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15 de Junho de 2024
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    A existência de uma equipe interprofissional na vara da infância e da juventude.

    há 12 anos

    Mauro Campello

    As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude de 19851 , ao tratar da elaboração das decisões emanadas do juiz que exerce a jurisdição nesse campo, estabeleceram a realizaçãode relatório de investigação social, especialmente, nos procedimentos apuratórios de infrações graves2 atribuídas a jovens, conforme se depreende de sua regra 163.

    A finalidade desse relatório é prover o julgador de uma investigação completa sobre o meio social e as circunstâncias de vida do jovem e as condições em que se deu a prática da infração, para que possa proferir uma decisão justa.

    Foi a complexidade das questões ligadas a infância e a juventude que exigiu a formação de uma equipe técnica junto aos tribunais de menores. Recordo que, inúmeras vezes socorri-me do conhecimento e da capacidade técnica da equipe interprofissional, quando juiz titular da vara da infância e da juventude da capital de Roraima, durante toda a década de 90.

    Tinha a consciência que não era assistente social ou psicólogo de toga. Minha formação era jurídica e, portanto, havia sido preparado na vida acadêmica para as tarefas forenses e composição de conflitos. E, assim, para uma análise mais aprofundada do caso, muitas vezes tornava-se necessário outro olhar, ou melhor, um diálogo com diferentes ramos do conhecimento.

    Logo, possuía a sensatez necessária para colher da equipe interprofissional o estudo de caso, que com critério objetivo e científico, por exemplo, apurava o contexto sócio-econômico-cultural em que se encontrava a criança ou o adolescente, como se deu o evento, ou mesmo, quais as melhores medidas a serem aplicadas. Recorrerà opinião técnica não significa que o juiz perderá parcela de sua autoridade.

    Estas equipes, em seu processo histórico de consolidação, foram compostas num primeiro momento por assistentes sociais, pedagogos, psiquiatras e psicólogos, que passaram a prestar importantes informações ao juiz. Contudo, para atenderaos atuais problemas sociais tem-seincluído novos profissionais comosociólogos e antropólogos.

    Percebe-se nitidamente das Regras Mínimas a preocupação da ONU4 na implantação de serviços sociais na Justiça Tutelar dos Estados Partes, especialmente, para preparação de relatório técnico e especializado para auxiliar o julgador. Daí, a necessidade de especialização dos profissionais que prestarão tais serviços (Regra 22 5).

    1Também conhecida como Regras de Beijing. Foi adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 40/33 de 29.11.1985.

    2Infrações graves são aquelas que integram o seu tipo a violência ou grave ameaça contra pessoa.

    3Regras de Beijing, regra 16 Relatórios de investigação social: 16.1. Para facilitar a adoção de uma decisão justa por parte da autoridade competente, a menos que se tratem de infrações leves, antes da decisão definitiva será efetuada uma investigação completa sobre o meio social e as circunstâncias de vida do jovem e as condições em que se deu a prática da infração.

    4Organização das Nações Unidas ou Nações Unidas é uma organização internacional cujo objetivo é facilitar a cooperação em matéria de direito internacional, segurança internacional, desenvolvimento econômico, progresso social, direitos humanos e a realização da paz mundial. A ONU foi fundada em 1945 após a Segunda Guerra Mundial para substituir a Liga das Nações, com o objetivo de deter guerras entre países e para fornecer uma plataforma para o diálogo. Ela contém várias organizações subsidiárias para realizar suas missões

    5Regras de Beijing, regra 22 Necessidade de profissionalismo e capacitação: 22.1. Serão utilizados a educação profissional, o treinamento em serviço, a reciclagem e outros meios apropriados de instrução

    Esta preocupação, segundo Jason Albergaria6 , visou enfrentar a crise da Justiça de Menores, de dimensão mundial, que teve como uma das causas à insuficiência da estrutura judiciária, ou melhor, a deficiência ou mesmo a inexistência de infraestrutura necessária à aplicação dos instrumentos legislativos em vigor,o que os tornavam letra morta tanto nos países considerados desenvolvidos como nos países em desenvolvimento.

    O Brasil não fugiu a denominada crise da Justiça de Menores. Em muitos Estados não havia sequer a especialização do então juiz de menores, quanto mais à existência de serviço social para auxiliá-lo na aplicação das medidas previstas no Código de Menores de 19797 .O artigo 4º da revogada Lei Tutelar brasileira dispunha sobre a existência de uma equipe técnica que integrava os serviços auxiliares da vara de menores.

    O juiz de menores carecendo deste serviço auxiliar, algumas vezes acabava desconhecendo a personalidade do jovem, o contexto social que estava inserido, a sua dinâmica familiar, as condições financeiras desta, e outros importantes aspectos, e istoprejudicava-lhe na elaboração de uma decisão justa.

    Por outro lado, nos tribunais onde havia um serviço social, a seleção de seus profissionais não era científica e nem existia uma formação especializada contínua de seu corpo técnico. O serviço social era ignorado pelo próprio Poder Judiciário.

    A Constituição Federal brasileira de 1988, buscando colaborar na solução deste problema, elevou a preceito constitucional a exigência de se ter equipe interprofissional nas varas da infância e da juventude9 , quando em seu artigo 96, I, b 10, preceituou que compete privativamente aos tribunais organizar os serviços auxiliares.

    Nesta linha de pensamento, o legislador infraconstitucional reconheceu, nos artigos 15011 e 15112 do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, como serviços necessários ao bom funcionamento da Justiça da Infância e da Juventude os desempenhados pela equipe interprofissional.

    Registra-se que a matéria foi colocadade forma sistemática no capítulo que trata da referida Justiça e na seção referente aos serviços auxiliares. Assim, a atividade a ser desenvolvida pela equipe interprofissional tem como natureza um serviço auxiliar, ou seja, de assessoramento técnico-científico à autoridade judiciária que exerce competência da Justiça Infanto-juvenil.

    para estabelecer e manter a necessária competência profissional de todo o pessoal que se ocupa dos casos de jovens. (...)

    6In Comentários ao estatuto da criança e do adolescente, 2ª edição, Ed. Aide, RJ, 1991, pg. 18/21.

    7Lei nº 6.697, de 10.10.1979.

    8O Código de Menores de 1979 foi revogado pela Lei nº 8.069/90, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).CM, art. 4º - A aplicação desta Lei levará em conta: III o estudo de cada caso, realizado por equipe de que participe pessoal técnico, sempre que possível; (...)

    9Nomenclatura utilizada após a vigência da Lei nº 8.069/90 (ECA).

    10Constituição Federal, art. 96 Compete privativamente: I aos tribunais: (...) b) organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados, velando pelo exercício da atividade correcional respectiva; (...)

    11ECA, art. 150 Cabe ao Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, prever recursos para manutenção de equipe interprofissional, destinada a assessorar a Justiça da Infância e da Juventude.

    12ECA, art. 151 Compete à equipe interprofissional, dentre outras atribuições que lhe foram reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico.

    Em relação a estes serviços, proponho a seguinte classificação: 1) quanto à sua origem: em típicos e atípicos; e 2) quanto à sua forma de manifestação: verbal ou escrito. Chamo de serviços típicos aqueles cujo objeto é atender somente as ações de competência da Justiça da Infância e da Juventude, fornecendo subsídios ao juiz que as preside e as partes envolvidas.

    Wilson Donizeti Liberati, meu particular amigo e colega de Ministério Público (RO), ao comentar em sua obra os serviços auxiliares junto à Justiça Infanto-juvenil, exemplifica vários atendimentos da equipe técnica que se encaixam perfeitamente no que denominei de serviços típicos, como levantar a história da criança ou adolescente, sua vida com a família, o meio onde vive, a infração que cometeu, com a finalidade de detectar a causa social que originou a situação de risco pessoal e de apresentar ao juiz o correspondente laudo13.

    Também são considerados serviços típicos da equipe interprofissional, por força do artigo 151 do ECA, os trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento e prevenção. Amaral e Silva, mestre e amigo de todas as horas, interpretandoa citada norma concluiu que lei de organização judiciária de cada Estado poderá atribuir outras funções típicas à equipe interprofissional, além daquela de funcionar nas perícias ou laudos. Cita como exemplo as atividades de acompanhar as medidas de proteção, realizar tratamento social, orientar e supervisionar a família; promover o entrosamento dos serviços do juizado com os técnicos do Conselho Tutelar; acompanhar a execução das medidas sócio-educativas etc14.

    Neste ponto os tribunais devem estar atentos para não confundirem as competências e não esculpirem em suas leis de organização judiciária a execução de ações de políticas sociaispor meio de sua equipe técnica. Estas ações são de competência do Executivo e das entidades não-governamentais15. A equipe interprofissional compete fiscalizar estas políticas. Caso contrário, seria um desvio de finalidade.

    Se o laudo fornece dados para outro juízo, que não o da infância e da juventude, considero este serviço como atípico, citando como exemplos, os atendimentos para as varas de família, criminais, juizado especial de violência doméstica, justiça itinerante, dentre outras.

    Os serviços atípicos surgem nas leis de organização judiciária dos tribunais que criaram centros ou núcleos de atendimento interprofissional, ampliando os serviços da equipe técnica, sob o discurso de se ajustar as novas necessidades16 . Há registrosde Cortes que, inclusive, incluiu nestes centros a intervenção de casos enviados pelo seu departamento de recursos humanos17 . Penso que tal medida é um retrocesso na luta para implantação de equipe interprofissional especializada nas varas que têm competência da Justiça Infanto-juvenil.

    As manifestações da equipe fornecendo subsídios ao magistrado e as partes poderão ser apresentadas por escrito, mediante laudos ou pareceres, como verbalmente18 , em audiência, situação em que a manifestação deverá ser reduzida a termo (se processo físico) ou gravada (se processo eletrônico).

    13In Comentários ao estatuto da criança e do adolescente, 4ª edição, Ed. Malheiros, SP, 1997, pg. 128/129.

    14In Estatuto da criança e do adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais, 2ª edição, Ed. Malheiros, SP, 1996, pg. 455/456.

    15ECA, art. 86 A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

    16Verificar a experiência do TJRS.

    17Atendimento psicossocial de seus servidores e magistrados, como alcoolismo, drogas, depressão e etc.

    18Op. cit. item 11.

    As funções típicas deverão estar sob a imediata subordinação do juiz que exerça a competência da Justiça da Infância e da Juventude19 . A subordinação que o ECA se refere é tanto de natureza administrativa como técnica, ressalvada a garantida da livre manifestação do ponto de vista técnico20. Por conseguinte, a criação dos tais centros ou núcleos de atendimento interprofissional que ficam subordinados ao Diretor do Fórum ou qualquer outro setor dos tribunais viola frontalmente o artigo 151.

    Inovação salutar acha-se no artigo 150do ECA. O mencionado diploma legal determinou ao Poder judiciário que na elaboração de suaproposta orçamentária, inclua a previsão de recursos para manutenção de equipe interprofissional. Não se trata de uma faculdade, mas de uma obrigatoriedade ao gestor maior do tribunal, sobpena de responsabilidade.

    Assim, o ECA busca não só implantar a exigência de serviço auxiliar ditada pelas Regras Mínimas das Nações Unidas para Administração da Justiça da Infância e da Juventude e pela Lei Maior do país, como também procura dar eficácia as suas próprias normas e operacionalizar o sistema de justiça. Chamo atenção para o fato de que o próprio Estatuto faz várias referências a estudos sociais e a laudos, tanto na esfera penal juvenil como cível, como se observa dos artigos 161,§ 1º, 167 e 186,§ 4º.

    São passados mais de 21 anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente e o cenário previsto na lei para as varas da infância e da juventude não se implementou totalmente. Nemtodos os juízes com competência neste campo têm estruturada em sua Comarca a equipe interprofissional. Noutras Justiças, leis de organização judiciária usurparam destes juízes a subordinação imediata dos serviços típicos de sua equipe técnica, para entregá-la a outras autoridades. Sem falar, que muitos tribunais, na elaboração de sua proposta orçamentária, não preveem recursos para manutenção da equipe interprofissional.

    Dessa forma, o Conselho Nacional de Justiça, no exercício de suas funções fiscalizadora e de planejamento estratégico do Poder Judiciário, em 25.04.2006, percebendo que a crise da Justiça de Menores ainda se prolongava pelo atual sistema, recomendou aos Tribunais de Justiça a implantação de equipe interprofissional, próprias ou mediante convênio com as instituições universitárias, para que possam dar atendimento às comarcas dos Estados nas causas relacionadas à família, crianças e adolescentes21 , e fixou prazo de seis meses para que as providências adotadas fossem informadas.

    A sociedade, agora, quer conhecer as providências adotadas pelos tribunais para implantar as equipes interprofissionais e seus resultados, até porque já se passaram seis anos desta recomendação. Com a palavra o Conselho Nacional de Justiça.

    *

    Professor de Direito da Criança e Adolescente da UFRR, UERR e Atual/Estácio;

    Desembargador do Tribunal de Justiça de Roraima;

    Diretor da Escola Judiciária de Roraima; e

    Foi Presidente da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e da Juventude.

    19ECA, art. 146 A autoridade a que se refere esta Lei é o Juiz da Infância e da Juventude, ou o Juiz que exerce essa função, na forma da Lei de Organização Judiciária local.

    20Op.cit. item 11.

    21CNJ, Recomendação 02 - aos Tribunais de Justiça dos Estados que, em observância à legislação de regência, adotem as providências necessárias à implantação de equipes interprofissionais, próprias ou mediante convênios com instituições universitárias, que possam dar atendimento às comarcas dos Estados nas causas relacionadas a família, crianças e adolescentes, devendo, no prazo de 06 (seis) meses, informar a este Conselho Nacional de Justiça as providências adotadas.

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