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24 de Maio de 2024
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    Juiz brasileiro: nem Pilatos nem Torquemada

    há 14 anos

    LUIZ FLÁVIO GOMES ( www.blogdolfg.com.br )

    Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

    Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Juiz brasileiro: nem Pilatos nem Torquemada. Disponível em http://www.lfg.com.br - 06 dezembro. 2009.

    Historicamente há três tipos de processo:

    (a) inquisitivo (nele uma só pessoa desempenha os vários papéis de investigar, acusar, julgar e, às vezes, de executar). Outras características marcantes do sistema inquisitivo são: (a) oficiosidade do processo (ele é instaurado de ofício pela autoridade investigadora); (b) legalidade da função acusatória; (c) inversão da presunção de inocência (parte-se da presunção de culpabilidade ou de responsabilidade do réu); (d) a prisão imediata e processual (preventiva) do investigado é a regra; (e) a prova é avaliada de acordo com o valor de cada uma previamente dado pela lei; (f) o processo é escrito (não se prioriza a oralidade); (g) o processo é secreto (não existe publicidade); (h) os juízes são, em regra, permanentes; (i) a prova é buscada pelo juiz (busca a qualquer preço); (j) duplo grau de jurisdição etc. De todas as notas que acabam de ser elencadas, a mais marcante, claro, reside na acumulação, pelo juiz, das funções de investigar, acusar e julgar. O juiz tem ampla liberdade de tomar a iniciativa de provas. Atua psicologicamente comprometido com o fato e com as provas. Não conta, evidentemente, com nenhuma isenção para julgar.

    (b) processo misto (fase inicial de investigação da polícia ou do MP sob a regência do juiz; em seguida vem a acusação e o julgamento, sendo funções exercidas por pessoas distintas; nos Juizados de Instrução é assim que funciona França e Espanha, por exemplo).

    (c) acusatório (as funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a pessoas distintas). A essência (o núcleo essencial) do princípio acusatório (tal como sublinha a melhor doutrina: Geraldo Prado, Aury Lopes Júnior) reside na divisão das principais funções desenvolvidas dentro do processo: acusar, defender e julgar. Também são lembradas como características do princípio (ou sistema) acusatório: (a) a iniciativa probatória é das partes; (b) o juiz não investiga nem toma qualquer iniciativa no campo probatório; (c) as partes são tratadas igualmente; (d) preponderância da oralidade; (e) publicidade do processo; (f) observância do contraditório e da ampla defesa; (g) as provas são valoradas livremente pelo juiz; (h) não existem provas absolutas (todas possuem valor relativo); (i) respeito à coisa julgada; (j) duplo grau de jurisdição etc.

    Este terceiro modelo foi adotado no Brasil, porém, não na sua forma radical. Há flexibilizações: o juiz tem algum poder de iniciativa de provas (nos termos do art. 156 do CPP), de conceder habeas corpus de ofício etc. De outro lado, o MP nem sempre estará obrigado a acusar, podendo, em algumas situações (CPP, art. 385), propugnar pela absolvição do acusado, se da mesma estiver convencido.

    No sistema acusatório puro ( adversary system ) o juiz é mero espectador, não tomando nenhuma iniciativa de provas. No sistema acusatório flexível o juiz tem poder probatório complementar - CPP, art. 156. Isso é o que vigora no Brasil, onde o juiz não deve atuar nem como Pilatos (personagem bem conhecido na teoria do cristianismo, pois teria tido total responsabilidade pela morte de Cristo ao abrir mão do seu julgamento, entregando-o à população) nem como Torquemada (A Wikipedia nos informa que Tomás de Torquemada, nascido em Valladolid, em 1420, e morto em Ávila, em 16 de setembro de 1498, foi o O Grande Inquisidor ou o inquisidor-geral dos reinos de Castela e Aragão no século XV e confessor da rainha Isabel a Católica. Ele foi famosamente descrito pelo cronista espanhol Sebastián de Olmedo como "O martelo dos hereges, a luz de Espanha, o salvador do seu país, a honra do seu fim". Torquemada é conhecido por sua campanha contra os judeus e muçulmanos convertidos da Espanha. O número de autos-de-fé (processos) durante o mandato de Torquemada como inquisidor é muito controverso, mas o mais aceito é normalmente 2.200).

    Pôncio Pilatos foi um mero espectador (segundo a teoria cristã) no julgamento de Cristo. Torquemada foi o inquisidor mais atuante da Idade Média. Nem um nem outro serve para explicar a posição do juiz no atual ordenamento jurídico brasileiro. De qualquer modo, o poder complementar do juiz (no campo probatório), para dirimir dúvidas que surgem no processo, deve ser exercido motivamente, ou seja, o juiz deve expor a situação de dúvida assim como sua iniciativa probatória. Nem absoluta passividade nem ativismo inquisitivo: sua atuação, em busca da verdade e da justiça, deve ser isenta e motivada.

    O juiz brasileiro não oferece denúncia nem investiga crimes. Exceções a essa última regra existem: (a) investigação contra outro juiz e (b) e investigação de quem goza de prerrogativa de função. De qualquer modo, cessada a função acaba o foro por prerrogativa (ADIns 2797 e 2860). O art. da Lei 9.034/95, que conferia ao juiz amplos poderes investigatórios no crime organizado, foi julgado inconstitucional na ADIn 1.570. Antigamente, no crime falimentar, o juiz investigava esse tipo de delito. Mas já não existe o inquérito judicial, que acabou por força da Lei 11.101/2005.

    No Brasil, em síntese, vigora hoje o princípio acusatório (o processo tipo acusatório), porém, com algumas mitigações (no que diz respeito às funções probatórias e investigatórias do juiz). Feitas essas ressalvas, parece inevitável reconhecer que vários dispositivos do nosso atual ordenamento jurídico processual vulnera (viola) o princípio acusatório.

    Vejamos: (a) o juiz não pode julgar além ou fora ou aquém do pedido (ne eat iudes ultra petita partium); seu poder de fiscalização do Ministério Público contemplado no art. 384 do CPP é incompatível com o sistema acusatório; (b) não pode reconhecer agravantes de ofício (ou seja: reputamos como inconstitucional o art. 385 do CPP na parte em que autoriza a admissibilidade de agravantes sem ter havido acusação formal); (c) não pode condenar o réu quando há pedido de absolvição da acusação (reputamos inconstitucional o art. 385 do CPP na parte em que autoriza o juiz a condenar o réu, mesmo tendo havido pedido de absolvição do Ministério Público; quando a acusação pede absolvição deixa de haver acusação, cai o interesse de agir e o juiz não pode atuar no papel de acusador); (d) não pode ter papel de investigador (as duas situações acima relatadas violam essa regra); (e) não pode cumprir o papel de fiscal do Ministério Público (isso ocorre no art. 28 do CPP além do que está previsto no art. 384); (f) não pode requisitar a abertura de inquérito policial (é inconstitucional o art. do CPP nessa parte).

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