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Capacidade Processual dos Animais - Ed. 2022

Capacidade Processual dos Animais - Ed. 2022

4. A Judicialização do Direito Animal

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Sumário:

[...] uma geração não se livra tão depressa daquilo que traz sedimentado por hereditariedade; o homem não renuncia tão depressa àquilo que lhe entrou no sangue, que lhe foi transmitido, por assim dizer, pelo leite materno. Não existem as tais revoluções precoces. Reconhecer a própria culpa e o pecado original ainda é pouco, muito pouco; é mister desacostumar-se inteiramente disso. E isso não se faz tão depressa.

(Fiódor Dostoiévski, Escritos da casa morta, 1860-62) 1

4.1.Judicialização, ativismo e autocontenção judiciais

A judicialização é o fenômeno, empiricamente mensurável, pelo qual determinadas questões, geralmente de grande repercussão política ou social, são levadas e decididas pelo Poder Judiciário, antes mesmo de qualquer decisão política adotada pelos Poderes Legislativo ou Executivo. 2

A ampla constitucionalização do Direito, especialmente em países como o Brasil, dotados de uma constituição analítica e ambiciosa , costuma ser apontada como a principal estimulante desse fenômeno. 3

Judicializa-se como forma de garantir conquistas constitucionais, ainda não adequadamente implementadas pelos demais poderes políticos, mesmo diante da natural “dificuldade contramajoritária” 4 para a legitimação democrática desse fenômeno, dado que, ao menos no Brasil, os juízes não são eleitos, mas podem “invalidar as decisões adotadas pelo legislador escolhido pelo povo, invocando, muitas vezes, normas constitucionais de caráter aberto, que são objeto de leituras divergentes na sociedade.” 5

Assim, por exemplo, judicializa-se a saúde como forma de se obter medicamentos e tratamentos essenciais, sem os quais pode ocorrer a morte e o agravamento da doença, mas que não são regularmente fornecidos pela rede pública de atendimento médico-sanitário. 6 Evoca-se, para tanto, o art. 196 da Constituição, segundo o qual, “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

A judicialização, portanto, é a busca pela realização de direitos constitucionais por meio do processo judicial, tendo por pressuposto uma inação das atividades legislativa e administrativa. Recorre-se ao Poder Judiciário para se obter algo que não se consegue pelas vias dos Poderes Legislativo ou Executivo.

A judicialização é uma forma de esperança.

A judicialização, como fato e demanda, pode ter o ativismo ou a autocontenção como resposta . 7

O ativismo é uma resposta judicial que emprega uma hermenêutica capaz de ampliar o alcance de regras ou princípios constitucionais, de modo a reagir a uma situação de inércia legislativa ou executiva na consecução de direitos fundamentais.

A autocontenção é uma resposta judicial de limitação hermenêutica, de maneira a evitar a invasão do espaço reservado aos demais poderes, ainda que isso custe a realização mais densa da própria Constituição.

De um lado, o Poder Judiciário se infla, de outro se diminui, tendo a interpretação constitucional como régua.

A expressão ativismo judicial é carregada de valorações ideológicas, no mais das vezes preconceituosas, como se toda postura ativista dos juízes significasse usurpação de poderes ou criacionismo jurídico irresponsável e antidemocrático. 8 Bem vistas as coisas, uma resposta judicial proativa, sobretudo no âmbito da jurisdição constitucional, pode ser indispensável para a garantia dos próprios instrumentos de funcionamento democrático – como a liberdade de expressão – e, sobretudo, para a proteção dos direitos fundamentais dos grupos minoritários e vulneráveis. 9

O ativismo judicial tem sido marcante na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, especialmente após a Constituição Federal de 1988, com a intensa constitucionalização do Direito. Alguns casos marcantes: (1) descriminalização da interrupção da gestação de fetos anencefálicos; 10 (2) reconhecimento da união estável de pessoas do mesmo sexo; 11 (3) infidelidade partidária como causa da perda de mandato eletivo. 12

Nesses três casos, meramente exemplificativos, o STF decidiu questões de alta repercussão social e política, aplicando diretamente a Constituição, sem a existência prévia de uma lei regulamentadora que procedesse às respectivas escolhas políticas.

Bem dosado, o ativismo judicial não pode ser confundido com discricionariedade judicial ou mero decisionismo, 13 mas como um refinamento hermenêutico que produz a máxima eficácia ao texto constitucional.

A consolidação dos princípios do Direito Animal, sobretudo do Princípio da Dignidade Animal, a partir do art. 225, § 1º, VII, da Constituição, e sua realização normativa em termos práticos, inclusive com o reconhecimento da capacidade processual dos animais, exige um ativismo judicial que enxergue, a partir do texto que proíbe a crueldade contra animais, a própria dignidade animal a gritar por seus direitos fundamentais.

4.2.Fases da judicialização do Direito Animal

Como o Direito Animal é o ramo jurídico no qual animais são sujeitos de direitos – não bens, nem coisas –, falar em judicialização do Direito Animal é falar no fenômeno em que os próprios animais vão a juízo para reivindicar seus direitos.

Como sujeitos de direitos materiais, os animais também passam a ser sujeitos de direitos processuais, entre os quais, o direito de ação, como decorrência lógica fundamental da garantia do acesso à justiça, atribuída a todos os sujeitos de direitos – tenham ou não personalidade jurídica –, conforme art. , XXXV, da Constituição.

Trata-se, inequivocamente, de judicialização, uma vez que ainda há resistência legal à atribuição plena do status jurídico de sujeitos a todos os animais, de forma a realizar a universalidade de proteção prometida pela própria Constituição. Não só isso: o direito fundamental animal à existência digna, incompatível com as práticas cruéis, ainda é aberta e institucionalmente violado.

Judicializar, nesse caso, significa mais do que buscar a tutela jurisdicional de um determinado direito constitucional: significa afirmar a própria existência do Direito Animal, com suas regras e princípios estatuintes de uma nova realidade jurídica (e social) para animais não humanos.

A judicialização do Direito Animal significa, em última análise, a inclusão dos animais não humanos em nossa comunidade moral por meio do direito e do processo.

É possível, no entanto, sistematizar três fases ou momentos históricos da judicialização do Direito Animal: 14

a) Judicialização primária : é a fase primordial ou embrionária da judicialização, na qual os animais são defendidos como bens ambientais. Não se trata, propriamente, de judicialização do Direito Animal , dado que, ainda, os animais não considerados sujeitos de direitos, mas apenas elementos da fauna e da biodiversidade, relevantes apenas pela sua função ecológica. Destacam-se, nesse período, as ações coletivas ambientais de proteção da fauna, notadamente a ação civil pública (Lei 7.347/1985), capitaneadas pelo Ministério Público ou pelas associações de defesa do meio ambiente. Os animais silvestres priorizam a judicialização primária, exatamente pela sua maior funcionalidade na consecução do equilíbrio ambiental. 15

b) Judicialização secundária : é a fase intermediária na qual os animais passam a ser defendidos em juízo como indivíduos conscientes, porém, por meio de ações titularizadas pelos seus responsáveis humanos, como nas ações contra condomínios ou em ações de Direito das Famílias, 16 além do recente fenômeno das ações em que se pleiteia o transporte aéreo de animais de estimação na cabine dos aviões, junto com seus pais humanos ou tutores. 17

c) Judicialização terciária ou judicialização estrita do Direito Animal : é a judicialização do Direito Animal, propriamente dita, por meio da qual os animais defendem seus direitos em juízo, representados na forma do art. 2º, § 3º, do Decreto 24.645/1934.

Portanto, as referências à judicialização do Direito Animal, hoje, devem se dirigir à judicialização terciária, certamente, o fenômeno mais contemporâneo do Direito Animal no Brasil.

4.3.Primeiras demandas de judicialização terciária no Brasil

A judicialização terciária do Direito Animal é a sua judicialização estrita, na qual, em juízo, animais não humanos protagonizam os polos da relação processual, na reivindicação de seus direitos subjetivos, tal como fazem as pessoas naturais e jurídicas, além dos entes despersonificados.

A judicialização terciária é a pós-humanização do direito processual.

Mas essa nova etapa da judicialização do Direito Animal é novíssima , iniciada em 2020, com animais não humanos, notadamente cães e gatos, propondo demandas de reparação civil, perante a justiça dos estados, representados, na forma do Decreto 24.645/1934, por seus pais humanos ou por entidades privadas de proteção animal. As primeiras demandas foram propostas, em janeiro de 2020, perante as comarcas de Salvador/BA e de Cascavel/PR. Nenhuma ação foi protocolada na Justiça Federal. 18

A seguir, uma tabela com as ações registradas e acompanhadas até abril de 2022:

Caso 19

Tipo de demanda e mês de entrada

Juízo e comarca

Autos

Diego e outros

23 gatos autores de ação de reparação de danos (jan. 2020)

5ª Vara Cível e Comercial de Salvador/BA

XXXXX-50.2020.8.05.0001 20

Jack

Cão, representado por ONG, demanda seu próprio pai humano por maus-tratos (jan. 2020)

4ª Vara Cível de Cascavel/PR

XXXXX-32.2020.8.16.0021 21

Mel Leão

Cadela, representada por seus pais humanos, processa o pet shop diante do seu acasalamento não autorizado (jun. 2020)

18ª Vara Cível de Belo Horizonte/MG

XXXXX-28.2020.8.13.0024 22

Boss

Cão, representado por seus pais humanos e em litisconsórcio com eles, processa o pet shop que lhe causou danos físicos e morais (jul. 2020)

Vara Cível de Porto Alegre/RS

XXXXX-33.2020.8.21.6001 23

Pipoca

Cão, representado por ONG e em litisconsórcio com ela, demanda pessoa que lhe efetuou disparos de arma de fogo. Há pedido de pensão mensal (ago. 2020)

5ª Vara Cível de Cascavel/PR

XXXXX-14.2020.8.16.0021 24

Aladim

Cão, representado pelo pai humano, pleiteia assistência à saúde ao Município para realizar cirurgia de emergência que o tutor não tem como pagar (ago. 2020)

2ª Vara Cível de Caruaru/PE

XXXXX-45.2020.8.17.2480 25

Spike e Rambo 26

Cães, representados por ONG, demandam seus próprios pais humanos por maus-tratos, diante de abandono por 29 dias (ago. 2020)

3ª Vara Cível de Cascavel/PR

XXXXX-58.2020.8.16.0021 27

Chaplin

Cão, representado por seus pais humanos, pleiteia livre acesso pela entrada principal e demais dependências de condomínio (ago. 2020)

5ª Vara Cível de João Pessoa/PB

XXXXX-69.2020.8.15.2001 28

Tira Leite

Cão, representado pela ONG, pleiteia assistência à saúde para realizar cirurgia de emergência em decorrência de atropelamento, com pedido de pensão (ago. 2020)

2ª Vara Cível e Empresarial de Capanema/PA

XXXXX-55.2020.8.14.0013 29

Animais da Bonja

Dois cães e oito gatos, representados por ONG, pleiteiam a indenização para custear procedimentos cirúrgicos e esterilização, pois submetidos a situação de maus-tratos em ambiente insalubre (ago. 2020)

3ª Vara Cível de Porto Alegre/RS

XXXXX-79.2020.8.21.0001 30

Scooby

Cão, representado pelo pai humano, pleiteia assistência à saúde contra Município para obter procedimento cirúrgico (ago. 2020)

1ª Vara da Fazenda Pública de Caruaru/PE

XXXXX-23.2020.8.17.2480 31

Beethoven

Cão, ferido no olho por projetil de arma de fogo, postula medida restritiva de distanciamento e indenização por danos morais (abr. 2021)

2ª Vara de Granja/CE

XXXXX-13.2021.8.06.0081 32

Tom & Pretinha e outro

Dois cães, alvejados por arma de fogo, pedem indenização por danos morais e estéticos, em litisconsórcio com seu pai humano (jul. 2021)

1ª Vara Cível de Porto União/SC

XXXXX-64.2021.8.24.0052 33

Mãe de Todos e outros

22 gatos comunitários, representados por ONG, pedem ordem para permanecer em condomínio e condenação deste em indenização por danos morais individuais e coletivos (ago. 2021)

17ª Vara Cível de João Pessoa/PB

XXXXX-83.2021.8.15.2001 34

Thor

Cão e seu pai humano pleiteiam que empresa de ônibus garanta transporte rodoviário a ambos (mar. 2022)

3ª Vara Cível de Cascavel/PR

XXXXX-91.2022.8.16.0021 35

Fonte: autor. 36

Como essas ações são muito recentes, ainda não foi possível elaborar …

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16 de Maio de 2024
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