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2 de Maio de 2024
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    Direito Penal do fato e Direito Penal do autor no caso dos 23

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    No último dia 17 de julho, o juiz da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro prolatou sentença na qual condenou 23 envolvidos em manifestações nos anos de 2013 e 2014, que culminou, inclusive, com a morte de um cinegrafista de uma grande emissora de televisão. A decisão condenatória deve ser motivo de reflexão, na medida em que se constitui numa verdadeira centelha a reacender a discussão sobre a prática daquilo que é recorrentemente chamado de Direito Penal do Autor, aliada à atuação discricionária do magistrado na dosimetria da pena. Aliás, esta decisão já foi alvo de intervenções brilhantes dos professores Lenio Streck[i] e Leonardo Isaac Yarochewski[ii].

    A denúncia formulada pelo Ministério Público, segundo o relatório da sentença, imputava aos acusados a prática de fatos delituosos previstos no artigo 288, parágrafo único, do Código Penal. A pena para este delito é de 1 a 3 anos de reclusão, podendo ser aumentada até a metade em razão da causa de aumento de pena prevista no parágrafo único do mesmo artigo. No entanto, no dispositivo o magistrado condena os acusados com base na denúncia, além de também aplicar a pena prevista no artigo 244-B da Lei nº 8.069/90, na forma do art. 69 do Código Penal (concurso material).

    Como foi feita a exposição do fato criminoso, referente ao artigo 244-B da Lei nº 8.069/90, com todas as suas circunstâncias? Esta questão merece uma resposta. Segundo Aury Lopes Jr, o objeto do processo penal é a pretensão acusatória. Logo, a sentença não pode ter conteúdo diverso, que não faça parte da imputação.[iv] Portanto, inobservou-se uma disposição elementar da lei processual, essencial para o exercício da ampla defesa e do contraditório, garantias constitucionalmente albergadas. Se não há uma acusação formal, não há instrumentos cabíveis para a defesa se contrapor às imputações.

    No entanto, o que mais chama a atenção na sentença (o que é objeto de inúmeras críticas) é a forma com a qual o juiz avalia a personalidade dos agentes. Segundo a sentença, todos os acusados possuem “personalidade distorcida, conduta social reprovável, voltada ao desrespeito aos Poderes constituídos, particularmente ao Executivo”. Para 16 acusados, o magistrado usa a mesma dosimetria e assim discorre:

    […] a dosimetria das penas há de ser idêntica, pois, além de todos, pelo que consta de suas FACs, serem primários e não poderem ser considerados com maus antecedentes, as circunstâncias judiciais são as mesmas, as circunstâncias legais (agravantes e atenuantes) inexistem e a causa de aumento de pena do crime do art. 288, parágrafo único, do Código Penal incidirá para todos.

    Como fica a garantia da individualização da pena, prevista no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição? Pode haver uma generalização e aplicar a mesma pena no atacado? É de causar perplexidade a utilização de expressões do tipo “personalidade distorcida e conduta social reprovável”. O que é personalidade distorcida? Este tipo de fundamento não leva em conta o que o acusado faz, mas o que ele é. Aliás, o artigo 59 do Código Penal merece uma crítica contundente, pois traz elementos atinentes ao sujeito e não ao fato imputado. Faz menção ao fato dos acusados serem de classe média e destaca que os mesmos “não trilha (m) o caminho da ética e da honestidade”. Segundo o magistrado, por serem de classe média não deveriam delinquir. O juiz, na fixação da pena, ignora elementos imprescindíveis concernentes à culpabilidade dos agentes. Como bem explica Claus Roxin, a culpabilidade, para o estabelecimento de uma pena, deve se se ater ao fato imputado, às suas conexões e, portanto, ao conjunto de momentos que possuem relevância para a pena como um todo no caso concreto. [v]

    O magistrado deveria, ao prolatar a sentença, analisar elementos essenciais da culpabilidade dos agentes. A culpabilidade vista como juízo de reprovação, fundada: a) na imputabilidade, como condições pessoais mínimas que capacitem o agente para saber e para controlar suas ações; b) no conhecimento do injusto, como o saber, de forma consciente, o que faz; e c) na exigibilidade de comportamento diverso, que consiste na normalidade das circunstâncias relativas ao fato criminoso que indicam um poder de escolha de não praticar o delito.[vi] No entanto, o juiz preferiu abordar situações absolutamente alheias às circunstâncias fáticas, como a situação social dos acusados, considerando-os desonestos e com personalidade distorcida – expressão vaga.

    É bem verdade que a repercussão dos fatos objeto da sentença foi grande, gerando comoção nacional em razão da morte de um cinegrafista de uma grande emissora de televisão. No entanto, as pressões midiáticas e os gritos da sociedade por vingança não podem influenciar a decisão de um juiz. As práticas autoritárias, que caracterizam a atual conjuntura nacional, dão força ao Direito Penal excludente e seletivo que perdura ao longo de séculos. Após três décadas de Estado Democrático de Direito, inaugurado pela Constituição de 1988, ainda não há sinais de um Direito Penal do Fato, que venha suplantar um Direito Penal do Autor, excludente, preconceituoso, racista, discricionário e arbitrário. Esta discussão precisa ocorrer já nos bancos das faculdades de Direito e nas diferentes arenas de discussão.

    Rodrigo Medeiros da Silva é Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas.

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