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20 de Junho de 2024

Artigo: O utilitarismo do Ministro Joaquim Barbosa

Publicado por OAB - Paraná
há 11 anos

Confira o artigo do conselheiro da OAB Paraná e presidente da Comissão de Estudos Constitucionais, Alexandre H. de Quadros, sobre as declarações do presidente do Supremo Tribunal Federal aos dirigentes de Associações nacionais de Magistrados, em reunião realizada na última segunda-feira (8).

O utilitarismo do Ministro Joaquim Barbosa

Os conceitos de certo e errado são definidos a partir da nossa estima pelo prazer e repúdio à dor. Em outras palavras, uma decisão é certa de acordo com sua utilidade; ou melhor, se dela resulta mais felicidade do que sofrimento. Essa é a ideia central da doutrina utilitarista, defendida por Jeremy Bentham nos séculos XVIII e XIX. Para Bentham, essa é a premissa moral (aplicável às decisões do cidadão) e política (aplicável às decisões dos legisladores).

Talvez a doutrina utilitarista justifique a recente crítica do Ministro Joaquim Barbosa à aprovação da proposta de emenda constitucional de criação dos novos Tribunais Regionais Federais (PEC 544/2002). Quiçá o fato de o Ministro ter convocado a imprensa para a reunião, em que teceu seus comentários e criticou publicamente as associações de magistrados que apoiaram a medida, seja indicativo de seu interesse em aferir a opinião popular sobre a ampliação dos TRFs. A repercussão auxilia no termômetro utilitarista, para identificar se a notícia de criação dos novos tribunais gera maior ou menor felicidade à população.

E, se o interesse estiver direcionado para a formação de opinião contrária à proposta de emenda recentemente aprovada, o convencimento parece exigir termos ríspidos. Contudo, a conduta do Presidente do Supremo Tribunal Federal, mandatário de um dos Poderes da União o Judiciário ao utilizar publicamente termos como sorrateira e surdina, ao afirmar que a aprovação de uma emenda constitucional se deu à base de cochichos, pode ser caracterizada como contrária à separação de poderes, um dos princípios constitucionais fundamentais do Estado brasileiro.

O princípio da separação de poderes (art. , CF/88) divide as funções próprias do Estado (executiva, legislativa e jurisdicional) entre conjuntos de órgãos estatais específicos. Mas não apenas isso. O princípio da separação de poderes também remete à cortesia no trato recíproco, cuja finalidade consiste em manter a harmonia na relação entre os Poderes estatais.

Críticas públicas provenientes do Poder Judiciário às atividades legítimas exercidas pelo Poder Legislativo (no exercício do poder constituinte derivado) contribuem apenas para desestabilizar a ordem constituída e podem ser interpretadas como violação ao princípio da separação de poderes. Diverso do palanque dos meios de comunicação, há um espaço próprio para análise dos temas constitucionais, pois ao Poder Judiciário incumbe o exercício da função jurisdicional, que no Brasil abrange, inclusive, determinar se uma norma está ou não de acordo com a Constituição.

Os comentários do Ministro Joaquim Barbosa antecipam esse momento de aferição de constitucionalidade e abrem, inclusive, espaço para perquirir a legitimidade do magistrado em participar de um julgamento que envolva matéria concreta cujas conclusões tenham sido por ele manifestadas anteriormente.

A par disso, remanesce o argumento adotado para contrariar a criação dos novos tribunais federais, consistente em suposto vício de iniciativa da PEC 544/2002, cuja consequência seria a inconstitucionalidade formal da norma recentemente aprovada. Ocorre que a proposta de emenda constitucional que cria os novos tribunais federais não sofre do vício formal apontado, pois a Constituição Federal não atribui iniciativa de propostas de emenda constitucional ao Poder Judiciário.

A Constituição Federal só admite ser emendada por proposta privativa e concorrente de um terço dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, do Presidente da República ou de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação (Art. 60, CF/88). De outro lado, as iniciativas legislativas atribuídas pela Constituição ao Poder Judiciário referem-se às leis ordinárias e às leis complementares (art. 61, CF/88) e não às emendas constitucionais. A própria Emenda Constitucional 45/2004, responsável pela denominada reforma do Poder Judiciário e veículo normativo criador do Conselho Nacional de Justiça um dos órgãos do Poder Judiciário (art. 92, I-A, CF/88) teve origem no Poder Legislativo.

Assim, refutada a tese de inconstitucionalidade, emerge outro argumento ventilado pelo Ministro Joaquim Barbosa no precitado encontro: o custo com a criação dos novos tribunais. E aqui se retoma a vinculação com a doutrina utilitarista, aquela que prega a ponderação da felicidade gerada, para averiguar se uma decisão deve ou não ser tomada. Pelo que se pode concluir a partir da cobertura de imprensa acerca do caso, o protagonista considera que a decisão de criação dos novos tribunais está errada, pois gera muitos custos para a nação. Sem dúvida, um argumento que remete ao utilitarismo.

Na defesa de sua doutrina, Jeremy Bentham chegou a propor a internação compulsória de mendigos, em abrigos autofinanciados com o trabalho dos próprios internos. Afinal, a visão dos mendigos nas ruas causa sofrimento à população; e a felicidade poderia ser alcançada sem custos, pois os mendigos trabalhariam para suprir as necessidades do abrigo; e, ainda, os cidadãos poderiam ser remunerados por capturar os indigentes.

Essa análise de custo-benefício utilitarista é criticada por Michael Sandel um dos mais festejados professores da Universidade de Harvard na atualidade por meio de dois episódios narrados em seu livro Justiça (Ed. Civilização Brasileira, 2012, 6ª edição). No primeiro caso, o autor lembra que, em 2000, na República Tcheca, a Philip Morris divulgou um estudo em que pondera os benefícios governamentais do consumo do cigarro em razão da morte precoce dos fumantes. A conclusão do estudo é que o custo incorrido pelo governo no tratamento dos consumidores de tabaco é inferior ao benefício gerado com a morte prematura dos fumantes (que deixam de exigir tratamentos de saúde, abrigos para idosos e pensões).

No segundo caso, Sandel critica a doutrina utilitarista ao referir-se aos mais de quinhentos indivíduos que morreram em razão de um erro de projeto no Ford Pinto, um veículo lançado na década de 1970, cujo tanque de combustível explodia quando era abalroado. Segundo o autor, os executivos da Ford tarifaram o valor das indenizações por morte e por queimaduras e estimaram o número de acidentes. Depois, ponderaram que o custo de 11 dólares por carro para consertar o defeito seria muito superior do que as indenizações e, por isso, optaram por não solucionar o defeito e manter o veículo no mercado. Chegaram à conclusão de que era melhor deixar como estava. As mortes e os danos não importavam. Os direitos fundamentais violados não importavam.

No Brasil, no século XXI, o dilema utilitarista se repete. Os tribunais federais não devem ser criados porque geram custos. No jogo utilitarista do custo-benefício, as vidas dos jurisdicionados submetidos à carência de efetivo acesso ao Poder Judiciário, em razão da existência de apenas cinco TRFs em todo Brasil, não importa. O cidadão que reside no Acre e contende contra a União obriga-se, hoje, a custear o deslocamento de seu advogado para interposição e/ou sustentação de seu recurso junto ao TRF da 1ª Região, com sede no Distrito Federal. Mas isso parece não importar. Importante, na ótica utilitarista, é preservar o orçamento público e não os direitos fundamentais.

A jurisdição do TRF da 1ª Região, por exemplo, tem abrangência sobre o Distrito Federal e mais treze estados da Federação. Mas não importa. Direitos fundamentais como o amplo acesso, o direito de petição e a inafastabilidade de apreciação pelo Poder Judiciário estão vigorosamente prejudicados atualmente pelo represamento de centenas de milhares de processos nos tribunais federais. Apesar disso, na balança utilitarista pesa mais o argumento orçamentário, como se o cidadão existisse para suprir as necessidades do Estado.

Para concluir, não custa lembrar que o corpo de Jeremy Bentham o pai do utilitarismo permanece embalsamado no University College de Londres. Mas ele perdeu a cabeça.

Alexandre H. de Quadros, advogado, conselheiro da OAB/PR, presidente da Comissão de Estudos Constitucionais e professor universitário.

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