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1 de Maio de 2024

A problemática da aplicação do dolo eventual ao homicídio no trânsito

Breve discussão acerca da divergência na aplicação dos institutos do dolo eventual x culpa consciente nos homicídios comedidos por condutor embriagado.

Publicado por Pedro Young
há 8 anos

A problemtica da aplicao do dolo eventual ao homicdio no trnsito

Nas últimas semanas foram várias as reportagens jornalísticas abordando a discussão acerca de homicídio cometido por condutor embriagado.

Há na doutrina e jurisprudência uma enorme discussão sobre a subsunção típica da conduta: código de penal ou código de trânsito? Dolo eventual ou Culpa Consciente?

Antes de apresentar qualquer opinião, importante conceituar ambos institutos.

O dolo eventual, previsto no art. 17, I, parte final do Código Penal, nada mais é do que o agente prever a possibilidade da produção do resultado e ainda sim prosseguir na sua conduta, assumindo o risco de produzi-lo. Note-se que o agente não deseja o resultado (dolo direto), apenas age mesmo sabendo o risco que possa se produzir, conformando-se, assim, com o resultado. Ele prevê e assume o risco.

A culpa consciente, por sua vez, é modalidade de culpa prevista no art. 17, II do Código Penal, onde o agente age acreditando ser capaz de evitar o resultado típico, confiando em suas habilidades, mas produz o resultado por imprudência, negligência ou imperícia. Há a clara consciência da infração ao dever de cuidado ou cautela, entretanto, o agente não aceita a produção do resultado danoso, ou seja, apesar de prever, ele não confia na produção do resultado.

Acerca da distinção entre a culpa consciente e o dolo eventual, Cesar Roberto Bitencourt, Código Penal Comentado. 5ª Ed. São Paulo. Editora Saraiva, 2009. P. 54. Leciona:

Na hipótese de dolo eventual, a importância negativa da previsão do resultado é, para o agente, menos importante do que o valor positivo que atribui à prática da ação. Por isso, entre desistir da ação ou praticá-la, mesmo correndo o risco da produção do resultado, opta pela segunda alternativa. Já na culpa consciente, o valor negativo do resultado possível é, para o agente, mais forte do que o valor positivo que atribui à prática da ação. Por isso, se estivesse convencido dessa possibilidade, calcula mal e age. No dolo eventual, o agente decide agir por egoísmo, a qualquer custo, enquanto na culpa consciente o faz por leviandade, por não ter refletido suficientemente.

E qual a classificação para o condutor que comete homicídio na condução de veículo em razão da embriaguez? Há na jurisprudência muita discussão e divergência sobre a matéria:

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. ATROPELAMENTO COM MORTE. CONDUTOR EMBRIAGADO. RÉU DENUNCIADO POR HOMICÍDIO DOLOSO. AUSÊNCIA DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO MANTIDA. 1. Tratando-se de homicídio cometido por condutor de veículo automotor embriagado, somente incide a competência do júri quando demonstrada a embriaguez preordenada, ou seja, que o agente se embebedou para cometer o crime. 2. Não havendo prova nos autos que o réu se embebedou para praticar o ilícito ou assumiu o risco de produzi-lo, afasta-se a tese de dolo eventual. 3. Recurso conhecido e desprovido.

(RSE: 20131210027262, Relator: JOÃO BATISTA TEIXEIRA, Data de Julgamento: 03/12/2015, 3ª Turma Criminal, Data de Publicação: Publicado no DJE: 10/12/2015. Pág.: 94)

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - TRIBUNAL DO JURI - HOMICÍDIO NO TRÂNSITO - PRONÚNCIA DO RÉU - PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA - INVIABILIDADE - INEXISTÊNCIA DE PROVA INEQUÍVOCA - INDÍCIOS DE AUTORIA - DOLO EVENTUAL - EMBRIAGUEZ AO VOLANTE - EXCESSO DE VELOCIDADE - DESRESPEITO À SINALIZAÇÃO DE TRÁFEGO - HABILITAÇÃO PARA DIRIGIR SUSPENSA - DECISÃO DO TRIBUNAL DO JÚRI - PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE.

[...]

2. Na espécie, não se mostra evidente a tese de ausência de dolo eventual, visto existirem nos autos elementos probatórios aptos a sustentar a tese acusatória de modo a autorizar a pronúncia, ao apontarem estar o acusado dirigindo de madrugada em velocidade excessiva, sem observar as condições de tráfego, sob a influência de álcool e com a habilitação suspensa para dirigir devido à embriaguez ao volante.

3. Se existem dúvidas quanto ao animus do agente do crime doloso contra a vida, na modalidade de dolo eventual, ante a inexistência de prova peremptória capaz de afastá-lo de pronto, deverão ser suprimidas pelo Tribunal do Júri, órgão competente para julgamento da matéria. Precedentes.

4. Recurso conhecido e não provido.

(Acórdão n.640381, 20110710095516RSE, Relator: HUMBERTO ADJUTO ULHÔA, 3ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 06/12/2012, Publicado no DJE: 10/12/2012. Pág.: 342)

Entretanto, há uma tendência equivocada de se levar todos os casos para a modalidade de dolo eventual, com pena severa e julgamento pelo Conselho de Sentença do Júri Popular.

Ouso discordar.

A uma, porque fora teoricamente, é impossível se provar a vontade de qualquer agente, devendo-se incidir o brocardo do “in dubio pro reo”, assim, aplicando-se o que for mais favorável ao réu, neste caso, a culpa consciente.

A duas, porque a qualificação de dolo eventual não permite a hipótese de ausência de previsibilidade do resultado, inerente ao consumo moderado de bebida alcóolica, salvo aqueles casos de embriaguez preordenada e voluntária.

A três, não vejo, nos instrumentos de prova possíveis e disponíveis no processo penal nada capaz de se mensurar elemento volitivo do agente, e eventualmente aceitar a tese de dolo eventual.

A quatro, porque a prática ainda não me convenceu que a combinação de ingestão moderada de bebida e condução de veículo, por si só, são aptas a qualificar o dolo a título eventual.

Quanto ao último argumento, esclareço. Não desconheço nem deslegitimo o movimento social por uma punibilidade mais rigorosa aos condutores embriagados que, na direção de veículo, ceifam vidas após a ingestão de bebida alcóolica. Entendo e valorizo o propósito, e apoio o movimento “não foi acidente”.

Penso, com o devido respeito dos que divergem, que a finalidade da pena não estaria respeitada se apenas aplica-se o dolo eventual, e submete-se o acusado a júri popular, dando à pena um caráter meramente retributivo, o que não se admite.

A pena não é um fim em si mesmo. Aplicar-se indiscriminadamente a hipótese de dolo eventual é ignorar a conduta do agente, seus elementos e desígnios, afastando-se perigosamente da punibilidade nos exatos limites de sua culpabilidade, e aproximando-se de um direito penal do inimigo odioso.

A pena, a meu ver, tem sim um caráter misto, retributivo e preventivo, visando dar concretude ao mandamento inserto na parte final do art. 59, do Código Penal:

Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime

Assim, ainda que de forma isolada, mantenho o entendimento que trata-se de casos de típica aplicação da teoria da culpa consciente. O agente acredita que a ingestão de bebida alcóolica não foi suficiente de suprimir-lhe as habilidades para a condução de veículo. Ninguém bebe ou deixa de beber e assume que pode atropelar alguém ou matar alguém em uma colisão. Não existe como dimensionar isto, sob pena de mitigar o próprio conceito de dolo eventual, alargando-o em demasia.

O crime doloso nasce no subjetivo e se torna objetivo. O crime culposo nasce do objetivo e se torna subjetivo. Depois do crime culposo ocorrido, o réu põe a mão na cabeça e se pergunta como pode ter acontecido isso com ele. É a hipótese dessa discussão.

Para mim, como dito, a combinação álcool e direção é em muito distante de qualquer hipótese de dolo eventual, salvo se combinada com outros elementos de culpa, como exemplo, o excesso de velocidade em via urbana ou residencial, a circulação de pedestres, ou a violação da segurança viária por qualquer outro meio.

O novo projeto de Código Penal e alguns Projetos de Lei em Trâmite pretendem recrudescer a pena base do homicídio praticado por condutor embriagado para 04 anos e a pena máxima para 08 anos, saindo do patamar mínimo de 02 anos. Penso ser a solução para diversos problemas.

Primeiro, porque impede a sensação equivocada de impunidade que norteia os institutos do sursis e da substituição da pena por outra restritiva de direito, já que praticamente impossibilita a aplicação desses institutos. Segundo, porque possibilita a decretação de prisão preventiva, sem que para isso tenha que ser feito nenhum malabarismo jurídico, preservado a subsidiariedade da prisão, sendo essa ultima ratio.

Colaboração do amigo e competente advogado Romantiezer Gomes Dias Alves, OAB/DF 48.641.

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3 Comentários

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Muito bom! continuar lendo

Obrigado querida! :* continuar lendo

ótimo texto! continuar lendo