Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
2 de Maio de 2024

A causa de aumento do furto no período noturno não incide no crime de furto na sua forma qualificada (§ 4°).

há 2 anos

O disposto no art. 155, § 1º, do CP refere-se à pena do furto simples, prevista no caput desse dispositivo. Desse modo, não se refere à cominação do furto qualificado, que se encontra três parágrafos depois. Seguindo a técnica legislativa, para que considerasse aplicável a majorante no furto qualificado, deveria o legislador colocar o § 1º após a pena atribuída, o que não ocorreu. Se a qualificação do delito é apresentada em parágrafo posterior ao que trata da majorante, é porque o legislador afastou a incidência desta em relação aos crimes qualificados previstos no § 4º do art. 155 do CP. Nesse contexto, aderindo a uma interpretação sistemática sob o viés topográfico, em que se define a extensão interpretativa de um dispositivo legal levando-se em conta sua localização no conjunto normativo, a aplicação da referida causa de aumento limitar-se-ia ao furto simples, não incidindo, pois, no furto qualificado.

Outra forma interpretativa para dirimir a questão é o método hermenêutico teleológico. Aqui, o que se propõe é a averiguação do objetivo da norma, de seus fins sociais, objetivos ligados à justiça, à segurança jurídica e à dignidade da pessoa humana. Com efeito, quando se busca o atendimento a esses aspectos, especialmente o relativo à dignidade humana, devem ser atendidos os princípios da proporcionalidade e da taxatividade.

Sob o viés do princípio da proporcionalidade, objetiva-se evitar excesso de punição, mormente a possibilidade de aplicação de reprimendas mais severas a infrações que refletem menor gravidade, assim como evitar que haja proteção insuficiente aos bens jurídicos resguardados pelas normas penais.

Ora, a agravação da pena derivada da incidência da majorante do furto noturno nas hipóteses do furto qualificado resultaria em um desproporcional quantitativo. Veja-se: o dispositivo relacionado ao furto cometido durante o repouso noturno (art. 155, § 1º, do CP) prevê acréscimo fixo de 1/3 da pena. Se possível a incidência dessa mesma majorante no furto qualificado (art. 155, § 4º, do CP), seriam gerados aumentos excessivos no quantitativo da pena: se considerada a pena mínima, o acréscimo seria de 8 meses (pena mínima de 2 anos do crime qualificado, aumentada em 1/3). De outra parte, se considerada a pena máxima, o aumento resultaria em 2 anos e 8 meses. Dessa forma, a pena do crime de furto qualificado, acrescida do quantum relativo à incidência da majorante, desconsiderando-se a incidência de quaisquer outras circunstâncias agravantes ou causas de aumento, poderia resultar em 10 anos e 8 meses, pena superior à do crime de roubo, tipo penal em que se protegem não só bens patrimoniais, tal qual no crime de furto, mas também a integridade corporal. Sendo assim, não se mostra razoável que determinada pena possa ser semelhante para crimes de gravidades diversas, como são o furto, ainda que em sua forma qualificada, e o roubo.

Acrescente-se, também sob o enfoque do princípio da proporcionalidade, que, sendo a controvérsia a interpretação de normas penais que podem ensejar, em um cenário de dúvida, a incidência de penas mais severas, é razoável que também se analise o tema sob a perspectiva das circunstâncias a seguir relacionadas, muitas delas relativas à política criminal, que não contribuirão para a concretização do escopo preventivo, repressivo e reabilitatório do Direito Penal: a) busca de resolução de questões sociais mediante a exagerada edição da legislação penal e processual penal mais severa; b) existência de componentes administrativos na seara criminal que operam com deficiência, tais como os estabelecimentos prisionais, a sobrecarga dos tribunais, a ineficácia de aplicação de penas clássicas, sobretudo sobre o aspecto da reabilitação do condenado, o alto custo do sistema penitenciário associado à escassez de recursos públicos para sua manutenção e melhoria, etc.

Deve-se registrar também que o princípio da proporcionalidade destina-se igualmente a evitar a proteção insuficiente ou deficiente dos bens jurídicos resguardados pelo Direito Penal.

Ora, é evidente que a lesividade advinda do cometimento do furto qualificado durante o repouso noturno é maior que a do furto simples ocorrente no mesmo período.

Assim, é razoável admitir a possibilidade de, diante das circunstâncias fáticas, a prática do furto durante o período de repouso noturno ser levada em consideração na dosimetria da pena. Em outras palavras, se a incidência da majorante no furto qualificado mostra-se excessiva, poderá ser utilizada como circunstância judicial negativa na primeira fase da dosimetria (art. 59 do CP). Nessa oportunidade, o órgão julgador avaliará, sob a ótica de sua discricionariedade, o elemento relativo ao espaço temporal em que a infração foi cometida, podendo, se assim considerar, analisar a circunstância judicial referente às circunstâncias do crime com maior reprovabilidade. Esse proceder possibilitaria calibrar a reprimenda de modo a atender o postulado da proporcionalidade diante do caso concreto.

Sob o prisma do princípio da taxatividade, como garantia expressa do postulado da legalidade, deve-se entender que, ao ser positivada uma norma penal incriminadora - tal como uma causa de aumento de pena -, deve ela ser clara e precisa com vistas a não permitir discricionariedades, bem como ser de fácil compreensão para os destinatários.

Efetivamente, não há precisão e clareza desejáveis na proposição penal prevista no art. 155, § 1º, do CP quando se deve definir sua aplicabilidade tanto ao furto simples quanto ao furto qualificado. Restrita essa norma a indicar situação temporal em que há aumento de pena, não se veem nela elementos que lhe confiram extensão para que incida nas hipóteses do furto qualificado. Pensamento diverso, de modo a justificar a incidência extensiva dessa disposição legal, equivaleria a um agravamento dos tipos já existentes através de uma reinterpretação de garantias do Direito Penal, especialmente aquela relacionada à interpretação favorável ao réu nos casos em que há dúvida acerca do sentido da norma. Deve-se ressaltar que a interpretação no sentido de possibilitar a existência de bens jurídico-penais não expressamente definidos amplia os espaços de riscos jurídico-penais relevantes e a flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios político-criminais de garantia, circunstâncias que não condizem com a excepcionalidade inerente às normas penais sancionatórias, assim como não se compatibilizam com a necessária segurança jurídica, fundamento do Direito Penal.

Também não se justifica a premissa de que, uma vez possível a aplicação da regra do furto privilegiado (art. 155, § 2º, do CP) ao furto qualificado, seria possível a incidência da causa de aumento relativa ao cometimento do furto durante o repouso noturno (art. 155, § 1º, do CP) no furto qualificado.

Essa situação merece algumas observações.

O privilégio previsto no § 2º do art. 155 e a causa de aumento relativa ao furto noturno são hipóteses fático-jurídicas diversas. A primeira refere-se a uma norma penal não incriminadora; a segunda, a uma causa de aumento, uma norma penal incriminadora.

Sendo o furto privilegiado uma norma não incriminadora, pode comportar extensividade quando utilizado para integração do sistema jurídico penal. Já o furto cometido durante o repouso noturno, por ser uma norma incriminadora, tem sua extensividade vedada, visto que tem por consectário o agravamento da situação do réu. Com efeito, o uso de raciocínio analógico integrativo no âmbito do Direito Penal é inadmissível em hipótese em que haja prejuízo para o acusado.

Desse modo, também sob a ótica de uma interpretação finalística, em que se deve conferir aplicabilidade aos princípios da proporcionalidade e da taxatividade, a incidência da causa de aumento referente ao cometimento do furto noturno limita-se ao furto simples, não se aplicando ao furto qualificado.


REsp 1.890.981-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 25/05/2022 ( Tema 1087) Adaptado.

  • Sobre o autorAdvogado em Santa Catarina, especialista em Direito Penal e Processo Penal.
  • Publicações21
  • Seguidores45
Detalhes da publicação
  • Tipo do documentoNotícia
  • Visualizações29
De onde vêm as informações do Jusbrasil?
Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/a-causa-de-aumento-do-furto-no-periodo-noturno-nao-incide-no-crime-de-furto-na-sua-forma-qualificada-4/1529066350

0 Comentários

Faça um comentário construtivo para esse documento.

Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)