torna irrelevante a existência de conflito de interesses no processo penal. 22

Trata-se de um instrumento inevitável e imprescindível, pois, mesmo que não haja discordância no confronto de ideias, versões e teses entre Ministério Público e defesa, a pena pode ser imposta somente pelo processo e pelo órgão competente do Poder Judiciário, jamais consensual ou extrajudicialmente. 23

Na prática, ainda que haja uma confissão total, irrestrita e absoluta pelo imputado, nada inibe ou diminui o ônus do Ministério Público em apresentar a prova acusatória correspondente à forma adequada de ação penal. Ao Parquet incumbe demonstrar a justa causa que embase qualquer tipo de sanção, inclusive aquela proveniente de um acordo, pois não é possível a imposição ou mesmo a aquiescência de uma pena se a solução adequada é o arquivamento. 24

O reconhecimento da acusação não tem o condão de gerar eficácia jurídica espontânea à pena. A necessidade do processo penal pode ser analisada em um duplo aspecto: “de um lado, representa um limite para o Estado, de outro, é também um limite à vontade do acusado, retirando qualquer eficácia da submissão voluntária”. 25

O próprio ordenamento jurídico determina que a atuação da vontade concreta da lei somente poderá ocorrer por meio do processo, mesmo que as partes queiram cumprir a lei. O consenso sobre a realidade material subjacente não é apto a afastar a necessidade do processo, ou seja, “poderá ou não haver lide no processo penal, dependendo da reação do réu frente à pretensão do autor” (JARDIM; AMORIM, 2016, p. 98).

Na verdade, pelo conceito carneluttiano, “a lide apresenta dois aspectos: o material (o conflito de interesses) e o formal (o conflito de vontades), daí derivando as diferenças entre a relação jurídica e o litígio” (GIORGIS, 1991, p. 91). O conflito de interesses existe, na medida em que ocorre um “contraste entre o direito subjetivo de punir do Estado e o direito de liberdade do acusado” (GIORGIS, 1991, p. 90).

Entretanto, “o conflito de vontades é diverso, pois aqui tal encontro desaparece pela coordenação delas” (GIORGIS, 1991, p. 91). Nos casos em que o Parquet passa a requerer a absolvição ou quando o acusado assume sua responsabilidade e concorda com a imputação apresentada pelo Ministério Público, não há resistência, mas, mesmo assim, haverá processo penal. 26

Em suma, a lide não é um elemento necessário para o nascimento e o desenvolvimento do processo penal. Como visto acima, a ação penal pode não visar à aplicação da pretensão punitiva, assim como o Ministério Público pode deixar de requerer a condenação e o acusado pode não resistir à pretensão punitiva, inclusive desde o início do procedimento. Sendo assim, é “inadaptável, a nosso juízo, o conceito carneluttiano de lide ao campo do processo penal” (GIORGIS, 1991, p. 118).

2.2.Pretensão processual penal

Observou-se que, depois da prática da conduta criminosa,

[...] o Estado possui um poder condicionado de punir que somente pode ser exercido após a submissão ao processo penal. Então, no primeiro momento, o que o acusador exerce é um poder de proceder contra alguém, submeter alguém ao processo penal. É o poder de submeter alguém a um juízo cognitivo (LOPES JR., 2007, p. 87).

Isso significa que, para que a pretensão punitiva concreta e extraprocessual se torne efetiva, cabe ao Parquet , inicialmente, propor uma ação penal, na qual impute a conduta criminosa a alguém. Diante disso, pode-se dizer que “o conteúdo do processo penal é uma pretensão processual” (LOPES JR., 2007, p. 92), 27 enquanto a aplicação da pena é a consequência do exercício dessa pretensão.

Dessarte, “não é a pena o conteúdo ou o objeto do processo penal, senão sua consequência. Daí por que o processo penal desenvolve-se em torno da acusação [...]. Se acolhida, abre-se a possibilidade de o Juiz exercer o poder de punir” (LOPES JR., 2007, p. 86). O Ministério Público realiza a pretensão processual penal, requerendo ao Estado-juiz a aplicação de sua pretensão punitiva, em face do acusado.

A pretensão punitiva, em seu aspecto material-penal, é o poder do Estado de “exigência de submetimento de alguém à pena”, 28 isto é, de impor a quem comete um crime sua submissão à lei penal. Por meio da pretensão punitiva, o Estado-juiz torna efetiva aquela pretensão punitiva concreta extraprocessual, a qual havia surgido após o cometimento de um delito.

Caso o juiz absolva, deixará de aplicar a pretensão punitiva em face do acusado, embora o Ministério Público tenha exercido sua pretensão processual penal em face do Estado-juiz. Logo, “considera-se existente a pretensão acusatória e o próprio processo penal, ainda que absolvido o réu” (LOPES JR., 2007, p. 94). Apesar de serem órgãos do mesmo Estado, “o poder de penar é do Estado-juiz, não do acusador” (LOPES JR., 2007, p. 94). Ao Ministério Público cabe somente acusar, e não punir.

Em contrapartida, ainda que a pretensão processual penal do Ministério Público não seja resistida pela defesa, mesmo assim haverá processo penal, pois “o que se torna indispensável à existência do processo é a pretensão do autor manifestada em juízo, exteriorizada pelo pedido e delimitada pela causa de pedir ou imputação” (JARDIM; AMORIM, 2016, p. 99).

Isso significa que, “deduzida a pretensão, que é fato jurídico-processual, através do exercício da ação, teremos necessariamente um processo, mesmo que haja reconhecimento formal por parte do réu do direito alegado pelo autor” (JARDIM; AMORIM, 2016, p. 99).

A pretensão processual penal, exercida privativamente pelo Parquet , é o meio pelo qual o Poder Judiciário aplica exclusivamente sua pretensão punitiva. Enquanto a ação penal é o instrumento de exercício da pretensão processual penal, a jurisdição é a forma de aplicação da pretensão punitiva material. 29

O Ministério Público tem “direito ao processo, completamente distinto do poder de punir, que corresponde, exclusivamente, ao Estado-juiz, de forma que o conteúdo da pretensão processual é acusatório, e não punitivo” (BOSCHI, 2015, p. 139).

Dessa forma, a pretensão processual penal visa a postular em juízo a aplicação, pelo Poder Judiciário, de sua pretensão punitiva material. O Parquet não é o órgão estatal titular da pretensão punitiva, mas apenas da pretensão processual penal acusatória, claramente distintas. Sua legitimidade constitucional privativa ao exercício do direito de ação penal ( CF , art. 129 , I) não se confunde com a competência constitucional exclusiva do Poder Judiciário para punir ( CF , art. 5 .º, XXXV). 30

O direito de ação do Ministério Público é autônomo e abstrato, 31 seja porque difere do direito material (pretensão punitiva material), 32 ou por ser independente do reconhecimento de sua postulação. 33 Trata-se de um direito subjetivo público de acesso à justiça, 34 que, exercido ou não, mantém intocável o direito material, pois não se pode dispor daquilo que não se possui. 35

Assim como o direito de ação é autônomo e abstrato relativamente ao direito material, 36 a relação jurídica processual também é diferente da relação jurídica material. 37 O objeto da relação material penal é o fato criminoso e as partes dessa relação são seu autor e vítima/lesado. 38

Por sua vez, o objeto do processo é a pretensão processual penal acusatória, apresentada pelo Ministério Público em face do Estado-juiz, 39 por meio da imputação, 40 a qual corresponde ao ato jurídico processual em que o Parquet requer ao juiz a aplicação da pretensão punitiva. 41

Logo, na pretensão processual, há

[...] uma declaração de vontade por meio da qual uma pessoa reclama de outra, perante um terceiro superordenado a ambas, um bem da vida, formulando em torno dele um pedido bem fundamentado, ou seja, delimitado de acordo com as ocorrências factuais expressamente indicadas (GUASP, 1985, p. 51). 42

Daí nota-se que, enquanto o objeto do processo penal é a pretensão processual penal, o objeto da própria pretensão processual penal é o fato imputado, o qual é apresentado pela correspondente imputação que, normalmente, é operacionalizada pela denúncia, mas também pode se manifestar por um negócio jurídico nos casos de acordos sobre a aplicação da pena.

Por se tratar de processo penal, o objeto da pretensão processual não corresponde exatamente a um “bem da vida” pretendido pelo requerente, mas sim aos efeitos jurídicos decorrentes da prática de uma conduta tipificada como crime.

Há, portanto, uma conexão da pretensão processual penal tanto com a relação jurídica material, gerada pelo ato ilícito cometido, quanto com a relação jurídica processual, estabelecida pela imputação. 43

2.2.1.Tipos e formas de pretensão processual penal

Embora a pretensão punitiva a ser imposta processualmente pelo Estado-juiz demande necessariamente o exercício da pretensão processual penal acusatória pelo Estado-Ministério Público, a recíproca não é verdadeira, ou seja, nem toda pretensão processual penal é acusatória. 44

Em primeiro lugar, do exercício do direito de ação penal advém “um direito de contraposição ao direito de ação”. A reação defensiva corresponde, então, a uma “reação à acusação ou, em outras palavras, como reação à ação proposta pelo Ministério Público ou querelante” (FERNANDES, 2002, p. 26).

Ação penal acusatória e reação defensiva são duas faces da mesma moeda: o direito de ação, 45 pois, “entre o direito de defesa e o direito de ação, não existem diferenças essenciais na estrutura processual que cada um apresenta. O primeiro deduz uma pretensão e o segundo, a resistência a esta oferecida” (MARQUES, 2000a, p. 421).

Desse modo, “do direito de agir e do direito de defesa resultam, assim, poderes e faculdades que se exercitam, analogamente, na relação processual, com as naturais diferenças que o antagonismo de posições provoca” (MARQUES, 2000a, p. 422).

Isso significa que, no processo penal, diante do exercício da pretensão processual penal acusatória pelo Ministério Público, a defesa também manifesta uma pretensão processual penal, 46 como “resistência transformada em contrariedade à pretensão do …

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24 de Maio de 2024
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