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16 de Junho de 2024

Nosso Corpo e o Estado

Uma análise sobre o caso Fausto Silva

Publicado por João Augusto Limeira
há 9 meses

FOTO: Foto: Marina Agostine/ Revista Oeste

Na última terça (12), os familiares do apresentador Fausto Silva estiveram na Câmara dos Deputados para defender o que denominaram "doação de órgãos automática". O apresentador, receptor de um coração transplantado recentemente, se comprometeu a "conscientizar cada um a colaborar, para que todo mundo transforme o Brasil em um campeão de doadores", segundo ele. Uma atitude nobre e rica de empatia.

Antes de trazermos à luz do Direito toda essa questão, é importante contextualizar a atual situação da doação de órgãos no Brasil. O Brasil é o vice-líder em realização de transplantes no mundo, os EUA lideram. Apenas em 2021, segundo dados do Ministério da Saúde, foram feitos mais de 23 mil procedimentos. Cerca de 4,8 mil foram transplantes de rim, 2 mil de fígado, 334 de coração e 84 de pulmão, entre outros. Um dos principais pontos aqui é a recusa da doação por parte dos familiares, mesmo que o indivíduo já tenha manifestado sua vontade em vida. Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), 43% das famílias recusaram a doação de órgãos de seus parentes após morte encefálica comprovada em 2021. Para ajudar nessa conscientização, o Ministério da Saúde tem realizado esforços constantes no sentido de esclarecer a importância da doação e como isso pode ajudar diversas pessoas que necessitam urgentemente. E é exatamente nesse cenário que a proposta da família do apresentador Fausto Silva se apresenta. Mas afinal, já existe uma regulação clara sobre a doação de órgãos no Brasil? Existe.

A Lei nº 9.434. de 04 de fevereiro de 1997 dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Em seu artigo 4.º a lei disserta sobre a autorização do transplante post mortem.

Art. 4º A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte.

Em resumo, temos que existe a necessidade clara e oficial por parte de parentes de primeiro grau para que o transplante seja realizado. Em nenhuma parte da lei cita o desejo do morto em relação ao procedimento, mas é razoável pensar que a família, caso opte pela doação, esteja em total alinhamento com os desejos daquele indivíduo em vida.

A alteração defendida pela família do apresentador, o PL 1774/2023, tem a autoria dos deputados Maurício Carvalho (UNIÃO/RO) e Marangoni (UNIÃO/SP). Segundo o projeto, a doação de órgãos já teria uma autorização presumida, ou seja, caso o indivíduo não manifestasse em vida seu desejo de não ter seus órgãos doados, presumi-se a sua concordância para posterior doação. De forma literal, diz o projeto, modificando o mesmo art. 4º:

Art. 4º Nos termos desta Lei, presume-se autorizada a doação post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para transplantes ou outra finalidade terapêutica. Salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos desta Lei.

O § 1º do mesmo artigo dispõe que:

§ 1º Todo indivíduo que não desejar dispor de seus órgãos, tecidos ou partes do corpo para a doação referida no caput deverá registrar em documento público de identidade, o seu desejo de não ser doador de órgãos e tecidos.

Em uma primeira análise, é possível observar o caráter benéfico do projeto e suas consequências, mas há que se refletir sobre pontos fundamentais no tema que, por sua vez, me inquietam bastante. Posto que os artigos e do Código Civil dissertam sobre o início e o fim da personalidade jurídica no momento da morte, teria o estado o poder coercitivo de atuar em relação àquele indivíduo, mesmo após sua morte? Antes de nascermos, nós já temos uma determinação do estado sobre qual será o destino do nosso corpo post mortem. Até que ponto isso fere princípios fundamentais, como o da autonomia, por exemplo?

De acordo com Leurério Leutério et al. (2020)

A autonomia trata da capacidade que as pessoas têm para se autodeterminar, livres de influências externas que as controlem ou de limitações pessoais que as impeçam de realizar suas próprias escolhas. Ou seja, um indivíduo autônomo age livremente, quando não há nada que o impeça de fazer opções, nem mesmo a ausência de informação sobre sua condição .

Entramos aqui em uma questão filosófica bem intrigante. Ora, mas se, segundo o projeto, o indivíduo têm a possibilidade de manifestar em vida a sua vontade de não doar, como isso fere o princípio da autonomia? Essa é uma pergunta esperada ao olhar apenas por uma ótica. Analisando de forma um pouco mais completa sobre a vontade do indivíduo, é possível perceber que ela em nenhum momento é neutra, visto que depende de sua manifestação negativa para que a doação não seja feita, ou seja, caso não se manifeste, o estado, de forma coercitiva, pode agir, assumindo como positiva a vontade do morto.

De acordo com Pereira Jr. Et al. (2018), o conceito de autonomia deve ser considerado em duas vertentes distintas, quais sejam: autonomia privada e autonomia da vontade. Sendo a primeira delas o poder que é concedido pelo Estado a um indivíduo ou a um grupo, para que possam criar, modificar ou extinguir direitos em situações jurídicas, a partir de limitações criadas pelo ordenamento jurídico. Enquanto a segunda vertente diz respeito ao conceito de foro íntimo, que denota a própria vontade do indivíduo.

E é exatamente nessa autonomia de vontade que o projeto de lei, ao meu ver, encontra um embate claro. A Constituição Brasileira ,em seu artigo 5º, Inciso II, temos que:

II — Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Caso aprovado, o projeto tornaria Lei a doação presumida e, portanto, totalmente de acordo com o texto da CF mencionado. Mas até que ponto vai a nossa liberdade individual contida no artigo e seus incisos? Determinar uma doação automática de órgãos sem anuência do indivíduo em vida presumindo que, caso não manifeste negativa, a doação deve ser feita, não fere o limite de até onde o estado pode legislar sobre o nosso próprio corpo?

Essa é uma reflexão que julgo fundamental, visto a repercussão do acontecido e suas repercussões jurídicas futuras.

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BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03 /constituição /constituição.htm Acesso em: 13 set. 2023

BRASIL. Lei N 10.406, de 10 de Janeiro de 2002, Código Civil Brasileiro. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm Acesso em 13 de set. 2023.

KEYD, Fernanda Borges. Até que ponto, no Brasil, é permitido o exercício da autonomia sobre o próprio corpo?, 2021. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/depeso/356153/ate-que-pontoepermitidooexercicio-da-autonomia-no-proprio-corpo>. Acesso em: 13 set. 2023

LEUTÉRIO, Alex Pereira et al. Bioética das Relações. Noções preliminares: origem, evolução e conceito de Bioética. In: Bioética, direito e medicina/editores Cláudio Cohen, Reinaldo Ayer de Oliveira; editores associados Alex Pereira Leutério…[et al.]. 1ª Edição. Barueri: Manole, 2020.


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