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2 de Maio de 2024

Em defesa da Constituição Federal e de seus princípios

Um debate sobre "a opinião do povo" que não é a do povo.

Publicado por Wagner Francesco ⚖
há 8 anos

Há alguns anos li um livro excelente de um cara chamado Siegfried Kracauer. O livro se chama “O ornamento das massas”. Um livro espetacular e que eu recomendo. Um dos pontos do livro era a defesa da seguinte ideia: de um lado os sentidos das massas são excitados a ponto de impedir a reflexão; de outro, os espetáculos que são impostos às massas são incapazes de indicar a desordem da sociedade, pois é parte intrínseca desta. Tal tensão estrutural se alimenta da urgência de mudança. (Ao final lhe recomendo uma leitura sobre esta urgência de mudança).

Qual o ponto do Kracauer? As massas são carregadas de distração para aceitarem em dado momento qualquer coisa que parece solução de um problema e, assim, acontece o que sempre acontece: tudo muda, mas tudo permanece igual.

Feita esta introdução eu parto para o debate de um dos problemas na recente decisão do STF que colocou fogo nas rodas de debates jurídicos - e não jurídicos também. Estamos falando do julgamento do Habeas Corpus 126.292 que permite a prisão a partir da decisão de segunda instância confirmatória da sentença penal condenatória. Não vou discutir a presunção de inocência, pois muitos já o fizeram de forma exaustiva e, para mim, convincente. Meu problema é outro que foi apresentado como fundamentação democrática: a opinião da sociedade.

Em defesa da Constituio Federal e seus princpios Antes de dizer o que eu penso eu procuro me abrigar no escudo das ideias de pessoas mais experientes e interessantes que eu. Começo com o advogado Alberto Zacharias Toron. Para este:

O mais grave (desta decisão do STF)é ouvir que se está atendendo a um reclamo da sociedade. Se é assim, não precisamos nem do Direito e muito menos dos tribunais.

Concordo com Toron. Por quê? Porque concordo com o Kracauer quando ele diz que “os espetáculos que são impostos às massas são incapazes de indicar a desordem da sociedade” e porque concordo com o Fernando Pessoa quando este diz que "o povo nunca é humanitário. O que há de mais fundamental na criatura do povo é a atenção estreita aos seus interesses, é a exclusão cuidadosa praticada, sempre que possível, dos interesses alheios”. É por esta razão que nem o Direito, e nem os Tribunais, podem pautar seus julgamentos direcionados pelo clamor do povo.

É claro que não estamos tirando do povo a sua soberania. Não. De forma alguma. O povo, segundo a Constituição Federal, art. 14, é soberano - mas nenhuma soberania é tão soberana ao ponto de poder diminuir direitos humanos e fundamentais e fazer retroceder conquistas históricas. Além do mais, a gente precisa questionar se “a decisão do povo" é pautada na reflexão ou no Direito Penal Simbólico que condiciona a opinião popular.

Como obter esta resposta? Um ponto simples para começar é perguntar se esta pessoa que aceita a mitigação da Presunção de Inocência aceitaria, de bom grato e parcimônia, sua própria condenação sem o trânsito em julgado. Se, numa situação crítica de ação penal - que todos, por razões menores ou maiores estamos sujeitos - nos renderíamos feito cordeiro perdido indo ao matadouro sem fazer uso de todos os recursos que, já que é o outro, consideramos protelatórios. Honestamente penso que se a resposta for positiva ou não houve reflexão bastante ou há loucura nas palavras…

Esta decisão do STF é retrógrada; e para sustentar o pensamento punitivo de quem decidiu - que aliás não veio de nenhum especialista em Direito Penal ou criminologia (que são pessoas com melhores condições para discutir este problema que versa sobre prisão e realidade carcerária) - foi falsamente e tristemente colocada na conta do povo. O STF não representou o povo em sua decisão, a começar que se representasse o povo os ministros seriam escolhidos por sufrágio, como reza o artigo 14 da Constituição. A voz da Constituição é a voz do povo - e esta diz, ao contrário da recente decisão, que

"Art. 5º, LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”

Um juiz que deixa de ouvir a Constituição não pode dizer que ouviu a voz do povo. Vimos na verdade ministros dizendo coisas com suas próprias bocas. E sobre isto dizia Paulo Bonavides em seu livro “Teoria Constitucional da Democracia Participava” que “o juiz da democracia participativa” não será, como no passado […] o juiz “boca da lei”, mas o magistrado “boca da Constituição”.

Precisamos resgatar o interesse pela Constituição e tê-la como norte. Precisamos proteger os Direitos Fundamentais estampados na Carta Magna. Não podemos acatar sem crítica e sem atos de resistência que um Tribunal que é Guardião da Constituição atente diretamente contra um de seus princípios mais caros.

Cito novamente Paulo Bonavides:

O Direito Constitucional liberta, e se lhe destruirmos as bases, minando os seus princípios (como se viu na decisão do STF), já não haverá povo, nem cidadania, nem nação. Haverá, sim, legiões de súditos, pessoas resignadas, debaixo da regência de um estatuto do poder - que será tudo, menos uma Constituição.

Nenhum princípio a menos. Resistiremos!

Dica de leitura

Como prometido, que tal aceitar uma dica? Leia um artigo chamado "Decisão do Supremo é mais um capítulo do Direito Penal de emergência" escrito por Gamil Föppel.

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27 Comentários

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Em um país onde a Constituição fala 76 vezes em DIREITO e apenas quatro em DEVER, não pode ser algo bom. Até quando a justiça chegará mais rápido ao condenado, é algo ruim. Quando a corte suprema ouve o anseio da sociedade, é criticada.

O próximo passo é insculpir a impunidade como direito de todo condenado, pois só falta isso ser cunhado explicitamente na legislação vigente. Existem recursos a serem julgados cujas penas já estão prescritas, tudo em nome "da presunção de inocência", a mesma que já foi destruída por sentença condenatória de 1º e 2º grau, mas que por capricho teórico e infinitude de recursos, continua a viger, proliferando cada vez mais impunidade. E a sociedade no meio disso tudo? Que se dane ela e as vítimas...

Não à toa somos piada internacional. Aqui todos temos direitos, mas ninguém tem dever.

Somos uma vergonha. continuar lendo

Caro William,

Aproveito para citar um exemplo de como o Brasil é visto lá fora: Ronald Biggs, o inglês latrocida que fugiu para o Rio de Janeiro e só foi pego porque se entregou.

Quando a imagem de um país se consolida como destino de bandidos, algo está muito errado.

Código Penal de 1940 já diz tudo.... continuar lendo

Não só ele. O anjo da morte Josef Mengele buscou o Brasil para fugir do Tribunal de Nuremberg, e logrou êxito. Morreu de velho, em terrae brasilis.

Somos vistos como o lar da impunidade até por criminosos internacionais. Cesare Battisti que o diga... continuar lendo

Se você é roubado descaradamente todo dia, se você paga escorchantes impostos, se você e todos à sua volta tornam-se cada vez mais desrespeitados miseráveis e sem quaisquer perspectivas por conta da impunidade a que estão submetidos esses renomados ladrões do colarinho-branco, será que não é preferível o duplo grau de jurisdição tão aceito no mundo civilizada a ver a essa corja enriquecer desavergonhadamente roubando a todos sem qualquer punição?
À época da proclamação da Constituição Federal estávamos saindo duma cruel ditadura cuja principal regra era prender, torturar e matar sem quaisquer garantias ou julgamento. Óbvio, natural que o constituinte preocupado com essa situação tratou de prescrever na Constituição uma série excessiva de garantias que evitassem que o cidadão fosse privado da sua liberdade. Pois bem, o tempo passou, a democracia precariamente vem se consolidando, e os larápios de plantão perceberam que a Constituição lhes dava as garantias suficientes para roubarem escancaradamente o patrimônio público sem que fossem punidos, o popularmente conhecido como "não dá nada". Com poder econômico e essa infinidade de recursos, só se é honesto por princípio, pois medo de punição nem mesmo os mais ignorantes têm. O pobre, sim, este tem medo da preventiva. Nesse passo, há que se fazer uma interpretação histórica/sistêmica da Constituição e adaptá-la a nossa realidade sem restringir direitos, mas simplesmente adequando-os às novas necessidades jurídicas. Dois graus de jurisdição são adotados pela grande maioria dos países civilizados e dá ampla garantia de julgamento justo e imparcial (juiz natural e corte). A roubalheira escancarada e impune dos poderosos mata diariamente milhares de inocentes sem direito a recurso extraordinário, infinitamente mais do que inocentes vão para cadeia por erro judiciário e com direito a recurso. O erro judiciário, no Brasil, não mata inocentes (não temos pena de morte); a impunidade, milhares de inocentes todo dia. continuar lendo

Melhor mesmo é defender o Direito, à defender essa Constituição, enfadonha, contraditória e prolixa, que leva a sociedade a ser vítima constante dos crimes organizado, homícidios, latrocínios, abortos, infanticídios etc., etc..... continuar lendo

Penso também nessa direção. Nossa Constituição foi elaborada com a ideia (para não dizer obsessão) de criar anticorpos contra ditaduras, pois acabávamos de sair de uma.

No afã de proteger o cidadão contra o arbítrio das autoridades, nossa Carta Magna exagerou em alguns aspectos. Um deles foi o de adotar o sistema do trânsito em julgado final para se derrubar a presunção de inocência, conforme bem explica o professor Luiz Flávio Gomes.

Conforme elucida o eminente jurista, a quase totalidade dos países ocidentais segue o sistema do duplo grau para permitir a execução da pena. O STF passou a adotar esse sistema, embora pareça entender o professor que o assunto merecesse ser disciplinado por meio de emenda constitucional.

Se admitirmos, porém, que se trata de cláusula pétrea, nem por emenda constitucional o princípio poderia ser atualizado, embora por todos reconhecida a necessidade de atualização. Isto porque nosso Estatuto Maior determina que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais (Art. 60, § 4º, IV).

Como se vê, nem sempre se pode afirmar com o professor Paulo Bonavides de que o Direito Constitucional liberta, porque, neste caso, ele escraviza a sociedade a ter de enxergar como inocente até mesmo um “serial killer”, enquanto não transitada em julgado a decisão judicial que o condenar.

Bem aconselhou Eduardo Couture no sentido de que "teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça". continuar lendo

Os criminalistas estão de cabelo em pé. Agora será mais difícil livrar a cara doa cliente s que passarão a cumprir pena antes da prescrição. Nem o direito à vida é absoluto ainda mais presunção se inocência. Nos países civilizados já é asim; a pessoa condenada passa a cumprir pena a partir da segunda instância. continuar lendo

Caro Wagner,

O ser humano sempre pensa no melhor para si.
Se eu for preso, eu vou querer sempre protelar a condenação, porque ninguém gosta de ser condenado. Isso é natural, e não há nada de hipocrisia nessa postura.

Se eu for roubado, naturalmente, vou querer de novo o melhor para mim, e desejarei a prisão imediata de quem praticou o crime.

O problema é que política criminal tem que ser vista do alto, além dos interesses particulares. Não se pode fazer política criminal sem pensar no todo.

O que é melhor para a maioria da população, que é honesta e não comete crimes?
A política que atende interesses individuais ou aquela que gera maior proteção coletiva e busca impedir a ocorrência de novos delitos?

Concordo com humanização da pena, concordo com inclusão social, educação, geração de empregos e tudo o mais que ajude a prevenir o crime....Só não posso concordar com o caos e a ineficácia do sistema após a prática do crime, porque estes funcionam como estímulo a novas infrações.

Abraços. continuar lendo