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17 de Junho de 2024
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    A porta para a democratização do Judiciário

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    O homem, que, nessa terra miserável,

    Mora, entre feras, sente inevitável

    Necessidade de também ser fera.

    (Augusto dos Anjos, Versos Íntimos)

    Na semana em que comemoramos o dia da Defensoria Pública (19 de maio), Defensoria, Democracia e Judiciário [1] são temas que recomendam intensa reflexão.

    A crise que abate as instituições tupiniquins revela contornos singulares. A legitimidade das autoridades é a todo tempo questionada, colocando em cheque as decisões políticas dos órgãos públicos. A paz social cada vez mais distante e o bem comum uma ilusão utópica. A democracia doente porquanto distante da vontade popular. A Constituição se pulveriza.

    Esse quadro caótico também espelha o funcionamento das instituições do sistema de Justiça. E a Defensoria Pública é a primeira a sofrer os golpes.

    Em perfunctória incursão na história recente, vê-se que o Estado Brasileiro optou por um desproporcional fortalecimento do Estado Acusação, em detrimento do Estado Defesa. Os números são sintomáticos quando comparamos, no orçamento da União, as respectivas destinações de recursos para o Ministério Público e Defensoria Pública. [2]

    E isso, evidentemente, gera consequências. Desprezar a defesa (rectius, a Defensoria) tem preço. O preço de um discurso (inquisidor) sem contraponto, de uma acusação de qualidade sem defesa à altura, de um simulacro de processo, que toma o lugar de um processo justo. [3]

    Isso não significa dizer que a Defensoria seja a panaceia para todos os problemas enfrentados pelo sistema de justiça [4]. Mas, certamente, é o órgão que possibilitará a participação efetiva e o olhar próprio daquela parcela da população que não tem voz, nem vez (os pobres) por um agente público qualificado. [5] (Fale-se aqui, então, da Defensoria Pública enquanto um projeto de Estado, consciente do seu mister constitucional e aberta à população – a Casa da População Vulnerável, a Casa dos Pobres.).

    Pois bem. Exemplo dessa clara opção e desprezo pela Defensoria foi o ajuizamento da ação declaratória de inconstitucionalidade - ADI nº 5296/DF, em 10/04/2015, pela Presidente da República. O pedido é a declaração de inconstitucionalidade da emenda constitucional - EC nº 74 de 2013 (que concedeu autonomia à Defensoria Pública União - DPU), basicamente sob dois fundamentos: vício de iniciativa, porquanto a mencionada EC teria sido iniciada pelo Legislativo e não pelo Executivo Federal; violação ao princípio da separação de poderes.

    O Supremo Tribunal Federal indeferiu a medida cautelar requerida [6]. No entanto, ainda resta o julgamento do mérito da ADI e a preocupação da contaminação com entendimento que conduza a eventual intenção de diminuir ainda mais a Defensoria em sua autonomia constitucional. E esse risco se potencializa a partir dos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio.

    Os argumentos da divergência, basicamente, exsurgem do acolhimento da tese segundo a qual a Emenda Constitucional nº 74, de 2013, teria violado o princípio da separação de poderes, porquanto o Poder Constituinte Derivado teria avançado indevidamente o desenho organizacional do Estado Brasileiro atribuído pelo Constituinte Originário. E que a única exceção à concessão de autonomia funcional e administrativa para órgão estatal estranho aos “Poderes”, teria sido o Ministério Público. O Constituinte Derivado, portanto, não estaria autorizado a ampliar essa “exceção”, sob pena de risco de criação de uma “República Corporativa”, chegando a motivar um dos Ministros à seguinte indagação: A quem interessa enfraquecer a República?” [7]

    O risco de esse entendimento influenciar no julgamento do mérito da ADI é deveras preocupante. E isso representaria um retrocesso histórico em termos de promoção de direitos humanos, de cidadania, em síntese, de democracia. [8]

    Como é fácil perceber, as verdadeiras vítimas dessa possível decisão serão os pobres. Como bem observou o Ministro Luís Roberto Barroso por ocasião do seu voto, teremos pobres bem acusados e mal defendidos”.

    Ademais, não há justificativa, seja do ponto de vista político, seja do ponto de vista jurídico, que autoriza a interpretação emprestada pelos autores dos votos vencidos.

    Ora, a assistência jurídica integral e gratuita – missão que a Constituição confiou à Defensoria (artigo LXXIV c/c 134, da CRFB/88)– configura direito fundamental multifuncional, e, dentre as suas funções, estão a de promover a igualdade (artigo , I, CRFB/88 – construir uma sociedade livre, justa e solidária) e reduzir as desigualdades sociais (artigo , III in fine da CRFB/88), em um casamento de atribuições que possibilite o efetivo acesso à justiça aos necessitados mediante um processo justo [9]. A autonomia funcional e administrativa, portanto, é corolário lógico dessa missão constitucional. O direito a ter direitos.

    E o fortalecimento do Estado de Defesa, enquanto exigência do Estado Democrático de Direito, busca o equilíbrio da balança do sistema de justiça, instrumentalizando o acesso à população pobre e vulnerável aos mais variados espaços de poder, em especial ao Judiciário. E, ainda, estabelecendo patamar de discussão tendente a influenciar as decisões de magistrados e promotores em prol dos necessitados [10].

    E também e, principalmente por isso, a autonomia funcional e administrativa concedida à Defensoria Pública é constitucional, sob o aspecto da interpretação histórica ou da evidência de não violação do princípio da separação de poderes.

    Voltando no tempo há alguns anos atrás, verificaremos que as discussões que envolveram o tema Defensoria Pública na Assembleia Nacional Constituinte [11], permitirão verificar que já ali se advogava a necessidade de autonomia para que a Defensoria Pública fosse capaz de cumprir com êxito sua destinação constitucional. Esse fato, por si só, é suficiente para afastar a tese no sentido de que a EC 74/2013 (também nessa linha a EC 80/2014) teria violado o desenho organizacional do Estado Brasileiro, logo, o princípio da separação dos poderes. Em verdade, o Constituinte Derivado apenas quitou uma promessa histórica outrora feita pelo Constituinte Originário ao povo brasileiro, em especial aos necessitados. [12]

    Noutro giro, é preciso observar que o princípio da separação de poderes exige releitura a partir da dinamicidade e complexidade da sociedade contemporânea, já que forjado em ambiente cultural distinto do atual.

    E a análise sob esse aspecto histótico-cultural revela sua importância quando nos deparamos com o fato relativo à resistência apresentada contra a fórmula de Montesquieu - que reconheceu independência ao Poder Judiciário, a despeito dos estudos de Locke, que não chegara a descortinar força própria de separação ao mencionado Poder. As críticas vieram no sentido de que o poder dividido não era poder, logo, careceria de força, sobretudo se necessária sua intervenção em crises nacionais. [13]

    Ve-se que o Poder Judiciário, hoje reconhecido como guardião da Constituição, instrumento do princípio democrático, no passado, teve sua independência/autonomia também sob a mira da desconfiança. (Em verdade, a desconfiança está na natureza humana, não na divisão orgânica de “poder”.).

    A separação de poderes, portanto, não é uma fórmula fechada, rígida, universal, padronizada, e denota peculiaridades de país para país. É uma fórmula cultural, pois. [14]

    Disso decorre que, em um país com abissal e escandalosa desigualdade social, a Defensoria Pública deveria ser mais do que um “Poder”, mas a porta e a ponte que permitirá o ingresso (físico, até) dos miseráveis, dos pobres, dos vulneráveis nos palácios dos poderosos. Aparentemente paradoxal, ainda mais uma vez, a lição de Amilton Bueno de Carvalho, no sentido de que a Defensoria Pública “deve ser contrapoder (Daniel Lozoya), limitadora do abuso de poder, parceira do débil!” [15]

    Espera-se da Suprema Corte a postura de defesa do povo pobre brasileiro. E essa defesa é expressão do fortalecimento da Defensoria Pública.

    Por fim, mitigar a autonomia conferida à Defensoria ao argumento de violação ao princípio da separação de poderes, além de denotar desprezo aos direitos (iguais) dos pobres e vulneráveis, desequilibra ainda mais a balança do sistema de justiça, e, ainda, afetará também o Ministério Público (e o próprio Judiciário – que muito se utilizou da denominada simetria constitucional entre os órgãos) relativamente ao alcance da sua autonomia e da chamada simetria para com o Poder Judiciário (via de mão dupla), já que na mesma linha da EC nº 45/2004 e da EC nº 74/2013, a EC nº 19/1998 e a própria EC nº 45/2004 alteraram a redação de diversos artigos relativos ao regime jurídico do Ministério Público, dentre eles o já famoso artigo 129, § 4º, ponto de partida do alcance da chamada simetria constitucional entre os estatutos da magistratura e do Ministério Público.

    Preferimos acreditar que a Suprema Corte enfrentará a questão com sabedoria e sensibilidade social. A Defensoria Pública é instrumento de acesso à justiça destinada aos necessitados, às populações vulneráveis. Nesse sentido, as EC’s 45/2004 e 74/201316 apenas emprestaram concreção a importante direito fundamental, portanto cumprindo mandamento constitucional originário.

    Já é mais do que passada a hora de o Estado Brasileiro compreender a importância do fortalecimento da Defensoria Pública e o seu papel fundamental no equilíbrio do sistema de Justiça. Somente uma Defensoria forte poderá fazer frente aos intermitentes ataques às garantias constitucionais e ao sagrado direito de defesa, primando sempre pela promoção dos direitos humanos.

    A Defensoria é parcial! Sempre estará ao lado do mais fraco, do vulnerável, do injustiçado! É a Casa da população vulnerável! É a Casa do povo pobre!

    Claudio L Santos é Defensor Público Federal, Membro do Grupo Nacional de Trabalho para promoção de direitos das Pessoas em Situação de Rua, Membro do Grupo Nacional de Trabalho para promoção de direitos das Catadoras e dos Catadores.
    Foto: SP Invisível
    REFERÊNCIAS 1 No dia 18 de maio o Plenário do STF retomará o julgamento da ADI 5296/DF, que questiona a autonomia da Defensoria Pública da União. 2 O orçamento de 2015, por exemplo, a DPU conta com pouco quatrocentos milhões de reais, enquanto que o MPU supera os cinco bilhões de reais. Mais informações sobre (falta de) estrutura da DPU no endereço: http://www.dpu.gov.br/images/stories/arquivos/PDF/Mapa_dpu_2015_web.pdf 3 Assistimos estarrecidos o ressurgimento de um indesejável Estado Policial, a criminalização dos movimentos sociais, a criminalização da defesa criminal, a defesa do discurso da lei e da ordem e do direito penal como panaceia dos problemas sociais. 4 Equilíbrio de forças que pode ser positivo tanto para o Judiciário quanto para o Ministério Público, porquanto “o novo no espetáculo jurídico” de que falou Amilton Bueno de Carvalho. In Defensoria Pública entre o velho e o novo”. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/guldfisken/398144161 5 Em outra perspectiva, na figura de amicus communitas, de que fala Edilson Santana Gonçalves Filho na tese Defensoria Pública: Amicus Communitas. Disponível em:www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/25706/Edilson_Santana_Gon_alves_Filho.pdf 6 Por oito votos a dois (vencidos os Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio), o Plenário do STF indeferiu a medida cautelar requerida, j. 18.05.2016. 7 Indagação feita pelo Ministro Marco Aurélio por ocasião do julgamento que apreciava a medida cautelar da ADI 5296, em 22.10.2015. 8 Com a declaração de inconstitucionalidade, a DPU retornará ao espaço do Poder Executivo, como um braço do Ministério da Justiça - MJ, totalmente dependente e de “pires na mão”, numa existência “emergencial e provisória” (Lei nº 9020/1995), que até hoje carregamos! (A DPU permaneceu nessa condição de provisoriedade durante 20 anos. Sem carreira de apoio até hoje. Sem estrutura até hoje. Sem interiorização até hoje. A DPU está em menos de um terço das localidades onde estão a Justiça Federal e o Ministério Público Federal, por exemplo). Para maior aprofundamento, ADI 5296: O dilema de um Governo social contra os pobres. Disponível em: http://racismoambiental.net.br/?p=178478 9 Canotilho, J.J. Gomes, Mendes, Gilmar F., Sarlet, Ingo W., Streck, Lênio L (coord.). Comentários à Constituição do Brasil, São Paulo - Saraiva, 2014, pag. 491-492. 10 Bobbio, Noberto. Estado, Governo e Sociedade – Para uma teoria geral de política. Rio de janeiro : Paz e Terra. 1987. 11ª edição. Pag. 76-78. 11 Para maiores detalhes, conferir estudo realizado pelo Defensor Público Jorge Bheron Rocha – Defensoria Pública autônoma é escolha consciente e coerente pela Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/agenciasenado/4987466247 12 Maia, Maurilio Casas. Autonomia - Promessa do Constituinte à Defensoria e um débito histórico quitado. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/agenciasenado/17824720825 13 Martins, Ives Granda da Silva. Uma breve Teoria do Poder. 2ª ed. São Paulo : RT, 2011, pag. 25-26. 14 Canotilho, J.J. Gomes, Mendes, Gilmar F., Sarlet, Ingo W., Streck, Lênio L (coord.). Comentários à Constituição do Brasil, São Paulo - Saraiva, 2014, pag. 145. 15 Carvalho, Amilton Bueno de. In Defensoria Pública entre o velho e o novo”. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/guldfisken/398144161 16 A EC 74/2014 pode ser entendida como uma espécie de “EC integrativa”, já que corrige uma teratologia constitucional criada pela EC 45 (frise-se que a PEC previa também autonomia para a DPU, que foi retirada de última hora). É ainda importante dizer que essa EC (45) já foi objeto de questionamento, inclusive, quanto à iniciativa (ADI 3367/DF) e o STF, na ocasião, entendeu-a constitucional (embora, nesse caso, o vício alegado considerava a iniciativa do Judiciário).
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