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16 de Junho de 2024
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    Janaína: mutilada em nome da lei

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    2018: 70 anos da Promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 70 anos do estabelecimento de uma “ética universal” pela Assembleia Geral das Nações Unidas.

    Após viver os horrores no nazismo e da guerra, os povos deram-se conta de que o ser humano deve ser o centro do universo e um fim em si mesmo. Foi considerado “essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei” (preâmbulo). A partir daquele momento, os Estados deveriam zelar para que seus cidadãos tivessem respeitados seus direitos fundamentais. Buscou-se cravar um limite para toda e qualquer ação do Estado que pudesse de alguma forma atingir indevidamente a vida e a liberdade das pessoas.

    Ação de obrigação de fazer ajuizada pelo Ministério Público[1]. São réus Janaína e o Município de Mococa. Ela, mãe de cinco filhos, hipossuficiente e dependente química. O serviço de saúde recomenda a laqueadura tubária. Janaína não adere ao tratamento – apesar de, às vezes, manifestar interesse. É requerida a realização do procedimento “mesmo contra sua vontade”[2].

    Uma mera menção ao artigo da Lei n. 9.263/96 (trata do planejamento familiar). Nada sobre o parágrafo único do artigo 2º (proíbe ações de controle demográfico), artigo 9º (garante a liberdade de opção), artigo 10, I (prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação de vontade e o ato cirúrgico e aconselhamento por equipe multidisciplinar) e parágrafo 1º (manifestação de vontade em documento escrito e firmado e informação a respeito da irreversibilidade da cirurgia). Nada sobre o livre planejamento familiar (art. 226, § 7º, CF). Nada. Junto da inicial, nenhum documento médico.

    Leia também: A dor da gente não sai no jornal… – o caso de Janaína

    O juiz afasta os pedidos e julga antecipadamente o feito. Determina que se realize a laqueadura “assim que ocorrer o parto”[11]. Ignora expresso texto do art. 10, § 2º, da Lei n. 9.263/96: “É vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade”.

    O Município de Mococa apresenta recurso de apelação[12]. Demonstra a incorreção da sentença. Lembra que a esterilização é medida excepcional, e que a lei proíbe que seja feita de forma involuntária. Ministério Público informa que a ré está presa por tráfico de drogas (comentários abaixo) e requer expedição de ofício ao estabelecimento para a realização de laqueadura no momento do parto[13]. O juiz, como não poderia deixar de ser, acolhe[14].

    No mesmo dia (14 de março) em que o desembargador elabora seu relatório do processo[15], vem aos autos informação da realização da laqueadura no corpo de Janaína[16].

    Dias depois, o processo é anulado pelo Tribunal de Justiça[17]. O 2º Juiz dá uma aula de direito[18]. Tarde demais. Estrago feito. Silêncio sepulcral nos autos do processo após a juntada do acórdão. E o calvário de Janaína ainda está longe do seu fim.

    10 de novembro de 2017. A polícia civil de Mococa, munida de mandado de busca domiciliar, ingressa na residência de Janaína e de seu companheiro Cristiano[19]. Há no imóvel outras quatro pessoas (uma é adolescente, filha de Janaína). São encontradas 45 porções de cocaína (peso total: 48 gramas) no bolso de uma calça masculina pendurada no banheiro. Ninguém assume a propriedade da substância. Porém, “pela quantidade e também por serem os indiciados conhecidos nos meios policiais pela prática do tráfico de drogas, tratei de dar a eles todos voz de prisão”, relata o policial civil[20].

    Janaína é presa por tráfico de drogas e associação ao tráfico. Nenhum dos indiciados apresenta sua versão dos fatos na Delegacia de Polícia; preferem o silêncio. Embora sejam todos tratados como “conhecidos traficantes”, Janaína não registra outros processos ou condenações criminais em sua folha de antecedentes[21].

    Na audiência de custódia, o juiz decreta a prisão preventiva de todos os autuados[22], ao argumento de que “nada indica que estariam [os policiais] a inculpar inocentes por conduta tão grave, como se não tivessem criminosos o bastante para se ocupar”. Menciona ainda que “o tráfico está nas ruas, nas escolas, nas casas de família”, não havendo “lugar seguro em que os filhos do cidadão de bem [essa foi demais] possam estar livres da ingerência perniciosa de um mercador de entorpecentes”[23].

    Confirma que não deve obediência a “decisões e leis abstratas”, que, em seu entender, seriam “alheias ao fim social das instituições”. Argumentos de mero apelo retórico, baseados na gravidade em abstrato do crime, que não podem ser usados para fundamentar a prisão preventiva, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal[24]. A presunção de inocência passa longe. Janaína é denunciada junto aos demais por tráfico e associação ao tráfico[25]. Como testemunhas, somente dois policiais civis que participaram da ocorrência.

    Na sentença condenatória[26], o magistrado (o mesmo que determinou a laqueadura compulsória) condena os quatro réus. Assevera que os policiais confirmaram que “a delação que embasou a busca (…) dava conta de envolvimento de todos os acusados com o tráfico”, e que “as falas dos policiais foram harmônicas e isentas de contradições (…), merecendo pleno crédito”. O réu Cristiano admite em juízo que a droga lhe pertencia. Natural, pois morava na residência e as porções estavam numa calça masculina. Mas é em vão. Todos são presumidamente culpados pela guarda da droga. Mas não é só.

    Depois, cita acórdão do Tribunal de Justiça paulista que, dentre outras coisas, diz que o juiz “não pode se permitir nenhuma ingenuidade”, que se deve “valorizar os indícios” quando a “prova direta é muito difícil senão quase impossível” e que o silêncio é atitude significativa, pois a reação natural de um inocente é “proclamar veementemente a sua inocência”[27]. Nega aos acusados o benefício da diminuição de pena (art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/06). Tudo de forma genérica.

    Sem citar a conduta e as peculiaridades de cada um dos réus. As penas variam de 8 anos a 12 anos e 8 meses de reclusão. Para Janaína, 8 anos e 10 meses. É mantida sua prisão preventiva. Seis filhos sem a mãe. Não é difícil imaginar o futuro deles.

    Casos isolados? Longe disso. É a guerra às drogas fazendo mais algumas vítimas. Vítimas humanas, pois as drogas… essas permanecem mais fortes e presentes do que nunca.

    Quando (e se) a sentença for reformada (como parece ser o mais correto), assim como no caso da “laqueadura compulsória”, novamente será tarde demais.

    Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador (Transforma MP) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e membro do Movimento LEAP-Brasil – Agentes da Lei contra a Proibição.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/janaina-mutilada-em-nome-da-lei/589492427

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