O novo CPC e a Revogação de alguns dispositivos do Código Civil - Parte 2
Continuando a série de textos destinados a examinar as revogações de dispositivos do Código Civil expressamente feitas pelo CPC de 2015, é hora de tratar do art. 456 daquele diploma.
Tal dispositivo estava assim redigido: “[p]ara poder exercitar o direito que da evicção lhe resulta, o adquirente notificará do litígio o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores, quando e como lhe determinarem as leis do processo”. Há, ainda, ali um parágrafo único segundo o qual “[n]ão atendendo o alienante à denunciação da lide, e sendo manifesta a procedência da evicção, pode o adquirente deixar de oferecer contestação, ou usar de recursos”.
É absolutamente fora de dúvida que o dispositivo tratava de um instituto de direito processual civil, a denunciação da lide. Isto se confirma pela leitura do parágrafo, onde essa modalidade de intervenção de terceiro é expressamente mencionada. E isto, por si só, já é motivo suficiente para se celebrar a revogação. Afinal, não deve estar no Código Civil um dispositivo que trata de matéria processual.
Não é só por isso, porém, que se deve considerar positiva esta revogação. É que o art. 456 do CC dava a entender ser possível uma denunciação da lide per saltum que não faz qualquer sentido no sistema processual brasileiro.
Perceba-se bem este ponto: pelo texto do art. 456 do CC, parece ser possível ao adquirente de um bem, para exercer o direito que resulta da evicção, denunciar a lide ao alienante imediato ou a qualquer dos anteriores. Isto permitiria a ele, então, ajuizar demanda regressiva (pois a denunciação da lide nada mais é do que isto, uma demanda regressiva condicional) em face de alguém com quem não contratou e, por isso, não tem qualquer relação jurídica. Imagine-se a seguinte situação: A aliena um bem para B, que aliena para C, que aliena para D, que aliena para E. Tendo sido proposta em face de E uma demanda de reivindicação do bem por alguém que afirma ser titular de direito sobre o mesmo desde antes de E o ter adquirido, o réu, vendo-se na iminência de sofrer a evicção, poderia denunciar a lide a D ou a qualquer dos que o antecederam na cadeia dominial.
Ocorre que, pelo sistema do CPC de 1973 (e que era corroborado pelo próprio art. 456 do CC), o direito resultante da evicção só poderia ser exercido através de denunciação da lide (daí o art. 70, I, do CPC de 1973 dizer que neste caso a denunciação da lide ter de ser feita “a fim de que [se]possa exercer o direito que da evicção lhe resulta”). Agora imagine-se o problema que haveria se o réu, ao fazer uma denunciação per saltum, “saltasse” longe demais (por exemplo, se E denunciasse a lide a B e depois se verificasse que o direito do autor sobre o bem surgiu quando o bem estava no patrimônio de C). Ora, neste caso evidentemente não se poderia julgar procedente a denunciação da lide formulada em face de B (pois este alienou o bem sem qualquer vício), nem poderia depois E demandar em face de qualquer outro alienante, nem mesmo em face de D, já que o direito resultante da evicção só poderia ser exercido mediante a denunciação da lide (que em face deste não foi formulada).
A denunciação da lide per saltum, porém, era apenas uma possibilidade aparente. A rigor, o art. 456 do CC não a autorizava verdadeiramente. É que o texto daquele dispositivo muito claramente estabelecia que a denunciação seria feita, ao alienante imediato ou a qualquer dos anteriores, “quando e como [determinassem] as leis do processo”, e o CPC de 1973 não permitia a denunciação per saltum mas, tão somente, a denunciação em face do alienante imediato, ficando este autorizado, por sua vez, a formular denunciação sucessiva em face de quem a ele tivesse alienado o bem (art. 73 do CPC de 1973).
Pois o CPC de 2015 eliminou, de vez, qualquer possibilidade de se admitir a denunciação per saltum. Estabelece ele, muito claramente, no art. 125, I, que a denunciação da lide deve ser promovida “ao alienante imediato” e este, por sua vez, pode fazer a denunciação sucessiva contra seu antecessor imediato na cadeia dominial (art. 125, § 2º). E o art. 125, § 1º deixa claro que se a denunciação da lide não for feita, o direito regressivo pode ser exercido por demanda autônoma. Fica claro, assim, que o novo sistema é absolutamente incompatível com o art. 456 do CC.
Alexandre Freitas Câmara é Professor Emérito da EMERJ (Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro). É Desembargador no TJRJ.
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